DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Para uma teoria (im)pura do direito tributário

Velocino Pacheco Filho

Hans Kelsen, em Teoria Pura do Direito, procura fazer uma descrição neutra e objetiva do fenômeno jurídico. A proposta de “pureza” metodológica se traduz em desvencilhar o direito de todos os elementos egressos de outros ramos da ciência (a psicologia, a sociologia, a teoria política etc.). Não deveriam ser feitas quaisquer considerações que não fossem estritamente jurídicas nem tomar como objeto de conhecimento qualquer outra coisa que não fossem as normas jurídicas. O próprio conceito de “justiça” foi considerado como não pertencente ao direito.

Como contraponto, vamos considerar o comentário de NIcos Poulantzas: “Frequentemente o Estado age transgredindo a lei-regra que edita desviando-se da lei ou agindo contra a própria lei. Todo o sistema autoriza, em sua discursividade, delineando  como variável  da regra do jogo que organiza, o não respeito pelo Estado-poder de sua própria lei”.

Esse último autor saliente o fato de como o ordenamento jurídico pode ser ignorado ou descumprido, em nome das “razões de Estado”. Desse modo, a legalidade pode ser compensada por “apêndices” de ilegalidade. Tratar-se-ia o mais das vezes, segundo ele, de operações ideológicas de ocultação “que sustenta o direito”.

Até um tributarista tido como conservador, como Ives Gandra da Silva Martins, desabafa que “mesmo os bons legisladores fazem leis que ensejam desigualdades, quase sempre beneficiando mais os que as elaboram do que os que estão fora do núcleo do poder”. O que corrobora o entendimento de G. Mosca de que a democracia não é propriamente o “governo do povo”, mas apenas uma forma de selecionar a elite governante.

Por outro lado, tendo por base a classificação das contradições proposta por Karl Engisch, podemos destacar as contradições valorativas (quando o legislador não se mantém fiel à valoração por ele adotada), as contradições teleológicas (“o legislador visa com determinadas normas determinado fim, mas através de outras normas rejeita aquelas medidas que se apresentam como as únicas capazes de servirem de meio para alcançar tal fim”) e as contradições de princípios (“a cada passo topamos com preceitos do passado que, nos quadros da nossa atual ordem jurídica, nos parecem como contrários aos princípios, como ‘corpos estranhos’”).

Derrida (“Força de lei: fundamento místico da autoridade”) questiona justamente a validação e fundamentação do direito em bases míticas ou em um ato de violência original.  “A autoridade da lei não pode apoiar-se senão em si mesma: o direito nada mais é que uma violência sem fundamento”. Daí o discurso justificador do direito como ocultação do fundamento mítico da autoridade.

Ora, o direito tributário contém numerosos exemplos dessas contradições valorativas, teleológicas e de princípios que põe em questão toda a fundamentação do direito. A contradição, em muitos casos, deixa transparecer, de forma muito clara, esse “descumprimento” da lei pelo próprio Estado. Não acidentalmente, pela superposição de camadas legislativas, como sugere Engisch, mas intencionalmente, como uma espécie de sabotagem do direito produzido pelo Estado. Vejamos alguns casos concretos:

Cedendo a reclamações generalizadas, a Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir que veio disciplinar as normas gerais relativas ao ICMS) adotou o princípio dos créditos financeiros, em substituição aos créditos físicos, até então adotados pelo direito tributário brasileiro. Assim, o art. 20 do referido diploma dispõe que “é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente”. No entanto, o art. 33 do mesmo pergaminho restringe a aplicação do art. 20, permitindo o crédito das mercadorias destinadas ao uso ou consumo do estabelecimento apenas em data futura e que veio sendo sucessivamente adiada (para as calendas gregas), de modo a retirar completamente a eficácia da regra do art. 20, no que se refere a materiais de consumo.

Por outro lado, os tribunais, decidindo sobre  casos concretos, tem colaborado para restringir os créditos financeiros, ao não admitir crédito correspondente ao desgaste, aos materiais intermediários ou quando o material não é consumido imediata e integralmente no processo produtivo.

