Por Fabiano Ramalho
O comércio internacional passou por profundas mudanças nos últimos 100 anos, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. O processo de integração econômica que dominou a segunda metade do século XX promoveu uma gradual eliminação das barreiras alfandegárias no comércio entre os países, o que exigiu a adoção normas internacionais eficientes para garantir um ambiente de negócios propício e seguro.
A globalização trouxe, sem dúvida, enormes vantagens para os países abertos ao comércio internacional, impulsionando a economia mundial e fomentando o desenvolvimento econômico e social das nações por meio dos investimentos estrangeiros, que prometiam incrementar a receita fiscal dos Estados e, com isso, financiar políticas públicas diversas, como educação e saúde.
Sob o ponto de vista fiscal, duas novas perspectivas merecem destaque com a expansão da globalização: o uso ideológico do tributo, com forte viés político, e o banimento das fronteiras nacionais, com a concorrência entre os países para a atração de investimentos estrangeiros diretos. Tanto num quanto noutro caso, a parafiscalidade passou a assumir um papel primordial nas políticas fiscais das nações, especialmente nas relações internacionais.
Sob o primeiro aspecto, o uso do tributo como instrumento de mudança social, por meio de políticas de redistribuição de renda e de progressividade do imposto, por exemplo, tem sido implementado por vários países, no intuito de promover uma justiça social mais efetiva e combater a desigualdade social. Thomas Piketty diz que “
o imposto não é apenas uma questão técnica: ele implica numa questão eminentemente política, que pode contribuir para remodelar as relações entre as pessoas e os grupos sociais.”
[1] (PIKETTY, 2011).
Muito além de uma reforma fiscal, ele defende uma verdadeira revolução social por meio do tributo, com a individualização do imposto, progressividade e equidade, propondo, por exemplo, mudanças significativas no imposto sobre a renda e sobre o patrimônio. A preocupação, aqui, não é só com um tributo mais justo e proporcional, mas, sobretudo, com uma redistribuição de renda mais agressiva e um controle maior do Estado sobre a economia.
Mas é a segunda perspectiva trazida pela globalização que interessa para o presente estudo. A busca por investimentos estrangeiros que financiem as políticas de desenvolvimento social e econômico tem levado diversos países a enfrentarem uma verdadeira guerra fiscal internacional. A concorrência pelo capital tem imposto uma política agressiva de concessão de isenções, reduções de alíquotas e créditos fiscais, sem que isso resulte em vantagem para o Estado concedente, já que o incremento nas receitas públicas é muito modesto.
No início da década de 90, os investimentos estrangeiros no Brasil totalizavam cerca de US$ 37 bilhões, saltando para mais de US$ 103 bilhões no ano 2000, um crescimento de aproximadamente 180%. No mesmo período, a arrecadação tributária passou de US$ 143 bilhões para US$ 197 bilhões, um crescimento de pouco mais de 37%.
De fato, essas políticas geram o fenômeno do dumping fiscal internacional, um processo de deterioração da base fiscal dos países em desenvolvimento, extremamente prejudicial e com altos sacrifícios sociais e econômicos. Isso porque o ambiente concorrencial entre as nações criou condições propícias para práticas de evasão fiscal, por meio dos procedimentos de otimização fiscal por parte das empresas multinacionais, que usam e abusam de modelos baseados em trusts, offshores, paraísos fiscais, etc., para reduzir drasticamente ou mesmo eliminar o seu custo tributário. Sem falar dos prejuízos internos, como a concorrência desleal gerada contra as empresas nacionais, que não contam com os mesmos estímulos fiscais.
A corrida pelo investimento estrangeiro direto exige dos Estados a criação de um ambiente e negócios atrativo, o que inclui não apenas aspectos fiscais, mas também políticos, jurídicos e sociais. Na esfera fiscal, além dos benefícios oferecidos diretamente ao investidor, somam-se os tratados internacionais para eliminar a bitributação, que tem por finalidade básica evitar a dupla incidência tributária, com a cobrança de tributos direitos e indiretos pelo país da sede/residência e pelo país da fonte da renda (
overlaping tax jurisdictions). Estima-se que existam atualmente cerca de 3.000 tratados internacionais para evitar a bitributação, sendo que o Brasil possui acordos dessa espécie com mais de 30 países
[2].
