DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Piketty: entre a utopia e a realidade

Velocino Pacheco Filho

O tema do livro de Thomas Piketty, “O Capitalismo no Século XXI”, é a desigualdade; mais precisamente, a acumulação desigual da riqueza. Os patrimônios, acumulados de geração em geração, ao longo de muito tempo, leva à concentração da riqueza em poucas mãos – mais do que seria necessário para garantir uma vida confortável aos seus detentores. Por mais extravagante que seja o estilo de vida, não é possível consumir a renda gerada por certos patrimônios. 

Apenas para constar, os ganhos de produtividade são apropriados diferentemente entre os fatores de produção trabalho e capital. A tendência é o capital apropriar a totalidade dos ganhos de produtividade, repartindo alguma coisa com o trabalho apenas quando forçado. Afinal, diz o ditado: “quem reparte, ganha a maior parte”.

Invertendo a lógica do econômico como infraestrutura e do político como superestrutura, Piketty, entende certas escolhas econômicas como políticas: é o caso da escolha das formas de financiar o Estado – tributação, endividamento ou inflação. As duas últimas diluem o financiamento do Estado entre todas as classes, em proveito dos credores (o exemplo é de Piketty). A lógica dessa escolha, sustenta o autor, não é econômica, mas política.

A concentração da riqueza tem como corolário a concentração do poder. Piketty sustenta que uma distribuição muito desigual da riqueza representa uma séria ameaça à democracia e ao sistema meritocrático que lhe é próprio. 

A solução proposta por Piketty é tributar os patrimônios (algo como o nosso “imposto sobre grandes fortunas”?). O cerne do sistema tributário, segundo Piketty, estaria em três impostos: (i) um imposto progressivo sobre a renda, (ii) um imposto progressivo sobre as heranças e (iii) um imposto progressivo e global sobre os patrimônios. Este último, para surtir os efeitos desejados, além de progressivo, deve ser sobre todo o patrimônio – mobiliário, imobiliário e corporativo – e ser adotado por todos os países – para evitar a migração dos capitais para os países mais “compreensivos”.

Utópico? O próprio Piketty reconhece que obter a cooperação internacional na instituição de semelhante tributo é um projeto utópico.

Mas, o que desperta a atenção no livro de Piketty não é tanto a solução apontada, mas colocar em discussão “verdades” consagradas, seja pela direita, seja pela esquerda. Assim, para avaliar devidamente a obra devemos superar a crítica meramente ideológica. 

Vejamos a questão da economia de mercado. Com isso queremos nos referir a uma economia em que os preços indiquem o que, quanto, como e para quem produzir. Estamos falando de mercados em que vigora a livre concorrência. Piketty não rejeita a economia de mercado, mas propõe um forte controle social/estatal sobre o mercado. É certo que ninguém mais acredita na “mão invisível” (A. Smith) conduzindo o mercado para o equilíbrio de pleno emprego. Torna-se também difícil de aceitar que “a oferta cria sua própria demanda” (J. B. Say), como bem demonstrou Keynes. Mas, por outro lado, o dito socialismo “real” foi incapaz de criar um substituto eficiente para o sistema de preços. O constituinte brasileiro de 1988 também adotou a livre concorrência (i.e. a economia de mercado) no art. 170, IV, como um dos princípios informadores da ordem econômica, mas sob controle do Estado (art. 174).

Da mesma forma, o autor não se declara contrário à propriedade privada dos meios de produção. Por via de consequência, admite a acumulação e construção de patrimônios, mas também com amplo controle da sociedade, exercido pelo Estado. Os patrimônios passam a constituir problema quando atingem determinado tamanho. O constituinte de 88 também assegura o direito de propriedade, elencado entre os direitos fundamentais, mas como acrescenta que a propriedade deve atender à sua função social (art. 5º, XXII e XXIII).

Como se vê, o Estado tem um papel fundamental para a realização da utopia pikettyana. O Estado de Piketty não é o Estado mínimo. Pelo contrário, o aumento da complexidade da sociedade e da economia modernas exige um Estado proporcionalmente maior – até para atender demandas sociais crescentes. O problema é como conciliar uma dimensão maior do Estado com as liberdades democráticas. Esse Estado deve estar imbuído de um conteúdo ético tal que não permita abusar de seu poder para oprimir o cidadão – como conseguir isso é que são elas! A primeira descrição do Estado moderno, feita por Hobbes, o representa como um grande monstro – o Leviatã – formado por muitos corpos. É o grande anônimo! Mas o que é o Leviatã? É o Estado absolutista que pode ser visto para além das monarquias do antigo regime. Não estará, o Leviatã, implícito no Estado moderno – mesmo nos regimes democráticos? Pois o Leviatã têm outros nomes: ele pode ser chamado de burocracia ou mesmo de administração pública. Esse é o monstro de mil faces que a todos devora, em nome do rei ou da democracia.

Hannah Arendt distingue muito bem o despotismo do totalitarismo. O despotismo é a tomada do Estado e do poder por uma minoria e seu líder – e.g. Somoza, Trujillo, Kadafi etc. Já o totalitarismo, de direita ou de esquerda, é a tomada do poder pelas massas politicamente organizadas. O totalitarismo é impessoal. Ele representa o Leviatã na sua versão mais sinistra.

Como conciliar o gigantismo do Estado com a democracia, sem que o cidadão seja esmagado por esse mesmo Estado cuja função é defender seus direitos fundamentais? Esse é um tremendo desafio e o que torna a receita de Piketty realmente utópica. Porque a cooperação internacional, em outras áreas vem sendo conseguida. Os organismos supranacionais vem se multiplicando e sua atuação. Vejamos, por exemplo, a globalização do crime organizado que exige organismos também globais para combatê-lo. 

Por falar em direitos fundamentais, a solução proposta por Piketty – controlar os grandes patrimônios mediante um imposto progressivo e global – implica a relativização dos direitos fundamentais, mais especificamente o direito a privacidade. Com efeito, o controle social dos grandes patrimônios exige maior transparência nas operações financeiras, na mobilidade do capital e na sua propriedade. Isso implica a relativização do direito à privacidade e, consequentemente, uma soma maior de poder para o Leviatã. Nesse sentido, já caminhamos para a relativização do sigilo bancário (o sigilo não pode proteger as atividades ilícitas, entre elas a sonegação de tributos). O planejamento tributário – que não é acessível a todos – ganha novos limites. A distinção entre elisão tributária (lícita) e evasão (ilícita) já não basta. É preciso ainda que haja propósito negocial e que não haja abuso das formas de direito, no sentido de determinado negócio ter como única justificativa o não pagamento de impostos.
Então chegamos ao seguinte dilema: para preservar a democracia devem ser tributados os grandes patrimônios; mas, para isso ser possível, deve-se fortalecer o Estado a tal ponto que ele próprio se torna uma ameaça à democracia. Como resolvê-lo?

O art. 37 da Constituição diz que a administração pública deve obedecer, entre outros, ao princípio da moralidade. Ou seja, a administração da coisa pública deve ser, antes de tudo, moral. É uma obrigação da administração ser moral. Os atos administrativos, além de legais, devem ser morais. Parece ser esta a grande condição para a realização da utopia: o Leviatã deve se tornar um ente essencialmente moral como, de resto, exige a nossa Carta Magna.