DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

As incertezas da técnica legislativa

Velocino Pacheco Filho

O parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal determina que “lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”. Em cumprimento ao comando constitucional, foi editada a Lei Complementar 95/1998. A providência deveria uniformizar a redação das leis (e outros diplomas normativos) em todo território nacional.

Contudo, o art. 48 da Constituição do Estado de Santa Catarina foi acrescido de parágrafo único que reproduz o disposto na Constituição Federal. Com isso, foi editada a Lei Complementar estadual 208/2001 – depois substituída pela Lei Complementar 589/2013 – que passou a disciplinar a técnica legislativa no âmbito estadual. Está aberto o caminho para o caos!

Se o constituinte nacional pretendia uniformizar as regras de como devem ser escritas as leis, o surgimento de leis de técnica legislativa em cada Estado frustra esse objetivo. Se a lei estadual simplesmente reproduzir a lei federal, será inútil; se dela divergir – como é o caso da lei catarinense – estará instaurada a balbúrdia em que as leis de cada Estado obedecerão a diferentes regras, de acordo com a fantasia dos respectivos legisladores. 

Parece tão obvio que o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal prevê uma única lei, vigente em todo território nacional, dispondo sobre como fazer leis, aplicável à União e a todos os Estados da Federação. No entanto, o constituinte estadual cismou que Santa Catarina deveria ter suas próprias regras de como redigir leis. 

Apesar dessa abundância legislativa, o legislador ordinário nem sempre observa as regras quer da lei nacional, quer da estadual. 

Vejamos o seguinte exemplo: o art. 12, III, “b” da Lei Complementar 95/1998 dispõe que é vedada a renumeração de artigo ou de unidade superior a artigo. No caso de necessitar de intercalar outro artigo, sem romper com a sequência lógica da distribuição da matéria, manda o dispositivo utilizar o mesmo número do artigo anterior, seguido de letra maiúscula em ordem alfabética.

Mas isso somente pode ser feito com artigos ou unidade superior a artigo (i. e. seção capítulo, título etc.). Porém, não é raro encontramos na legislação parágrafos (que é uma divisão do artigo) cuja numeração é seguida de letras maiúsculas. É de admirar que o legislativo, seja a Assembleia Legislativa ou o Congresso Nacional, não disponha de revisores  que zelem para que as leis saiam de acordo com a técnica legislativa aprovada pelo próprio Poder Legislativo.   

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A criminalização da falta de recolhimento do ICMS

Velocino Pacheco Filho
A conduta delituosa prevista no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990 não é apenas deixar de recolher tributo no prazo legal, mas deixar de recolher tributo descontado ou cobrado. Incorre nesse crime o responsável tributário, conforme definido no inciso II do parágrafo único do art. 121 do CTN, os seja aquele a quem a lei atribui o dever de recolher o tributo no lugar do contribuinte. O exemplo perfeito é a retenção de Imposto de Renda pela fonte pagadora.

Mas, incorreria também nesse crime o contribuinte do ICMS que deixasse de recolher aos cofres públicos o ICMS declarado, relativo a operações próprias? Em outras palavras, o contribuinte de direito seria um mero agente arrecadador, descontando ou cobrando o ICMS devido na operação do comprador da mercadoria – contribuinte de fato? Nesse caso, apenas o dever de recolher teria sido atribuído a um terceiro, na forma do art. 128 do CTN. Conforme José Alves Paulino (Crimes contra a Ordem Tributária: comentários à Lei 8.137/90, Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 68):

... esse substituto tributário, na verdade, tem a natureza jurídica de depositário fiel das importâncias retidas de terceiros para, no prazo legal, fixado pela lei, fazer o recolhimento delas aos cofres públicos.
É a lei formal que prevê a obrigação de retenção e, igualmente por definição legal transformou as empresas em fonte arrecadadora de tributos e contribuições devidas por terceiros.

O ICMS declarado e não pago, nos termos da legislação vigente, caracteriza evidentemente infração tributária. Como tal deve ser inscrito em dívida ativa e levado à execução, acrescido da multa respectiva. Mas, além disso, constituiria também crime, punível com pena privativa de liberdade – detenção de seis meses a dois anos?

A descrição da conduta delitiva deve ser exata. Cesare Beccaria enunciou o princípio da legalidade no direito penal nos seguintes termos: nullum crimen, nulla poena sine praevia lege. O princípio foi consagrado no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição da República – portanto, entre os direitos fundamentais: “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Em outros termos, somente lei em sentido estrito pode definir qual conduta deve ser considerada criminosa. Não se admitem lacunas na configuração dos tipos criminais ou nas condutas que os caracterizam. Nem mesmo as chamadas “normas penais em branco” admitem lacunas, pois o conteúdo ausente deve ser preenchido por outra norma pertencente ao sistema. Se a previsão legal for inexistente ou incompleta, não fica caracterizado o crime e, sem crime, não há punição. O direito penal é, portanto, completo. Não se admite que a analogia, os costumes ou os princípios gerais de direito criminalizem condutas quando a lei não o fez expressamente. A analogia, no direito penal, somente é admissível em favor do acusado (in bonam partem). 

