DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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quarta-feira, 4 de março de 2015

Os precedentes judiciais e o efeito de inércia sobre a interpretação do direito tributário

Velocino Pacheco Filho

Julgar com base em precedentes judiciais é procedimento característico dos países que adotam a common law. Mas isso não quer dizer que os precedentes não tenha importância também nos países que adotam a civil law. Afinal, espera-se que casos iguais sejam julgados da mesma forma, por uma questão de segurança jurídica. A jurisprudência é considerada fonte do direito em qualquer dos dois sistemas, apenas ela tem maior relevância no âmbito da common law. 

Mas o que é um precedente? É a decisão judicial que, tomada em um caso concreto, servirá de referência para o julgamento de casos semelhantes. O precedente é a decisão que inaugura determinada solução adotada pelo tribunal. Para tanto, o precedente tem de ser tal que possa servir de orientação nos casos futuros e que tenham semelhança com o caso concreto que o provocou. Porém, não se trata de uma semelhança qualquer, mas deve ser relativa à razão de decidir (ratio decidendi) ou seja, aos motivos que determinaram a decisão. Os aspectos da decisão que não se relacionam com a ratio decidendi não são relevantes para o balizamento de decisões futuras (obter dictum). Os precedentes jurisprudenciais contribuem para a previsibilidade das decisões e, por conseguinte, para a segurança jurídica: casos iguais devem ser decididos da mesma forma.

No entanto, os precedentes não devem engessar as decisões judiciais – principalmente, não devem ser empregados mecanicamente, sem identificar com precisão qual foi a ratio decidendi e se ela tem aplicação ao caso em julgamento. Desse modo, a aplicação dos precedentes pode ser afastada (a) porque a situação que lhe deu origem já foi superada (overruling) pela legislação superveniente ou outra causa ou (b) porque existe uma diferença significativa entre o caso que deu origem ao precedente e o caso examinado pelo tribunal (distinguish).

Na verdade, tem havido recentemente uma aproximação entre common law e civil law na medida que o julgamento com o uso de precedentes jurisprudenciais vem se tornando mais comum, inclusive no direito tributário brasileiro, a partir do direito constitucional espalhando-se aos outros ramos do direito. Nesse sentido, Saul Tourinho Leal (A Técnica do Distinguish em Matéria Tributária, RDDT 192, p. 132) comenta que os precedentes do STF, na sistemática da repercussão geral, passam a ser mais impositivos que a própria legislação, pois não pode ser declarada sua inconstitucionalidade, restando ao judiciário apenas aplica-lo na integra ou comprovar a inadequação de sua aplicação no caso concreto. Conforme o mesmo autor:

Logo, para provar a inadequação do precedente ao caso concreto posteriormente apreciado pelas demais instâncias judiciais, o julgador pode se valer da praxe norte-americana de afastar o precedente firmado pela Suprema Corte no caso levado a julgamento, pelo fato deste ser diverso – fática ou juridicamente – daquele. Essa distinção é chamada de distinguish e goza hoje de força digna dos grandes institutos do processo constitucional da common law.  

Entretanto, podemos identificar um efeito de inércia que leva os tribunais e a própria Administração Pública a aplicar mecanicamente e sem qualquer crítica os precedentes dos tribunais superiores (STF e STJ). Vamos examinar três casos em que o precedente dos tribunais superiores não pode ser aplicado da forma como vem sendo feito.

O primeiro se refere ao tratamento tributário da argamassa. A Segunda Turma do STJ, no Recurso Especial 453.173, Relator o Min. João Otávio de Noronha (DJ de 4-8-2006, p. 296), decidiu:

TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE ARGAMASSA PARA A CONSTRUÇÃO CIVIL. ICMS. NÃO INCIDÊNCIA. SÚMULA N. 167 DO STJ.
1. Não incide ICMS sobre o preparo e fornecimento de argamassa para construção civil, serviço o qual, à similaridade da elaboração de concreto, enseja a incidência apenas de ISS. Inteligência da Súmula n. 167 do STJ.
2. Recurso especial provido.
 
A Súmula 167 do STJ, citada no acórdão, é do seguinte teor: 

O fornecimento de concreto, por empreitada, por construção civil, preparado no trajeto até a obra em betoneiras acopladas a caminhões, é prestação de serviço, sujeitando-se apenas à incidência do ISS.

