DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O DEVER DE NÃO NOTIFICAR: UMA QUESTÃO DE CIDADANIA

Fabiano Ramalho


     Como se sabe, a relação de sujeição tributária não é contratual ou reparatória: ela decorre pura e simplesmente da Lei, que precisa estar perfeitamente espelhada no fato concreto para ser aplicada. Portanto, na relação jurídico-tributária, não estamos diante de um mero confronto entre credor e devedor, como ocorre naturalmente no Direito Privado. Nessa relação, o Estado e, consequentemente, a Administração Tributária, é muito mais do que isso.


A par de sua função de arrecadar tributos, o Estado tem a função fundamental de garantir a segurança jurídica dos administrados em geral e, particular, os direitos e deveres dos contribuintes. E a fiscalização tributária, como agente desse sistema, não só pode como deve atuar com essa premissa. Ou seja, em determinados casos, no exercício dessa função garantidora da segurança jurídica, o Fiscal tem não apenas a opção, mas o dever de não notificar o contribuinte e, mais do que isso, de declarar que aquele período e aquele objeto da fiscalização está correto e não será mais alvo de investigação futura pelo Fisco.


De uma forma geral, ainda que com diferentes enfoques, tudo o que mais deseja um operador consciente e lúcido do Direito Tributário (seja auditor-fiscal, juiz, advogado, empresário, etc.) é a existência de uma Justiça Fiscal plena e efetiva; de uma tributação com qualidade; de uma relação juridico-tributária baseada em princípios de cidadania, da moral e da ética. De um lado, que aquilo que é devido seja pago o quanto antes; de outro lado, que aquilo que é indevido não seja exigido.


Nesse sentido, é de suma importância uma renovação da prática desses operadores. Se, por exemplo, a função própria do auditor-fiscal da Fazenda é a constituição do crédito tributário, então que isso seja bem feito e não fique sujeito ao cancelamento ou nulidades posteriores. A elevada taxa de cancelamentos de notificações fiscais nos Tribunal Administrativos nos revela que essa renovação é mais do que necessária, mas indispensável para a saúde do sistema tributário, tanto para o Estado, para melhorar a eficiência de sua arrecadação, quanto para o contribuinte, para livrar-se de indesejado cerceamento de defesa e de outros absurdos ainda hoje praticados pela Administração Tributária.


Ao mesmo tempo que a Lei determina, por exemplo. a competência exclusiva do auditor-fiscal para constituir o crédito tributário, ela também lhe impõe, implicitamente, o dever de não notificar, sobretudo nos casos em que não houver perfeita subsunção do fato à norma. É essa a mens legis e é preciso ter coragem e uma certa maturidade na relação jurídico-tributária para enfrentar essa mudança de paradigma e assumir, na prática, a responsabilidade pela segurança jurídica e objetividade extrema na atuação do agente fiscal. Preservar a qualidade da relação de sujeição tributária é, sobretudo, uma questão de cidadania, indissociável dos fins do Estado e que deve permear a praxis do seu mais simples agente.


Caso contrário, teremos cada vez mais notificações fiscais contendo vícios intrínsecos, que acabarão sendo canceladas, com graves consequências para o sistema tributário e para a economia. E ainda que o Tribunal Administrativo faça “vista grossa” para determinados erros e mantenha a notificação, ela certamente não resistirá ao Judiciário. Daí, então, teremos perdido todo esse tempo e recursos em decorrência de falhas que deveriam ter sido evitadas ou com o fortalecimento da prova e dos elementos tipificadores da infração, ou, pura e simplesmente, com a singela, porém objetiva e madura decisão de não notificar.


Assim, diante de uma notificação fiscal que não detém a melhor prova ou tipificação, temos duas possibilidades: 1) aplicamos maior diligência e rigor na apuração dos fatos e na coleta das respectivas provas, realizando, assim, os fins arrecadatórios do Estado, ou, 2) ante a evidência concreta de que não é possível demonstrar plenamente a infração, porque não há certeza dos fatos diante das provas existentes, deixamos de notificar o contribuinte, realizando, assim, os fins estatais de garantidor da segurança jurídica.