Assim, a conduta para ser tida como criminosa deve ser descrita de modo pormenorizado. Caso contrário, não pode ser punida. Conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt (Tratado de Direito Penal. Vol. 1: Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2008, p.11):

... pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras  é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida.

Ainda segundo esse autor, a descrição da conduta proibida não pode ter o seu sentido completado pelo juízo valorativo do magistrado, o que representaria grave violação à segurança jurídica e ao princípio da reserva legal.

Assim, para a caracterização do crime previsto no inciso II do art. 2º é imprescindível que o ICMS repercuta integralmente sobre o contribuinte de fato que arcaria com todo o ônus tributário. Apenas em tal hipótese o contribuinte de direito se caracterizaria como mero agente arrecadador.

Então, a falta de recolhimento do ICMS declarado pelo contribuinte de direito caracteriza o crime capitulado no inciso II do art. 2º da Lei dos crimes contra a ordem tributária?

Decidiu afirmativamente a esta questão a Quinta Turma do STJ, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 44465 SC, relator o Min. Leopoldo de Arruda Raposo, publicado no DJe 25-6-2015:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS DECLARADO PELO PRÓPRIO CONTRIBUINTE. FATO QUE SE AMOLDA, EM TESE, AO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 2º, INCISO II, DA LEI 8.137/1990. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. DESPROVIMENTO DO RECURSO.

O relator, em seu voto, deixa claro que o contribuinte deixou de recolher aos cofres públicos os valores apurados e declarados em Declarações de Informações do ICMS e Movimento Econômico - DIMEs à Secretaria da Fazenda do Estado de Santa Catarina, nos períodos de fevereiro a outubro de 2009, e dezembro de 2009 a fevereiro de 2010. Entendeu a Turma que pratica o ilícito aquele que não pagou, no prazo legal, ICMS que foi incluído em serviços ou mercadorias colocadas em circulação, mas não recolhido ao Fisco.

Contudo, em sentido contrário entendeu a Sexta Turma do mesmo Sodalício, no julgamento do REsp. 1.543.485 GO, Sexta Turma do STJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura (DJe 15-4-2016):

RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ARTIGO 2º, INCISO II,  DA  LEI  8.137/1990.  NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS PRÓPRIO. MERO INADIMPLEMENTO. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
1.  O delito do artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/90 exige que o sujeito passivo desconte  ou  cobre valores de terceiro e deixe de recolher o tributo aos cofres públicos.
2. O comerciante que vende mercadorias com ICMS embutido no preço e, posteriormente,  não  realiza  o  pagamento  do tributo não deixa de repassar  ao  Fisco  valor  cobrado  ou  descontado de terceiro, mas simplesmente torna-se inadimplente de obrigação tributária própria.
3. Recurso desprovido.

Quem tem razão? A matéria discutida envolve os conceitos de contribuinte de fato e de direito. Tratando-se de impostos sobre o consumo – como é o caso do ICMS – o contribuinte de direito é aquele que realiza o fato gerador, como definido no art. 121, parágrafo único, I, do CTN. O contribuinte de fato, por sua vez, é quem sofre a repercussão do tributo ou quem arca com o seu ônus financeiro – o consumidor, em última análise.

Alfredo Augusto Becker (Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 533) distingue entre a repercussão jurídica e a repercussão econômica do tributo. A “incidência jurídica do tributo significa o nascimento do dever jurídico tributário que ocorre após a incidência da regra jurídica sobre sua hipótese de incidência realizada”. O contribuinte de direito é a pessoa que sofre a incidência jurídica do tributo. Enquanto a “pessoa que suporta definitivamente o ônus econômico do tributo (total ou parcial), por não poder repercuti-lo sobre outra pessoa, é o contribuinte ‘de fato’”. 

Ora, leciona o mesmo autor que a repercussão do ônus econômico do tributo, do contribuinte de direito para outra pessoa, poderá ser total ou parcial, bem como poderá ser sobre uma só pessoa ou sobre diversas pessoas.

.... o legislador, ao criar a incidência jurídica do tributo, simultaneamente, cria regra jurídica que outorga ao contribuinte de jure do direito de repercutir o ônus econômico do tributo sobre outra determinada pessoa. Desde logo, cumpre advertir que esta repercussão jurídica do tributo, de modo algum, significa a realização da repercussão econômica do mesmo. Esta repercussão econômica pode ocorrer apenas parcialmente ou até não se realizar, embora no plano jurídico tenha se efetivado (idem, p. 534).