O tribunal apenas equiparou a argamassa ao concreto (assumindo terem o mesmo uso), aplicando ao primeiro, jurisprudência relativa ao segundo. Pesquisando os precedentes originários que deram origem à Súmula 167, vemos que se reportam ao julgamento pela Segunda Turma do STF do Recurso Extraordinário 82.501 SP (DJ de 12-3-1976, p. 1516; RTJ vol. 77-3, p. 959), em que foi relator o Min. Moreira Alves:

ICM. A ELE NÃO ESTÁ SUJEITO O FORNECIMENTO DE CONCRETO PARA CONSTRUÇÃO CIVIL QUE VAI SENDO PREPARADO, EM BETONEIRAS ACOPLADAS A CAMINHÕES, NO TRAJETO ATÉ A OBRA. INEXISTÊNCIA, NO CASO, DE COISA JULGADA, POR FALTA DE IDENTIDADE DA CAUSA PETENDI. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDOS.

Do voto do relator, destacamos a seguinte passagem que revela com clareza a ratio decidendi da decisão (grifos no original):

A preparação de concreto, seja feita na obra – como ainda se faz nas pequenas construções – seja, feita em betoneiras acopladas a caminhões, é prestação de serviços técnicos, que consiste na mistura, em proporções que variam para cada obra, de cimento, areia, pedra britada e água, e mistura que, segundo a Lei Federal 5.194/65. Só pode ser executada, para fins profissionais, por quem for registrado no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, pois demanda cálculos especializados e técnica para a sua correta aplicação. O preparo do concreto e a sua aplicação na obra é uma fase da construção civil, e, quando os materiais a ser misturados são fornecidos pela própria empresa que prepara a massa para a concretagem, se configura hipótese de empreitada com fornecimento de materiais e não – como pode ocorrer com a colocação de placas de cimento pré-fabricadas – venda de mercadoria produzida por quem igualmente se obriga a instalá-las na obra. Para a concretagem há duas fases de prestação de serviços: a da preparação da massa, e a da sua utilização na obra.

Depreende-se da leitura do acórdão – especialmente do voto do relator – que o tribunal entendeu sujeitar-se ao ISS, e não ao ICM(S), o fornecimento de concreto, porque (a) as proporções da mistura são específicas para cada obra, (b) a mistura é executada por profissional com registro no CREA, (c) e a mistura demanda cálculos especializados e técnica para a sua correta aplicação.

O fornecimento de argamassa atende a todos esses requisitos? Ora, em qualquer estabelecimento de comércio de materiais de construção pode ser adquirida argamassa pronta, embalada em sacos de tamanho padronizado, para ser utilizada em qualquer obra, independentemente de suas especificações. Nesse caso, as proporções da mistura não são específicas para cada obra, ela não é executada por profissional com registro no CREA, tampouco demanda cálculos especializados nem requer técnica para sua correta aplicação. Pelo contrario, essa argamassa pode ser aplicada por qualquer pedreiro. Então, qual a justificativa para simplesmente estender para a argamassa a jurisprudência construída em função do concreto, sem verificar se os fatos são os mesmos, ou seja, se tem a mesma ratio decidendi.

O segundo caso se refere à definição do termo inicial do prazo de decadência para a constituição do crédito tributário no caso do IPVA. Ilustrativo do entendimento do STJ é o Agravo Regimental no Recurso Especial 1.477.734 SC, da Segunda Turma, Relator o Min. Mauro Campbell Marques (DJe de 18-11-2014):
TRIBUTÁRIO. IPVA. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. LANÇAMENTO DE OFÍCIO. TERMO INICIAL DA PRESCRIÇÃO. CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. DATA DA NOTIFICAÇÃO DO CONTRIBUINTE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. O Superior Tribunal de Justiça possui o entendimento firme de que nos tributos sujeitos a lançamento de ofício, tal como o IPVA e o IPTU, a própria remessa, pelo Fisco, da notificação para pagamento ou carnê constitui o crédito tributário, momento em que se inicia o prazo prescricional quinquenal para sua cobrança judicial, nos termos do art. 174 do CTN.

Nesse caso, a remessa ao sujeito passivo do carnê para pagamento do imposto caracteriza a notificação de lançamento do tributo. Por conseguinte, a partir do recebimento do carnê passa a correr prazo de prescrição e não mais de decadência, a teor o art. 174 do CTN: “A ação para cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco) anos, contados da data de sua constituição definitiva”.

Mas, porque o lançamento do IPVA deve ser necessariamente de ofício? Não existe, desde que foi introduzido no ordenamento jurídico tributário brasileiro, lei complementar de normas gerais disciplinando esse imposto em nível nacional. Nesse caso, prevalece o disposto no § 3º do art. 24 da Constituição Federal: “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”.

