DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A indisponibilidade do crédito tributário

Velocino Pacheco Filho

O art. 150, § 6º da Constituição da República dispõe que “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g”.

A exigência, pela Constituição, de lei (em sentido formal) para a concessão de exonerações tributárias tem por fundamento a indisponibilidade do crédito tributário que, conforme magistério de Diógenes Gasparini (Direito Administrativo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 17-18), não se acham “os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública”. 

Aqueles e este não são seus senhores ou donos, cabendo-lhes por isso tão-só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa finalidade é o Estado.

Contudo, o art. 13 da Lei catarinense 14.264, de 21 de dezembro de 2007, autoriza o Poder Executivo a “renovar e prorrogar benefícios fiscais concedidos por regimes especiais”. Tratando-se de matéria reservada à lei, benefícios fiscais podem ser concedidos, renovados ou prorrogados por regime especial (ato unilateral do agente público)?

O agente público – seja ele quem for – não tem o poder de inovar o ordenamento jurídico-tributário. Ele deve apenas zelar pelo fiel cumprimento da lei, esta sim o instrumento adequado para conceder benefícios fiscais. Sobre o tema, discorre Aurélio Pitanga Seixas Filho (Discricionariedade da Autoridade Fiscal. RDDT nº 183, p. 28):

Se não pode o administrador fiscal dispor dos direitos públicos, concedendo uma isenção ou redução de impostos para incentivar uma determinada atividade, pode, entretanto, receber do legislador o poder-dever de reconhecer o direito de uma determinada pessoa usufruir de um “incentivo fiscal” em razão de preencher um requisito técnico ou científico em razão de suas características, mais apropriadamente deve ser aferido pelo administrador do que pelo legislador.

Mas, poder-se-ia argumentar, é a própria lei que está delegando ao Poder Executivo (à Administração Pública) o poder de conceder, renovar ou prorrogar benefícios fiscais. Então a pergunta deve ser: a lei pode delegar ao Executivo o poder de dispor do crédito tributário? Estamos tratando do assim chamado “princípio da reserva legal” e a resposta é não. Caso contrário, qual seria a função da separação dos poderes?

Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª e. São Paulo: Atlas, 2003, p. 199) distingue entre princípio da legalidade e princípio da reserva legal: o primeiro é de abrangência mais ampla. “Por ele fica certo que qualquer comando jurídico que impõe comandos forçados há de provir de uma das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional”. Já o princípio da reserva legal é mais restrito, incidindo apenas sobre os campos materiais especificados pela Constituição.

Se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente alguns estão submetidos ao da reserva da lei. Este é, portanto, de menor abrangência, mas de maior densidade ou conteúdo, visto exigir tratamento de matéria exclusivamente pelo Legislativo, sem participação normativa do Executivo.

O mesmo autor, ilustrando a aplicação do princípio da reserva legal, cita decisão da Segunda turma do STJ, no R. Esp. 101.774 SP, em que foi relator o Min. Ari Pargendler (DJ, 9-12-1997, p. 64.661):

Tributário. Substituição Tributária. Princípio da legalidade. A definição do sujeito passivo da obrigação tributária está sujeita ao princípio da reserva legal, não podendo a lei cometê-la ao regulamento (CTN, art. 97, III)

No mesmo sentido é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 

Com efeito, no julgamento da ADI/MC 1.296 PE, relator Min. Celso de Mello (DJ 10-8-1995, p. 23554), de cidiu o tribunal:

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL QUE OUTORGA AO PODER EXECUTIVO A PRERROGATIVA DE DISPOR, NORMATIVAMENTE, SOBRE MATÉRIA TRIBUTARIA - DELEGAÇÃO LEGISLATIVA EXTERNA - MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO - POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PRINCÍPIO DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI EM SENTIDO FORMAL - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - CONVENIENCIA DA SUSPENSÃO DE EFICACIA DAS NORMAS LEGAIS IMPUGNADAS - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

A Corte reafirma a lei como instrumento decisivo da garantia constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo em matéria tributária. Assim, na visão do tribunal, a transferência ao Executivo da competência normativa primária revela-se irrita e desvestida de qualquer eficácia jurídica no plano constitucional. 

Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponivel prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado - como o Poder Executivo - produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar.

Conclui o Supremo que configura ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder Executivo de prerrogativa do Poder Legislativo.

Mais recentemente, o Supremo reiterou sua posição no julgamento da ADI 2.688 PR, relator Min. Joaqueim Barbosa (DJe 164, div. 25-8-2011, Pub. 26-8-2011; RDDT 194: 207)

Ementa: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E DE TRANSPORTE INTERMUNICIPAL E INTERESTADUAL. ISENÇÃO CONCEDIDA A TÍTULO DE AUXÍLIO-TRANSPORTE AOS INTEGRANTES DA POLÍCIA CIVIL E MILITAR EM ATIVIDADE OU INATIVIDADE. AUSÊNCIA DE PRÉVIO CONVÊNIO INTERESTADUAL. PERMISSÃO GENÉRICA AO EXECUTIVO. INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 13.561/2002 DO ESTADO DO PARANÁ.

1. A concessão de benefício ou de incentivo fiscal relativo ao ICMS sem prévio convênio interestadual que os autorize viola o art. 155, § 2º, XII, g da Constituição. 

2. Todos os critérios essenciais para a identificação dos elementos que deverão ser retirados do campo de incidência do tributo (regra-matriz) devem estar previstos em lei, nos termos do art. 150, § 6º da Constituição. A permissão para que tais elementos fossem livremente definidos em decreto do Poder Executivo viola a separação de funções estatais prevista na Constituição. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.

Por fim, resta uma última indagação: a concessão, renovação ou prorrogação de benefício fiscal por regime especial, considerando tratar-se de matéria sob reserva legal, pode caracterizar ato de improbidade administrativa, nos termos do inciso VII do art. 10 da Lei 8.429, de 2 de junho de 1992?

Dispõe o dispositivo citado que “constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie”.


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