Contudo, “os fatores decisivos da repercussão econômica do tributo são estranhos à natureza do tributo e determinados pela conjuntura econômico-social” (idem, p. 541). Com efeito, embora o tributo seja sempre uma componente do preço, não necessariamente será suportado pelo contribuinte de fato. Ele pode ser suportado, no todo ou em parte pelo contribuinte de direito (via redução do mark up). Quando isso acontece?

Em primeiro lugar, a capacidade de transferir o tributo ao adquirente da mercadoria depende de como o mercado daquele produto se organiza. Assim, em um mercado oligopolista (poucos vendedores e muitos compradores), quem vende pode impor o preço a quem compra, inclusive repassando integralmente o imposto que onerou a mercadoria. Contudo, no caso dos monopsônios (um só comprador) ou oligopsônios (poucos compradores e muitos vendedores) o poder de monopólio atua contrariamente à repercussão do tributo. Como exemplo, temos o mercado de fumo em folha em que temos muitos produtores vendendo o seu produto e poucos compradores que determinam o preço que irão pagar pelo produto, inclusive fazendo o tributo recair sobre os vendedores. Geralmente o ICMS relativo a produtos agrícolas é diferido, de modo que o comprador desconta do produtor e recolhe ao Erário. Nesse caso, e falta de recolhimento caracterizaria o crime previsto no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990. 

Contudo, em regime de concorrência – muitos compradores e muitos vendedores – o preço é definido pela interação entre vendedores (oferta) e compradores (demanda). A empresa é uma tomadora de preços e consequentemente ela somente transfere o tributo ao adquirente se e na medida em que o mercado o permitir. A repercussão do tributo, nesse caso, depende de características do mercado do produto em questão, tais como a elasticidade-preço da demanda (i. e. como a demanda do produto reage a um aumento de preços).

Não é demais lembrar que o art. 170, IV, da Constituição consagra a livre concorrência como um dos princípios informadores da ordem econômica e que o § 4º do art. 173 determina que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Por outro lado, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, dispõe que lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência. 

Ora, em regime de concorrência, a empresa não vende o produto pelo preço que quiser, de modo a transmitir ao consumidor a integralidade do tributo. A empresa é uma tomadora de preços. Vejamos como isso ocorre: 

O preço cobrado do consumidor pode ser dividido em duas parcelas: uma que representa a remuneração do vendedor e outra que é receita do Estado (o tributo). Partindo de uma situação inicial sem tributação, a introdução do tributo implica em elevação de preço à qual os consumidores reagem diminuindo as quantidades demandadas (lei da demanda). Ao final, define-se uma nova posição de equilíbrio: novos preço e quantidade de equilíbrio. A questão é saber se a variação de preço (em relação à situação inicial) é suficiente para absorver o tributo. Caso afirmativo, a repercussão do tributo será total. Caso contrário, a repercussão será parcial e parte do tributo terá de ser absorvida pela diminuição da remuneração do vendedor. Nesse caso, o contribuinte de direito arca efetivamente com o ônus do tributo (ou parte dele) e não há que se falar em tributo “descontado ou cobrado” de terceiro como exige o art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, para ficar caracterizado o crime contra a ordem tributária.

Poder-se-ia objetar que este é um raciocínio econômico e não jurídico. Costuma-se dizer que “o direito cria suas próprias realidades”. Com efeito, o direito utiliza frequentemente ficções e presunções: ao completar 21 anos, quem na véspera era relativamente incapaz, adquire, de chofre, capacidade plena; o inimputável, passa, ao completar 18 anos, a responder criminalmente pelos seus atos. Conforme Becker, “na presunção a lei estabelece como verdadeiro um fato que provavelmente é verdadeiro; na ficção a lei estabelece como verdadeiro um fato que provavelmente ou com toda certeza é falso” (op. cit. p. 522).

O legislador lança mão de presunções e ficções para atender a propósitos de praticabilidade ou para resolver dificuldades. É por esse motivo que o legislador abandona a realidade e cria conscientemente uma falsidade. O poder do direito de criar suas próprias realidades, porém, não é ilimitado. O direito não pode revogar a lei da gravidade, nem a lei da oferta e da procura. O fato, em toda a sua complexidade não pode ser totalmente ignorado pelo direito. Em primeiro lugar, o uso de presunções e ficções deve ser justificado; em segundo, trata-se de prerrogativa do legislador e não do intérprete. 

Pois bem, o direito tributário brasileiro reconhece expressamente a repercussão econômica do tributo no art. 166 do CTN que ao tratar da restituição do indébito, para preservar os direitos do contribuinte de jure, condicionou a restituição à prova de que o requerente não repassou o ônus do tributo ao adquirente da mercadoria ou, tendo-o repassado, estar por ele autorizado a pedir restituição. Daí que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 546, do seguinte teor: “Cabe restituição de tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte ‘de jure’ não recuperou do contribuinte ‘de facto’ o ‘quantum’ respectivo”.