A importância dos tratados internacionais sobre bitributação para o comércio internacional foi bem retratada por José Casalta Nabais:
“
Uma das importantes consequências da internacionalização crescente das situações tributárias traduz-se na necessidade de os estados terem uma política fiscal externa orientada para o combate à dupla tributação internacional que as actuais economias abertas favorecem extraordinariamente. Política essa que visa adequar o sistema fiscal, de um lado, à internacionalização das empresas nacionais evitando tratar os lucros por elas gerados no estrangeiro e repatriados em termos desfavoráveis face aos lucros por elas gerados no estrangeiro e repatriados em termos desfavoráveis face aos lucros gerados no país e, de outro, incentivar o investimento estrangeiro procurando não prejudicar a repartição dos lucros gerados pelos estabelecimentos estáveis nacionais de sociedades com sede no estrangeiro.” (NABAIS: 2010)
[3]
A O.C.D.E. – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, por meio do seu Comitê Fiscal, no intuito de regular a tributação internacional, desenvolveu, a partir de 1963, uma convenção-modelo, uma espécie de guia comentado que serve de instrumento interpretativo do conteúdo e da amplitude das cláusulas das convenções destinadas a evitar a bitributação, tanto por países membros da OCDE, como também por aqueles não membros. No entanto, no mais das vezes, essas convenções se restringem a limitar a competência tributária do país onde o investimento estrangeiro é efetuado, deixando de lado qualquer tentativa de promover uma uniformização fiscal mais profunda entre os países contratantes, especialmente para prevenir a concorrência fiscal entre os países.
Sem essa uniformização, cria-se um cenário de concorrência fiscal internacional e de paraísos fiscais, favorecendo a ocorrência da evasão fiscal, por meio do planejamento fiscal realizado pelas grandes empresas, que fazem desaparecer o lucro ou o desloca para uma tributação reduzida ou, mesmo, inexistente. De uma ou de outra forma, o prejuízo para muitos Estados é evidente, notadamente aqueles menos desenvolvidos, que, diante da acentuada perda de arrecadação fiscal, enfrentam dificuldades para financiar investimentos em infraestrutura e gastos sociais em saúde, educação, saneamento, etc.
Na tentativa de melhor regular os modelos de tributação internacional, combater a evasão fiscal e evitar o uso abusivo dos tratados por parte das grandes empresas multinacionais, a O.C.D.E. e os países que integram o G-20 criaram, em 2013, o plano BEPS – Base Erosion and Profit Shifting, com 15 ações destinadas a de prover os governos com soluções e ferramentas para fechar as lacunas existentes nas regras tributárias, dentre elas o combate ao uso abusivo dos tratados e a divulgação de planejamentos tributários agressivos. Uma das ações mais importantes no combate à evasão fiscal trazida pelo plano BEPS é, sem dúvida, aquela que força as empresas multinacionais a declararem seus lucros onde exercem atividade econômica e obtêm rendimentos, tendo impedir, assim, que os procedimentos de otimização fiscal por elas adotados desloquem esses lucros para paraísos fiscais ou países com alíquotas reduzidas.
A partir de 2017, as empresas que auferirem receitas anuais superiores a 750 milhões de Euros ficam obrigadas a declarar, em cada país em que exerçam atividade, informações sobre lucro, ativos, impostos e empregados, etc, informações essas que serão trocadas automaticamente entre os países, para fins de controle. Também a partir de 2017, entre em vigor o intercâmbio automático de informações fiscais (Standard for Automatic Exchange of Financial Account Information in Tax Matters), instituído em 2014 pelo 7° Fórum Mundial sobre a Transparência e a Troca de Informações para Fins Fiscais, que pretende nada menos que acabar com o sigilo bancário, utilizado como instrumento para escapar do pagamento dos tributos devidos, especialmente com relação a ativos mantidos no exterior. Atualmente, mais de 90 países aderiram a esse intercâmbio, incluindo o Brasil, o que representa mais um esforço global no combate à evasão fiscal.