Se o Estado não remete ao sujeito passivo carnê para pagamento do IPVA, não há lançamento do imposto, que somente se aperfeiçoa com a notificação ao sujeito passivo. Por conseguinte, o prazo de prescrição ainda não começou a correr. O cálculo do imposto devido (mediante consulta a tabelas disponibilizadas pelo Fisco e aplicação da alíquota cabível) pelo sujeito passivo e seu recolhimento nas datas previstas na legislação nada mais é que o cumprimento de dever legal.

Poderíamos falar de notificação presumida (hipótese ainda não prevista no direito tributário brasileiro)? Tratando-se de simples cumprimento de dever legal, o prazo seria então de decadência e não de prescrição. Essa é a diferença que torna o precedente inaplicável ao caso concreto.

O procedimento de cobrança do IPVA padece de sérios defeitos. Contudo, isso não justifica a ficção de um lançamento que não houve, porque não foi cientificado ao sujeito passivo a exigência do tributo.

O terceiro caso refere-se à tributação da confecção de banners “por encomenda”, fabricado segundo especificações do encomendante para seu próprio uso. Não se trata de banners fabricados em escala e destinados à revenda – o que caracterizaria operação de circulação de mercadorias. 

A Egrégia Primeira Seção do STJ, no julgamento da Ação Recisória 1.084 SP, Relator o Min. Mauro Campbell Marques (DJe de 15-3-2010), decidiu o seguinte:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA PROPOSTA COM AMPARO NO ART. 485, INCISOS V E IX, DO CPC. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO À LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI. INTERPRETAÇÃO DO TEXTO LEGAL EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA SEDIMENTADA DO STJ. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 343/STF. ERRO DE FATO. NÃO COMPROVAÇÃO. SERVIÇOS DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA. CONFECÇÃO DE PLACAS, LETREIROS, LUMINOSOS E AFINS. INCIDÊNCIA DE ICMS. EXCEÇÃO PREVISTA NA PARTE FINAL DO ITEM 85 DA LEI COMPLEMENTAR 56/87.
...........
11. Conforme o entendimento dominante nesta Corte, essas atividades consistentes na confecção de placas, letreiros, luminosos e afins, destinados à comunicação visual, não se enquadram na descrição da hipótese de incidência prevista no mencionado item 85 da Lei Complementar 56/87. Isto porque predomina nessas atividades a operação de fornecimento de mercadorias, que as inclui na exceção posta na parte final do referido dispositivo legal, atinente à impressão, reprodução ou fabricação de material publicitário, o que faz incidir o ICMS e não o ISS, na forma prevista no art. 2º, IV, da Lei Complementar 87/96.

A questão é saber que imposto incide sobre a confecção de banners, feitos conforme especificações do encomendante. Trata-se de prestação de serviço, sujeita ao ISS? Ou se trata de comercialização de mercadoria fabricada por encomenda?

Vejamos: aos Municípios foi deferida competência para tributar serviços de qualquer natureza (a) não compreendidos na competência dos Estados e (b) definidos em lei complementar. Os serviços compreendidos na competência tributária dos Estados são os de comunicação e transporte interestadual e intermunicipal. Além disso, o serviço para estar sujeito ao ISS deve estar expressamente relacionado (definido) em lei complementar. Se o serviço, para sua execução, compreender fornecimento de mercadorias, temos as seguintes possibilidades: (a) está relacionado na lista de serviço, caso em que está sujeito apenas à incidência do ISS, (b) não está relacionado na lista de serviço, caso em que incide apenas o ICMS e (c) está relacionado na lista de serviço, mas com ressalva da mercadoria fornecida, caso em que incidem ambos os impostos.

A situação fática examinada pelo STJ, na AR 1.084 SP, ocorreu na vigência da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 56/1987, na qual não havia previsão do fornecimento de banners, entre as hipóteses de incidência do ISS. Logo, incidiria exclusivamente o ICMS.

Contudo, a Lei Complementar 56/1987 foi substituída pela Lei Complementar 116/2003, cuja Lista de Serviços prevê taxativamente, no item 24.01: “Serviços de chaveiro, confecção de carimbos, placas, sinalização visual, banners, adesivos e congêneres”.

Assim, a confecção de banners passou a ser tributada pelo ISS, com exclusão do ICMS, a partir da entrada em vigor da Lei Complementar 116/2003. Até então, incidia exclusivamente o ICMS. O que mudou? Mudou a legislação: não podemos, na vigência da lei nova, decidir com base em jurisprudência que se refere a lei já revogada.

A Administração Tributária deve ter o máximo cuidado com a tendência inercial de decidir com fundamento em precedentes, sem levar em conta a existência de diferenças relevantes que tornam inaplicável o precedente ao caso concreto.

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