O requerente poderá demonstrar que arcou com o ônus do imposto e não o repassou no preço cobrado. Em outras palavras, o legislador reconhece expressamente que o tributo não necessariamente repercute sobre o contribuinte de fato, caso em que será suportado, ainda que parcialmente pelo contribuinte de direito.

Nesse caso, a criminalização da simples falta de recolhimento decorre de uma ampliação, não pretendida pelo legislador, e da adoção de uma ficção pelo intérprete (qual seja: que o tributo sempre repercute, integralmente, sobre o consumidor). Porém, a repercussão econômica não foi afastada pelo legislador positivo. Pelo contrário, ele a reconhece ao tratar de repetição do indébito.

Então, considerando a repercussão econômica, não podemos afirmar simplistamente que todo o tributo é sempre suportado pelo contribuinte de fato. Por conseguinte, não se pode afirmar que o ICMS declarado e não recolhido caracterizaria necessariamente o crime previsto no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990.

Becker, com espeque em Earl R. Rolph, critica o entendimento de que o acréscimo do tributo ao preço, por si só, significa repercussão do mesmo. É o caso dos que se julgam tributados quando se lhes apresenta uma fatura em que o vendedor põe o imposto como uma das parcelas. O preço cotizado separadamente do imposto na ausência deste não seria um fato observável (BECKER, 2002, p. 541). 

O autor citado refere-se a esta visão esquemática do direito tributário, como “a simplicidade da ignorância”. O direito de reembolso – o direito de recuperar o imposto recolhido do contribuinte de fato – não constitui prova da repercussão. Mediante o direito de reembolso, ocorre no plano jurídico uma repercussão jurídica do tributo que é independente da repercussão econômica do mesmo (op. cit, p. 414).
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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A regra de contagem de prazos no direito tributário

Velocino Pacheco Filho

O art. 219 do novo Código de Processo Civil – Lei 13.105, de 2015 – adotou a regra de computarem-se somente os dias úteis, na contagem de prazos em dias. Deverá essa regra ser adotada também no direito tributário?

A resposta deve ser negativa, por dois motivos.

Em primeiro lugar, a aplicação das regras do novo CPC, conforme dispõe o § 2º do art. 1.046, as suas disposições aplicam-se apenas supletivamente aos procedimentos regulados em outras leis, como é o caso do direito tributário que tem regra própria para a contagem dos prazos – art. 210 do CTN. Trata-se da velha regra de resolução de antinomias: lex specialis derrogat generali.

Aplicação supletiva quer dizer que se aplica de modo complementar. Apenas quando o ramo do direito em questão não tiver regra própria é que pode ser aplicada a regra do CPC. Como o parágrafo único do próprio art. 219 esclarece, a regra de contagem de prazos aplica-se somente aos prazos processuais.

Em segundo lugar, o Código Tributário Nacional – Lei 5.172/1966 – embora promulgado como lei ordinária, foi recepcionado como lei complementar – conforme sua materialidade – pela Constituição de 1967, pela EC 1/1969 e pela Constituição de 1988. Nessa última a recepção foi expressa, nos termos do § 5º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Com efeito, o § 1º do art. 19 da Constituição Federal de 1967 reservou à lei complementar a competência para estabelecer normas gerais de direito tributário, dispor sobre conflitos de competência entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e regular as limitações constitucionais do poder de tributar.

O direito brasileiro não admite inconstitucionalidade formal superveniente. Assim, se determinada matéria foi tratada por lei ordinária, de acordo com o rito legislativo então em vigor e se o seu conteúdo não for contrário à nova constituição, ela será recepcionada pela nova ordem constitucional, mesmo que a nova constituição exija lei complementar para tratar da mesma matéria.

Então, se o Código Tributário Nacional adquiriu o status de lei complementar – é materialmente lei complementar – somente pode ser alterado por lei complementar. Ora, o Código de Processo Civil não é lei complementar, logo, suas disposições não tem o condão de alterar disposição do Código Tributário Nacional.

Os prazos fixados na legislação tributária continuam regendo-se pela regra do art. 210 do CTN, ou seja, são contínuos, excluindo-se na sua contag

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Em tempos de PEC 241

Velocino Pacheco Filho

Como solução heroica para equilibrar as contas públicas, o Governo propõe o engessamento do gasto público pelos próximos vinte anos, reajustado apenas pela inflação. A irresponsabilidade na gestão da coisa pública ao longo dos anos levou a isso.

Contudo, outros aspectos devem ser levados em conta, como a deterioração dos serviços públicos em geral oferecidos à população. Quem mais sofre com isso é exatamente a população de baixa renda, os mais desprotegidos, que dependem mais dos serviços oferecidos pelo Estado.