No entanto, mesmo essas iniciativas poderosas ainda não são suficientes para inibir integralmente a evasão fiscal. Países chaves no combate à evasão fiscal, como os EUA, ainda não aderiram ao plano BEPS e mesmo os países que ratificaram sua adesão não estão obrigados a implementar todas as ações nele previstas. Além disso, a falta de uma uniformização fiscal global mais efetiva, que minimize os efeitos nocivos da concorrência fiscal entre as nações, ameaça manter o estado caótico e paradoxal de desigualdade econômica global, impondo aos países menos desenvolvidos, que mais necessitam de recursos para a promoção do seu desenvolvimento social, político e econômico, uma renúncia de receitas gigantesca.
A concorrência fiscal entre os países e a persistência dos paraísos fiscais ainda favorecem o uso abusivo de práticas de otimização fiscal, gerando perdas de arrecadação não apenas para os países em desenvolvimento, mas também para os mais ricos do globo. Dados da Comissão Europeia estimam que, aproximadamente, 1 bilhão de Euros escapam anualmente dos cofres públicos dos países que integram a União Europeia
[4]. Já o relatório
Background Brief Inclusive Frameworks on BEPS[5], da O.C.D.E., estima que, anualmente, entre US$100 e US$240 bilhões de receitas tributárias são perdidas por meio dessas práticas, o que culminou no esforço de mais de 100 países no combate à evasão fiscal, por meio da implementação dos esforços propostos pelo BEPS.
O combate à evasão fiscal internacional é tão relevante que, no seu recente livro “
Sans Domicile Fisc”
[6], Eric Bocquet (senador) e Alain Bocquet (deputado), chegaram a afirmar que a erradicação da evasão fiscal na França eliminaria toda a dívida pública:
“
La dette en France s’élève à 71 milliards d’euros. Le montant de l’évasion fiscale est estimé à 60 à 80 milliards d’euros par an. Elle s’élève à environ 1 000 milliards d’euros pour l’ensemble de l’Union Européenne. Si l’argent planqué dans les paradis fiscaux ou qui échappe au fisc, grâce aux méthodes d’optimisation fiscale illégale revenait à l’État, il n’y aurait plus de dette.” (BOCQUET, Eric et al: 2016)
[7]
No entanto, apesar dos esforços da comunidade internacional no combate à evasão fiscal, os interesses do capital parecem ainda falar mais alto. O cenário de concorrência fiscal entre os países em muito se assemelha com a guerra fiscal do ICMS entre os Estados brasileiros e, como esta, não leva a um bom caminho em termos de desenvolvimento econômico e social. Por outro lado, a ineficácia do BEPS na inibição da concessão de incentivos fiscais ou redução dos tributos entre os países alimenta essa guerra fiscal, quer seja pela disputa do investimento estrangeiro.
Uma política global de governança fiscal ampla e abrangente, que imponha, por exemplo, limites mínimos e máximos de carga tributária no comércio internacional e o banimento dos paraísos fiscais, pode, aos poucos, acabar com esse cenário e, somado com as demais iniciativas que atualmente estão sendo implementadas, pode, se não eliminar, reduzir muito as perdas de arrecadação provocadas pela evasão fiscal praticada pelas empresas multinacionais, garantindo, assim, um caminho mais promissor para o desenvolvimento econômico mais igualitário entre os países.
Notas e Referências:
[1] PIKETTY, Thomas. Pour Une Révolution Fiscale. Un Impôt sur le Revenu pour le XXIe Siècle. Seuil, 2011. P.67.
[3] NABAIS, José Casalta. A soberania fiscal no actual quadro de internacionalização, integração e globalização econômicas. Lisboa: Jornal Direito Público, volume 1, edição 6, 2010.
[6] BOCQUET , Eric e BOCQUET , Alain. Sans domicile fisc. Paris : ed. du Cherche-Midi : 2016.
[7] “A dívida [pública] na França subiu para 71 bilhões de Euros. O montante da evasão fiscal é estimado em 60 a 80 bilhões de Euros por ano. Ela subiu para algo em torno de 1 trilhão de Euros para o conjunto da União Europeia. Se o dinheiro escondido nos paraísos fiscais ou que escapa do Fisco, graças aos métodos de otimização fiscal ilegal retornasse ao Estado, não haveria mais dívida [pública]”.