Nos dois casos, haverá uma atuação positiva do agente fiscal, não havendo que se falar em omissão, com enormes ganhos em termos de desenvolvimento democrático e jurídico, sem contar a melhoria que ocorrerá em termos de eficiência arrecadatória, com o engrossamento dos índices de manutenção, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, das notificações fiscais expedidas em face de infrações à legislação tributária, demonstradas de forma robusta e inequívoca.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

O lançamento como aplicação da norma de incidência tributária

Velocino Pacheco Filho

O discurso prescritivo do direito compreende normas que visam induzir comportamentos, principalmente porque vêm acompanhadas da previsão de sanções, no caso de seu descumprimento. Espera-se que tais normas sejam gerais (dirigidas a todos) e abstratas (fatos ainda não acontecidos). Norberto Bobbio (Teoria da Norma Jurídica) comenta que abstração e generalidade não devem ser entendidas como critérios de definição da norma jurídica, mas como critérios para sua classificação. Embora seja desejável que as normas contidas nas leis sejam gerais e abstratas, para realizarem os valores justiça e certeza do direito.

Mas, face ao caso concreto, a aplicação do direito exige outra classe de normas, individuais e concretas, como no caso da sanção imposta a quem não cumpre a norma geral e abstrata. Também esse é o caso do lançamento tributário, como ato privativo da autoridade fazendária, que constitui (declara) a relação jurídico-tributária que se instaura entre o Estado e o contribuinte e que tem por objeto a exigibilidade do crédito tributário. Ou seja, o fato concreto subsume-se na norma geral e abstrata. Se o fato concreto, cuja ocorrência foi constatada no mundo real, corresponde, em suas características, ao fato gerador do tributo, como descrito no antecedente da norma geral e abstrata, então deve incidir o disposto no seu consequente.

A aplicação do direito, então, pode ser entendida como a construção de um silogismo, cuja premissa maior é a norma geral e abstrata e a premissa menor (categórica) é a afirmação da ocorrência do fato concreto, demonstrada pelas provas levantadas durante o procedimento fiscal. A conclusão, por sua vez, é a declaração da existência da relação jurídico-tributária o que torna o tributo exigível.

O que deve ser provado? Primeiramente, que o fato concreto corresponde ao fato hipotético descrito na norma, em seus aspectos material, espacial e temporal. Também deve ser provado que a base de cálculo adotada pela autoridade administrativa expressa a “perspectiva dimensível do aspecto material”, para utilizar a expressão adotada por Geraldo Ataliba, tendo especial cuidado nos casos em que a lei permite a essa mesma autoridade o seu arbitramento. Deve ainda restar claramente demonstrada a adequação da alíquota aplicada, o sujeito passivo da relação jurídico-tributária, seja ele contribuinte, responsável ou substituto, e o sujeito ativo, aquele que tem competência para exigir o tributo.

Contudo, como ensinava Cícero, summum jus summa injuria. A aplicação mecânica da norma ao fato, como conclusão necessária das premissas, indiferente à situação concreta, pode resultar em desumanização do direito e à instauração de uma situação de injustiça, à qual o direito não pode ser indiferente.

Para resolver esse paradoxo, o remédio de que dispõe o aplicador do direito é a equidade. Mas, atenção! Não podemos confundir essa equidade, que contempla a dimensão humana na aplicação do direito, com a equidade como integração da legislação (colmatação de lacunas) de que trata o Código Tributário Nacional no art. 108, IV.

A equidade de que estamos falando está expressa no art. 172, IV do CTN: “A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário atendendo a considerações de equidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso”.

A hipótese é de remissão – perdão, renúncia ao crédito – hipótese de extinção do crédito tributário, nos termos do art. 108, IV. Mais ainda, a concessão de remissão por equidade está sendo atribuída à autoridade administrativa. Ora, o crédito tributário é indisponível e a atividade administrativa de lançamento (constituição do crédito) é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (CTN, art. 142, p. único). Então não pode tratar-se de poder discricionário atribuído à autoridade fazendária.

A remissão por equidade depende de expressa previsão em lei que, conforme § 6º do art. 150 da Constituição, deverá ser específica, regulamentando exclusivamente essa matéria ou o correspondente tributo. Na falta de lei, não poderá ser concedida remissão por equidade. Essa lei deve definir a autoridade competente, bem como a forma e em que casos o crédito poderia ser remitido. O despacho que a conceder em cada caso deve ser fundamentado, explicitando a situação peculiar que a justifica e sua adequação às condições prevista em lei para sua concessão.