Alguns setores reclamam investimentos urgentes como saúde, educação e segurança pública. Quanto à segurança, a escalada da violência, o crime organizado e o desaparelhamento da polícia levam a crer na falência do próprio Estado que demonstra ser incapaz de proteger o cidadão e seus bens.

A falência dos serviços públicos atinge, por fim, a própria economia: a mão-de-obra disponível cada vez mais desqualificada e vulnerável à doenças; necessidade de maior gasto do setor privado em segurança, etc.

O Governo anuncia que não irá aumentar impostos, o que constitui uma política sensata, considerando que a capacidade de contribuir dos brasileiros está chegando ao seu limite. O engessamento do gasto combinado com aumento de impostos é uma receita segura para a recessão. Por outro lado, a dívida pública, como forma de financiamento do Estado, revela-se inviável pela forte pressão que provoca sobre o gasto. 

Então, como poderão ser financiados os investimentos urgentes e necessários em serviços públicos?

Dois caminhos se oferecem – embora politicamente impopulares – que devem ser enfrentados conjuntamente: a busca da maior eficiência na administração pública e a revisão dos benefícios fiscais. Qual a justificativa para a renúncia fiscal?

O art. 37 da Constituição da República consagra a eficiência como um dos princípios que informam a administração pública. A eficiência – com a eficácia como seu corolário – consiste na melhor utilização dos recursos disponíveis para obter o melhor resultado possível. Eficiência administrativa implica eliminação do desperdício, da irresponsabilidade na gestão pública, da protelação e de negociação nas licitações públicas. Eficiência administrativa tem como contrapartida a prestação de contas, a gestão transparente, o respeito pelo cidadão-contribuinte, a ética no serviço público, enfim, aquilo que na língua inglesa é designado como accountability.

Mas isso não basta! Urge revisar os benefícios fiscais que se eternizam na legislação. Todos são iguais perante a lei; todos devem contribuir para o financiamento do Estado, na medida da capacidade contributiva de cada um. A exceção a esta regra deve ser devidamente justificada. Porque alguém deve ser dispensado de uma obrigação que deve ser de todos - um dever da cidadania? 

A desoneração tributária, quando não justificada, conforme os princípios que regem o Estado democrático de direito, não passa de um privilégio odioso que beneficia alguns em detrimento da maioria. Nessa perspectiva devem ser revistos os regimes especiais de tributação e os tratamentos tributários diferenciados que impliquem dispensa de tributos concedida individualmente. A boa hermenêutica manda que tudo o que for exceção a uma regra geral, como o dever de todos de pagar impostos, deve ser interpretado restritivamente. 


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Valor da operação entre empresas interdependentes

Velocino Pacheco Filho

Conforme dispõe o art. 13, I, da Lei Complementar 87/1996, a base de cálculo do ICMS, nas operações de saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte, na transmissão a terceiro de mercadoria depositada em armazém geral ou na transmissão da propriedade de mercadoria quando não transitar pelo estabelecimento transmitente, é o valor da operação. Leciona Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 345) que o valor da operação, “na imensa maioria dos casos, é a compra e venda feita pelo produtor ou comerciante”. Roque Antonio Carrazza, por sua vez, entende que “a base de cálculo do ICMS deve necessariamente ser uma medida da operação mercantil realizada” (ICMS. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 73).

No mesmo sentido, leciona José Eduardo Soares de Mello (ICMS e IPI na Importação: questões polêmicas, RDT 65, p. 161) que:

A base de cálculo deve ater-se, irrestritamente, aos parâmetros constitucionais, e, peremptoriamente, ao fato imponível, sendo certo que a materialidade de cada tributo, por si só, é suficiente para medir normativamente o quantum a ser devido pelo sujeito passivo da obrigação.
Não padece dúvida de que a valoração ínsita à base de cálculo deve ser sempre (dogmaticamente mesmo) haurida no respectivo fato jurígeno, compreendido na materialidade disposta na Constituição.

Em síntese, na maioria dos casos, o valor da operação nada mais é que o preço acertado entre comprador e vendedor. Em princípio, prevalece a liberdade de contratar, ou seja, dos intervenientes no negócio estipularem o preço que melhor atenda aos interesses recíprocos.

No entanto, tratando-se de operação entre empresas interdependentes – assim definidas quando uma delas, por si, seus sócios ou acionistas e respectivos cônjuges ou filhos menores detiver mais de 50% do capital da outra – não podemos falar em preço livremente acertado entre as partes. Pelo contrário, como as empresas fazem parte de um mesmo grupo, o preço será determinado conforme a conveniência do grupo. O preço praticado pode, inclusive, ser subfaturado, com reflexo sobre a arrecadação. 

As regras relativas à transferência – como as que constam do § 4º do referido art. 13 – não se aplicam ao caso, pois são específicas para saídas destinadas a estabelecimento localizado em outra unidade da Federação, pertencente ao mesmo titular.