Mais sérias são essas contradições quando envolvem os objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3º da Constituição. Assim, o art. 3º, II, elege como um dos objetivos fundamentais o “desenvolvimento nacional”. No entanto, a alíquota do ICMS para energia elétrica e combustíveis foi fixada em 25%. Qual o sentido de tributar tão pesadamente insumos essenciais para o desenvolvimento econômico e social? Além disso, um patamar tão elevado de tributação conflita com o critério da essencialidade, adotado pelo art. 155, § 2º, III, para a graduação das alíquotas seletivas. Ninguém irá sustentar que energia elétrica e combustíveis são mercadorias de consumo supérfluo ou suntuário. No entanto, essas elevadas alíquotas têm contado com o beneplácito dos tribunais superiores.

Falando da seletividade das alíquotas e do critério da essencialidade, a Resolução do Senado 95/1996 fixou em 4% a alíquota do transporte aéreo interestadual de passageiros, carga e mala postal o que contrasta com as alíquotas que oneram o transporte rodoviário, utilizado pela maioria do povo brasileiro.

O objetivo de redução das desigualdades sociais de que trata o inciso III do  artigo 3º da Constituição não encontra correspondência na regressividade do sistema tributário brasileiro que onera sobretudo os mais pobres e privilegia os mais abastados. Somos um País de alta concentração de renda: 10% da população detém 50% da renda nacional. Em contraste, as renda que sofrem menor tributação, conforme revela estudo do IPEA, referem-se à propriedade imobiliária. 

A regressividade do sistema tributário brasileiro pode ser em parte explicada pela alta participação dos tributos sobre o consumo no perfil da arrecadação. Como consequência, as classes de menor renda, com sua baixa propensão a poupar são as mais sacrificadas.

Por fim, o princípio da impessoalidade referido no art. 37 da Constituição, como um dos princípios que informam a administração pública (aí incluída a administração tributária) é incompatível com os tratamentos tributários privilegiados, instituídos por regime especial, TTD e outros atos administrativos. Além disso, tais tratamentos são contrários ao princípio insculpido no art. 150, II, da Lei Maior, que veda expressamente instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente (princípio da isonomia tributária).

A Constituição Federal, art. 155, § 2º, XII, g, condiciona a concessão de isenção e demais benefícios fiscais, em matéria de ICMS, à celebração de convênio entre os Estados-membros. Contudo, o art. 43 da Lei 10.297/1996 – que trata de medidas para proteção da economia catarinense – tem sido interpretado como um permissivo para conceder benefícios fiscais sem a devida autorização do Confaz. 

Para os que creem em universos paralelos, tudo se passa como se, paralelamente ao Estado de Direito, subsistisse um Estado de não-Direito, como sua imagem especular.

2 comentários:

  1. Muito interessante a análise. Eis aí o grande engodo de se afastar o Direito de disciplinas como a Justiça e a Ética. O positivismo de Kelsen (e de seus predecessores) não por acaso serviu como uma luva para o Estado Democrático Moderno. Muito precisa, nesse sentido, a fábula narrada por Michael Löwy, onde o lendário Barão de Münchhausen escapa com seu cavalo do pântano puxando a si próprio pelos cabelos. É essa a lógica denunciada neste artigo: quando quer, o Estado aperta um botão que interrompe momentaneamente a ficção democrática e, por um breve período, mostra sua real face autocrática e autoproclamada defensora de uma determinada elite dominante, decidindo à revelia das regras do jogo. C´est dommage!

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  2. Vejo na Teoria Pura do Direito (nome traduzido do alemão, Reine Rechtslehre), uma tentativa, com os pressupostos kantianos, de enclausurar uma crítica da razão pura do direito, em que se fecha a porta a tudo que não seja genuinamente do direito, entretanto, os valores, inexoravelmente, adentram pela janela.

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