Constatado que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições para sua concessão ou que não cumpria ou deixou de cumprir os requisitos exigidos, o despacho deverá ser revogado, tornando-se exigível o tributo não recolhido, acrescido de juros moratórios e, nos casos de dolo ou simulação, da penalidade cabível.

De qualquer modo, a equidade, quando autorizada por lei, deve ser aplicada com muito critério e nos estritos termos em que a lei a autorizar.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O contencioso administrativo tributário e o direito de petição

Velocino Pacheco Filho

Executivo, Legislativo e Judiciário são Poderes “independentes e harmônicos entre si”, conforme dicção do art. 2º da CF. Assim, no caso de conflito entre a Administração Pública (P. Executivo) e o particular, o litígio é submetido ao P. Judiciário como o terceiro neutro na relação processual.  Cabe ao Judiciário, ouvidas as partes, dar solução ao conflito.

O Brasil, ao contrário da França e de outros países europeus, adota o princípio da unidade da jurisdição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5º, XXXV).

Então, qual o sentido do contencioso administrativo tributário em nosso País? Ele não faz parte do Poder Judiciário, já que se trata de órgão da Administração Tributária (poder Judiciário): não há prestação jurisdicional; não faz coisa julgada; não decide litígio entre a Administração e o contribuinte.

O direito do contribuinte de questionar administrativamente o lançamento tributário (a constituição de ofício do crédito tributário) insere-se no direito de todo cidadão de peticionar aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder” (CF, art. 5º, XXXIV, a). Isso faz do contencioso administrativo tributário um órgão de controle da legalidade dos atos da Administração Tributária: do lançamento, mais precisamente. “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos” (Súmula STF 473).

O julgador administrativo, singular ou coletivo, deve ocupar-se de questões como: o crédito tributário exigido é legal? a autoridade lançadora tem competência para praticar o ato? foram observadas as formalidades exigidas por lei? foi dada oportunidade para o contraditório e ampla defesa? As provas são suficientes e conclusivas? Foram obtidas de forma lícita?

Tem-se procurado dotar os órgãos do contencioso administrativo tributário de certa autonomia em relação à Administração Tributária, para que possa desempenhar as suas funções adequadamente, sem sofrer pressões. Nesse mesmo sentido, tais órgãos têm adotado composição paritária, entre representantes da Fazenda Pública e das entidades de classe dos contribuintes. Quais funções? A de verificar a legalidade da constituição do crédito tributário e, se for o caso, promover a sua desconstituição. É importante, como alerta Alberto Xavier, que haja uma separação (autonomia) funcional entre os órgãos encarregados da constituição do crédito tributário e aqueles que detêm o poder para sua desconstituição.

Tendo a compreensão da natureza do contencioso administrativo, podemos responder algumas questões recorrentes: porque não existe coisa julgada administrativa? Ora, como não se trata de um verdadeiro julgamento (como o procedido pelo judiciário), mas de um controle da legalidade dos atos da Administração Tributária, não há que se falar em coisa julgada, nem mesmo para a Administração. O lançamento cancelado pelo contencioso administrativo simplesmente deixa de existir.

Porque o órgão contencioso não pode decidir in pejus (agravando a exigência do Fisco)? Porque não lhe cabe constituir o crédito tributário, apenas verificar a legalidade do lançamento que o constituiu.
Pela mesma razão, a Administração Tributária não pode recorrer ao Poder Judiciário contra decisão do contencioso administrativo que lhe for desfavorável. Apenas o contribuinte pode fazê-lo. O lançamento representa uma pretensão do Fisco sobre o patrimônio do contribuinte que é exercida mediante a respectiva ação de execução fiscal. O contencioso administrativo pertence ainda à fase de constituição do crédito tributário pretendido pela Fazenda. A proposição de ação contra a decisão administrativa seria algo anômalo, pois a Fazenda Pública seria, ao mesmo tempo, autora e ré. Seria como um cachorro que procura morder o próprio rabo.