Contudo, dispõe o art. 15 do mesmo diploma legal que, não havendo valor da operação, em substituição aos critérios previstos no caput do art. 13, deverá ser adotado:

a) o preço corrente da mercadoria, ou de seu similar, no mercado atacadista do local da operação ou, na sua falta, no mercado atacadista regional, caso o remetente seja produtor, extrator ou gerador, inclusive de energia elétrica;

b) o preço FOB estabelecimento industrial à vista, caso o remetente seja industrial; ou

c) o preço FOB estabelecimento comercial à vista, na venda a outros comerciantes ou industriais, caso o remetente seja comerciante. 

Acrescenta o § 1º desse artigo que, nas hipóteses (b) e (c), deverá ser adotado o preço efetivamente cobrado pelo estabelecimento remetente na operação mais recente. Caso o remetente não tenha efetuado venda de mercadoria, o valor da operação deverá ser o preço corrente da mercadoria ou de seu similar no mercado atacadista do local da operação ou, na sua falta, no mercado atacadista regional.

No caso do remetente não efetuar vendas a outros comerciantes ou industriais ou, em qualquer caso, se não houver mercadoria similar, manda o § 2º que a base de cálculo deverá ser equivalente a 75% do preço de venda corrente no varejo.

Ora, as operações entre empresas interdependentes correspondem exatamente à situação prevista no art. 15: não existe um “preço” acordado entre as partes, mas o preço pode ser fixado ao inteiro alvedrio do grupo empresarial envolvido. Mas no interesse das finanças publicas, inclusive para fins de cálculo da participação dos Municípios, o valor da operação não pode ficar sem qualquer regramento. Limites devem ser colocados para que o valor fique em torno de um “preço de mercado”, conforme os critérios fixados no art. 15 da LC 87/96.


segunda-feira, 12 de setembro de 2016

ICMS-ST: distinção entre restituição e ressarcimento

Velocino Pacheco Filho
Qual a distinção entre restituição e ressarcimento? A restituição é a devolução do tributo pago indevidamente, conforme arts. 165 a 169 do Código Tributário Nacional.

No caso da substituição tributária “para frente”, o § 7º do art. 150 da Constituição Federal assegura a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. A legislação tributária catarinense trata da restituição, relativamente à substituição tributária “para frente”, no art. 26 do Anexo 3 do RICMS-SC. 

Já no caso de ressarcimento, diversamente da restituição, trata-se de imposto devido. Apenas o sujeito ativo é outro, diverso daquele a quem foi efetuado o pagamento.

Quando isso acontece? 

A hipótese é de substituição tributária “para frente”, em que o imposto foi recolhido antecipadamente a favor de um Estado, quando a mercadoria for revendida a destinatário estabelecido em outro Estado.

Relembrando, na substituição tributária “para frente”, conforme definido no já mencionado § 7º, a lei atribui a sujeito passivo do imposto a responsabilidade pelo pagamento de imposto cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente. Então, ao contribuinte substituto cabe o recolhimento antecipado do imposto devido pelas operações subsequentes, até o consumidor final (fato gerador presumido) que encerra o ciclo de comercialização da mercadoria. 

Contudo, se o contribuinte substituído catarinense revender a mercadoria para destinatário estabelecido em outro Estado, o imposto recolhido antecipadamente não será mais devido a Santa Catarina, mas ao Estado onde localizado o destinatário. Logo, o contribuinte deverá efetuar nova retenção em favor do Estado de destino e, por conseguinte, proceder ao ressarcimento do imposto retido originalmente em favor de Santa Catarina. 

Restituição e ressarcimento, como visto, são coisas distintas que não se confundem. Daí que disposições relativas à restituição não se aplicam ao ressarcimento e vice-versa. 

O ressarcimento rege-se, em princípio, pelo art. 24 do Anexo 3 do RICMS-SC: “o contribuinte que, tendo recebido mercadoria com imposto retido por substituição tributária a favor deste Estado, efetuar nova retenção em favor de outro Estado ou do Distrito Federal, solicitará o ressarcimento do imposto retido na operação anterior através de requerimento endereçado à Gerência Regional a que jurisdicionado”. Conforme § 2º desse artigo, “de posse da cópia do despacho no processo e da nota fiscal referida no § 1º, V, o estabelecimento que efetuou a primeira retenção poderá deduzir, do recolhimento seguinte que efetuar em favor deste Estado, o imposto ressarcido”. Ou seja, o ressarcimento toma a forma de uma autorização para que o contribuinte substituto, que efetuou a primeira retenção – a favor de Santa Catarina –, deduza o imposto originalmente antecipado do recolhimento seguinte que efetuar em favor de Santa Catarina. Parece óbvio que a autorização é para compensar imposto retido por substituição tributária com imposto devido por substituição tributária.

