DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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terça-feira, 10 de março de 2015

O conceito operacional de “bricolagem” para efeitos de incidência da substituição tributária

Velocino Pacheco Filho

A interpretação de textos normativos requer, antes de tudo, a sua compreensão do  ponto de vista linguístico, já que as normas jurídicas são pesquisadas a partir de enunciados do legislador. A análise linguística do texto permite uma primeira compreensão de seu conteúdo e a delimitação do campo possível de interpretação que o intérprete não deve ultrapassar.

A semiótica distingue três planos linguísticos, a saber: o semântico, o sintático e o pragmático. Se o plano semântico refere-se ao significado dos termos empregados pelo legislador e o plano sintático às relações entre os termos, o plano pragmático refere-se à intenção com que os termos são empregados. O plano semântico é fundamental, no sentido que sem ele os demais não serão possíveis. A análise semântica de um dispositivo legal envolve a definição das coisas (do mundo) representadas pelos termos empregados. Em outras palavras, ela delimita a parcela do mundo real a que o dispositivo se refere – qual a sua abrangência.

Para que a comunicação entre o emitente da mensagem (legislador) e o receptor (intérprete) seja possível, é preciso que ambos tenham a mesma compreensão semântica dos termos empregados, ou seja, deve haver um acordo semântico entre eles. Caso contrário, não teremos comunicação, mas mero ruído. 

Conforme Pasold, do acordo semântico deve resultar um conceito operacional dos termos utilizados em uma comunicação e que define as suas fronteiras epistêmico-jurídicas: define a extensão do seu território normativo.

Pois bem! O Protocolo ICMS 196/2009 prevê o regime de substituição tributária “para frente” nas operações com os materiais de construção, acabamento, bricolagem ou adorno que relaciona.

A substituição tributária constitui modalidade de sujeição passiva indireta em que a lei atribui “de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte” (CTN, art. 128). À evidência, a pessoa de quem o tributo é exigido (contribuinte substituto) não é a pessoa que tem “relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador” (art. 121, parágrafo único, I), identificado como contribuinte substituído.

O § 2° do art. 6° da Lei Complementar 87/96 dispõe que “a atribuição de responsabilidade dar-se-á em relação a mercadorias, bens ou serviços previstos em lei de cada Estado”. Mas, no caso de operação interestadual, em que o substituto estará em um Estado enquanto o substituído estará em outro, o art. 9° da Lei Complementar 87/96, dispôs que “a adoção do regime de substituição tributária em operações interestaduais dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados interessados”. O imposto retido pelo substituto é devido ao Estado de destino, onde deverá ocorrer o fato gerador presumido. Note-se que o acordo entre os Estados não institui o regime de substituição tributária, mas serve apenas para conferir efeito extra-territorial à legislação do Estado em que situado o substituído, nos termos do art. 102 do Código Tributário Nacional.

Ora, a correta aplicação da legislação, depende do acordo semântico ou da definição de um conceito operacional para a expressão “bricolagem”. Conforme Dicionário Houais da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007), bricolagem significa “trabalho ou conjunto de trabalhos manuais feitos em casa, na escola etc. como distração ou por economia”. Esse conceito é extremamente vago e, portanto, imprestável para definir a responsabilidade tributária. Não se pode trabalhar com um conceito onde caiba praticamente qualquer coisa. Ninguém, em sã consciência diria que copos de vidro sejam classificados como materiais de construção, mas nada impede que alguém tenha a fantasia de fazer uma parede com copos de vidro ou utilizá-los como revestimento ou qualquer outra finalidade. Um conceito amplo de bricolagem poderia incluir copos de vidro que, assim, teriam o mesmo tratamento tributário dos materiais de construção.

Conforme empresa que opera no ramo, em material de propaganda divulgado na internet, “bricolagem” é palavra de origem francesa que quer dizer “faça-você-mesmo”. A mesma propaganda anuncia “nova linha para garantir a excelência em colagem em madeira, metal, plástico, borracha, porcelana, vidro e outros materiais”, que teriam a qualidade de “fácil utilização, em embalagens inteligentes, de simples manuseio e com manuais explicativos”. O anúncio refere-se a kits comercializados expressamente para bricolagem. Então, apesar de qualquer mercadoria poder ser utilizada para fins de bricolagem (é possível fazer móveis com jornais prensados ou com palitos de fósforos), quando estamos falando de tratamento tributário é preciso um conceito mais restrito e preciso. 

O uso amplo da expressão pode levar a situações ridículas como querer aplicar o regime de substituição tributária a itens como “fita adesiva” – normalmente utilizada para confeccionar embalagens e outros usos semelhantes – ou à saída de cravos utilizados para fixar ferraduras nos cascos dos cavalos. Repugna à lógica e à boa razão pretender que seja dado à fita adesiva e aos cravos para ferraduras o mesmo tratamento tributário dos materiais de construção.

Em suma, o alcance do termo “bricolagem” deve ficar restrito às mercadorias oferecidas no mercado expressamente para essa finalidade. Caso contrário, o aplicador do direito estará sendo investido do poder discricionário de exigir o imposto de terceiros, a revelia do legislador, sobre qualquer mercadoria que entenda poder servir para trabalhos de bricolagem. 

A sujeição passiva tributária, no entanto, é matéria reservada à lei. Do mesmo modo que o emprego da analogia (em hipótese de integração do direito) não pode resultar “na exigência de tributo não previsto em lei” (CTN, art.108, § 1º), também não compete ao intérprete e aplicador da lei ampliar o seu alcance para incluir outras situações não previstas pelo legislador. 

Com efeito, dispõe o art. 97, III, do CTN que somente a lei pode estabelecer a definição do fato gerador da obrigação tributária principal e do seu sujeito passivo.

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