Por fim, uma questão que também é levantada periodicamente: o auditor fiscal, responsável pelo lançamento, não teria o direito de participar da discussão no contencioso administrativo, em defesa do ato fiscal? E primeiro lugar, não há “defesa do ato fiscal”. O ato fiscal não está sendo atacado. A única defesa que existe, no caso, é do contribuinte, perante a pretensão da Fazenda sobre o seu patrimônio. Ademais, o auditor fiscal é a autoridade a quem a lei cometeu a competência para constituir o crédito tributário. Mas, o crédito tributário não é do auditor; é da Fazenda Pública, representada pela Procuradoria Fiscal. O auditor não é parte; não tem interesse processual. Apenas quando solicitado, tem o dever de prestar esclarecimentos ou de efetuar diligência determinada pelo julgador.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A PSV 69 e a modulação de seus efeitos pelo STF

Velocino Pacheco Filho

A Emenda Constitucional 45, de 2004, acrescentou o art. 103-A ao texto da Constituição do Brasil, prevendo a edição de súmula pelo Supremo Tribunal Federal, com efeito “vinculante”, não somente para os órgãos do Poder Judiciário, mas também para a Administração Pública, direta e indireta, da União, dos Estados e dos Municípios.

Pois bem! Como medida para conter a “guerra fiscal entre os Estados”, o Supremo propôs súmula vinculante (PSV 69) declarando a inconstitucionalidade de qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou da base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz.

Vamos situar o problema: para atrair investimentos e alavancar suas economias, os Estados têm concedido benefícios fiscais relativos ao seu principal imposto, o ICMS. Para evitar que um benefício dado por um Estado repercutisse sobre os demais, via mecanismo da não-cumulatividade (um Estado arcar com o benefício dado por outro), o constituinte condicionou a concessão de benefícios por um Estado à concordância de todos os demais, mediante celebração de convênios, autorizando o Estado a conceder o benefício, nos termos da Lei Complementar 24/1975, expressamente recepcionada pela Constituição de 1988.

Os convênios são discutidos e aprovados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), integrado pelos secretários de fazenda, finanças ou economia de todos os Estados. A exigência de unanimidade de votos para a aprovação dos convênios deveria ser um eficiente limitador à concessão de benefícios fiscais.

No entanto, a medida resultou ineficaz, uma vez que os Estados passaram a conceder benefícios, mesmo sem autorização do Confaz, instaurando a assim chamada “guerra fiscal” entre os Estados. Porque a disciplina dos convênios não surtiu os efeitos esperados? Pela simples razão de não existir uma sanção eficaz contra a desobediência à Lei Complementar 24. Com efeito, as sanções previstas em seu art. 8º são politicamente inviáveis. Alguns Estados tentaram aplicar a sanção prevista no inciso I desse dispositivo, ou seja, declarar a nulidade do benefício e a ineficácia do crédito atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria. Contudo, a Suprema Corte entendeu que, em nome do princípio federativo, um Estado não poderia declarar unilateralmente a nulidade de lei de outro Estado.

Existe ainda outra razão para inviabilizar a aplicação pelos Estados da sanção do art. 8º, I: a medida resulta em punir o contribuinte pelo ilícito cometido pelo Estado ao conceder benefício não autorizado. A única via, portanto, que resta aos Estados que se sentem prejudicados é a proposição de ação direta de inconstitucionalidade contra a lei do Estado transgressor. Sempre que proposta, o Supremo tem declarado a inconstitucionalidade dos benefícios concedidos sem autorização do Confaz o que explica e justifica a súmula vinculante proposta.

Por outro lado, os Estados têm procurado outra solução para o impasse, facilitando a aprovação dos convênios autorizando os benefícios, mediante abolição da exigência de unanimidade para sua aprovação. Afinal, se nem as emendas à Constituição exige unanimidade, porque exigi-la para aprovação dos convênios? Naturalmente, a lógica nesse caso é outra.

Além do princípio da Federação – em risco desde que um Estado passa a ser obrigado a aceitar um convênio com o qual não concorda – existe a questão da economia de mercado, adotada implicitamente desde que eleita a livre concorrência como princípio informador da ordem econômica (CF, art. 170, IV).

Livre concorrência pressupõe não regulamentação do mercado, de modo que as decisões dos agentes econômicos levem em conta apenas o sistema de preços e, portanto, sejam indiferentes à tributação sobre o consumo. Ora, o uso extrafiscal da tributação sobre o consumo – no caso, benefícios fiscais relativos ao ICMS, como forma de alavancar a economia dos Estados – representa intervenção no sistema de preços e o abandono da economia de mercado. O tratamento tributário passa a ser relevante para a tomada de decisões.

Em tais circunstâncias, facilitar a aprovação de convênios autorizativos de benefícios fiscais, mediante abolição da unanimidade, implica, de certa forma, a legitimação da guerra fiscal.