Contudo, o art. 25 do mesmo anexo, alternativamente à forma prevista no art. 24, permite que o ressarcimento seja efetuado por meio de crédito em conta gráfica do imposto destacado e retido. Esclarece o parágrafo único desse artigo que o imposto originalmente retido a título de substituição tributária “poderá ser utilizado para compensação com imposto próprio do estabelecimento ou com eventual imposto devido por substituição tributária ao Estado”.

Então, enquanto a forma de ressarcimento prevista no art. 24 permite a compensação apenas com imposto devido por substituição tributária, a forma prevista no art. 25 permite que a compensação se dê também com o imposto próprio do estabelecimento.

Entretanto, o art. 25-A, acrescido pelo Decreto 1.593/2008, trouxe uma terceira forma de ressarcimento, mediante regime especial concedido pelo Diretor de Administração Tributária. O ressarcimento poderá ser feito de forma diferenciada ao remetente das mercadorias, por fornecedores adrede indicados, para os quais será emitida nota fiscal, consignando o valor do imposto a ser ressarcido. Conforme § 5º do mesmo artigo, o fornecedor, de posse da referida nota fiscal, “poderá deduzir o valor nela constante do próximo recolhimento que fizer a este Estado independentemente de prévia autorização do Fisco”.

Ora, o fornecedor, no caso, é o contribuinte substituto que efetuou a primeira retenção do ICMS-ST a favor de Santa Catarina. Tanto o procedimento previsto no art. 25 quanto o previsto no art. 25-A são formas alternativas de ressarcimento à forma prevista no art. 24. Sendo formas alternativas, cada uma tem suas próprias regras que não são intercambiáveis. Apenas a forma prevista no art. 25 admite expressamente que o ICMS-ST possa ser usado para compensar o ICMS próprio do estabelecimento. Portanto, infere-se, da leitura sistemática dos dispositivos envolvidos, que, na falta de permissão expressa, apenas o ICMS-ST pode ser compensado, no caso de ressarcimento na forma do art. 25-A.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

O emprego da analogia

Velocino Pacheco Filho

O art. 12. I, da Lei 3.938/1966, de Santa Catarina, trata a analogia como “método ou processo supletivo de interpretação”, enquanto o art. 108, I, do Código Tributário Nacional, dispõe que a analogia será utilizada pela autoridade competente para aplicar a legislação tributária, na ausência de disposição expressa.

Há uma divergência básica entre o texto do CTN e o da lei catarinense: enquanto para a lei catarinense, a analogia é um método supletivo de interpretação, para o CTN, trata-se, indubitavelmente de integração.
 
Ora, a integração da legislação difere fundamentalmente da interpretação.

A interpretação refere-se ao sentido da norma, enquanto na integração não existe norma. Na integração, a norma – supondo a completude do ordenamento – deve ser construída a partir do próprio ordenamento, para dar efetividade ao art. 5º, XXV da Constituição (inafastabilidade do controle jurisdicional), ou seja, trata-se da proibição do non liquet.

Em primeiro lugar, devemos considerar que a falta de norma nem sempre é motivo para a integração do direito, mediante o emprego da analogia ou de outro método integrativo. É o caso do “silêncio eloquente” da lei: “quando a lei quis, disse; quando não quis, guardou silêncio”.

A falta de norma – que permita a integração – deve caracterizar uma lacuna ou incompletude do ordenamento. O direito existe para regular todas as condutas humanas – observa Marco Aurélio Greco (Planejamento Tributário. 3ª ed. São Paulo Dialética, 2011, p. 176) – mas, em determinado momento pode não ser completo. Podem existir momentos de incompletude, na relação entre norma e fato – já que a norma não pode abranger toda a complexidade do mundo real. Mas, o ordenamento, porque não pode conviver com fatos não previstos, tende à completude. Se o ordenamento não é completo, ele é completável, e o próprio ordenamento se encarrega de prever as regras para que se completem os vazios.

Sobre o tema, leciona Miguel Reale (Filosofia do Direito. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 565):

É o ordenamento jurídico no seu todo que é pleno (visto como nenhum juiz pode deixar de sentenciar sob pretexto de lacuna ou obscuridade da lei – Código de Processo Civil, art. 126) e não o mero “sistema de legislação” como tal, pois até mesmo o legislador reconhece e proclama omissões inevitáveis da lei, determinando que, sendo ela omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito (Lei de Introdução ao Código Civel, art. 49).
Recorrendo-se aos costumes, à analogia e aos princípios gerais do Direito integra-se o sistema legal, que se atualiza assim, como experiência ou ordenamento jurídico; donde se há de concluir que uma regra jurídica não pode nem deve ser tomada de per si, como se fosse uma proposição lógica em si mesma inteiramente válida e conclusa, pois o seu significado e a sua eficácia dependem de sua funcionalidade e de sua correlação com as demais normas do sistema, assim como do conjunto de princípios que a informam.