A súmula vinculante seria a solução? Devemos considerar o efeito vinculante para a Administração Tributária que não mais poderia aplicar benefícios fiscais não autorizados pelo Confaz, mesmo quando previstos pela legislação do Estado.

Ora, a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc (como se a norma deixasse de existir desde sua edição), salvo se o Supremo modular os seus efeitos para contemplar os atos praticados antes da declaração de inconstitucionalidade. Mas, se não forem modulados os efeitos, a Administração Tributária seria obrigada a cobrar todo o crédito tributário que deixou de ser recolhido devido ao benefício fiscal irregularmente concedido.

Mais uma vez, o contribuinte estaria sendo punido por um ilícito cometido pelo Estado o que constituiria grave injustiça. Ninguém pode ser punido por cumprir a lei ou por utilizar benefício previsto na legislação. Assim, podemos esperar com bastante certeza que o Supremo module os efeitos da súmula vinculante, caso seja aprovada.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A ADI 1.851 e sua justificação

Velocino Pacheco Filho
Toda decisão, administrativa ou judicial, deve ser fundamentada. Trata-se de especificar as razões jurídicas ou factuais que justificam a decisão tomada. Porém, quais argumentos podem ser utilizados para fundamentar ou para justificar a decisão?

Conforme Neil McCormick, os raciocínios puramente dedutivos podem não ser suficientes. É válido, portanto, considerar as consequências possíveis ou prováveis decorrentes da decisão, em casos que envolvem a pertinência, a interpretação ou a classificação.

Contudo, McCormick não está defendendo a justificação das decisões apenas conforme a conveniência da Administração. Pelo contrário, defende que a avaliação das consequências depende de meticuloso exame à luz dos princípios constitucionais fundamentais. Ou seja, o uso de argumentos consequencialistas somente serão válidos se forem compatíveis com os valores adotados pelo ordenamento jurídico.

Tomemos como exemplo a ADI 1.851 AL que decidiu pela constitucionalidade do Convênio ICMS 13/1997, segundo o qual no caso de substituição tributária “para frente” (antecipação do recolhimento com encerramento da tributação), a base de cálculo estimada (para o cálculo da retenção do imposto devido por substituição tributária) não é provisória, mas definitiva. Assim, quando da concretização do fato gerador presumido, o fato do valor da operação (base de cálculo efetiva) se tornar conhecido não dá ensejo “à restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final”.

Na justificação da decisão, o Supremo Tribunal argumentou que a restituição da diferença despojaria o instituto “das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e arrecadação”. Trata-se obviamente de um argumento consequencialista. Será ele válido nesse caso?

Eficiência, economia e celeridade são qualidades que devem ser perseguidas pela Administração Tributária, mas não em prejuízo de outros valores, também presentes no ordenamento e de maior peso. É o caso da base de cálculo, definida por Ataliba como “a perspectiva dimensível do aspecto material da hipótese de incidência”. Becker, a seu turno, via na base de cálculo um papel fundamental, qual seja, a revelação da capacidade contributiva. Além disso, é na base de cálculo que verificamos a real natureza do tributo. Por isso, Paulo de Barros Carvalho leciona que a base de cálculo afirma, confirma ou infirma o fato gerador do tributo. Deve haver uma relação necessária entre o fato gerador e a base de cálculo, cuja lógica não deve ser rompida.

Cobrar o tributo utilizando uma base de cálculo estimada, recusando qualquer ajuste, mesmo depois de conhecida a base de cálculo real, atende a essa “relação necessária”? Não estará havendo uma cobrança indevida no caso da “bola de cristal” do Fisco errar para mais? Se errar para menos, não estará o Fisco abrindo mão de receita tributária?

A decisão da Corte teve em vista apenas a conveniência e a comodidade das Administrações Tributárias dos Estados. Entretanto, essas virtudes devem ser sopesadas com valores como a legalidade, a moralidade e a segurança jurídica.

A evasão tributária é, com razão, uma preocupação constante das Administrações Tributárias e constitui um objetivo válido a sua redução ao mínimo. Mas, a receita tributária não constitui um objetivo em si mesma. Pelo contrário, trata-se do meio para atingir os objetivos do Estado: a garantia dos direitos fundamentais (inclusive o direito à saúde e à educação), a prestação de serviços públicos de qualidade e, enfim, a consecução do bem comum.