Conforme Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 263), o importante é determinar as circunstâncias em que se apresenta uma lacuna no direito. Presume-se a existência de uma lacuna apenas quando a ausência de norma é considerada indesejável pelo órgão responsável pela aplicação do direito, do ponto de vista da política jurídica.

Então, somente se pode pensar em integração da legislação na presença de uma lacuna. O primeiro método de integração da legislação tributária é a analogia, conceituada por Norberto Bobbio (Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Polis; Brasília: UnB, 1989, p. 151) como “o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante”. No entanto, para atribuir ao caso não-regulamentado as mesmas consequências jurídicas do caso regulamentado semelhante “é preciso que entre os dois casos exista não uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante”, ou seja, “razão suficiente pela qual ao caso regulamentado foram atribuídas aquelas e não outras consequências”. O caso regulamentado e o não-regulamentado devem ter em comum a mesma ratio legis.

Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito. 10ª e. Rio de Janeiro: Forense, 1988. pg. 208) fala em uma semelhança essencial entre as duas situações, da qual dependem todas as conseqüências merecedoras de apreço na questão discutida. Limongi França por sua vez (Hermenêutica Jurídica. 7ª e. São Paulo: Saraiva, 1999, pg. 45) leciona que deve existir ao menos um elemento de identidade entre o caso previsto e aquele não previsto e que a identidade entre os dois casos deve atender ao elemento em vista do qual o legislador formulou a regra que disciplina o caso previsto, constituindo-lhe a ratio legis.

Para aplicação da analogia, portanto, devemos responder às seguintes questões:

a) existe lacuna, no sentido da a falta de norma específica constituir uma incompletude insatisfatória do ordenamento jurídico tributário? Em outras palavras, a falta de norma para o caso em tela acarreta uma injustiça evidente, de acordo com os critérios de justiça previstos no ordenamento?

b) existe um elemento de identidade entre as duas situações (a normada e a não-normada) e que consiste na sua ratio legis?

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Base de cálculo do ITCMD

Velocino Pacheco Filho

Conforme dispõe o art. 38 do Código Tributário Nacional, a base de cálculo do imposto de transmissão o valor venal dos bens ou direitos transmitidos. Em Santa Catarina, o ITCMD rege-se pela Lei 13.136, de 25 de novembro de 2004, cujo art. 7º define a base de cálculo como o valor venal (ou de mercado) do bem ou direito, ou o valor do título ou crédito transmitido.

Contudo, a herança compreende não só bens e direitos, mas também dívidas que são assumidas pelos herdeiros. Então, o imposto deve incidir apenas sobre o valor venal dos bens e direitos ou sobre o valor deduzidas as dívidas do de cujus. 

O art. 12 da Lei 10.705/2000, do Estado de São Paulo, dispõe que “no cálculo do imposto, não serão abatidas quaisquer dívidas que onerem o bem transmitido, nem as do espólio”. Portanto, o Fisco paulista está obrigado a exigir o imposto, sem deduzir qualquer valor a título de dívida, enquanto estiver em vigor o referido dispositivo. Ao contribuinte restaria somente invocar a tutela jurisdicional do Estado, em defesa de seu dirteito.

Contudo, não existe dispositivo semelhante na lei catarinense. Qual deve ser a base de cálculo do ITCMD em Santa Catarina?

A quem pertencem as dívidas? Se forem do espólio, devem ser abatidas; pelo contrário, se forem encargos dos herdeiros, não podendo ser abatidas.

Leciona Luiz Eduardo de Oliveira Leite (Comentários ao Novo Código Civil, (5ª ed., volume XXI: do direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 824) que com a abertura da sucessão (o falecimento) “instaura-se entre os herdeiros um verdadeiro condomínio sucessório, um estado de comunhão, relativamente aos bens do acervo hereditário, que só cessará com a partilha”. Para tanto, procede-se ao inventário dos bens deixados pelo autor successionis que são relacionados, descritos minuciosamente e avaliados, para possibilitar a repartição do acervo entre os herdeiros de modo a cada um receber o que é seu. Assim, à medida que prossegue o inventário, o direito dos herdeiros passa, paulatinamente, de mera expectativa de direito a direito concreto. 

Mas, como o patrimônio compreende tanto bens e direitos quanto obrigações, como devem ser tratadas as dívidas contraídas pelo de cujus? O mesmo autor responde que onde há dívidas, há responsabilidade solidária dos herdeiros. Assim, somente se pode falar em bens da herança em relação àqueles que sobram, depois de deduzidos do espólio aquilo que a outrem pertence. Portanto, antes que se proceda à distribuição da herança, deve-se atender ao pagamento das dívidas. A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido que são divididas pro rata entre os herdeiros, conforme suas cotas hereditárias. 

Uma vez aberta a sucessão, as obrigações do finado se transmitem, juntamente com a herança, aos herdeiros. Mas, esses somente respondem pelas dívidas preexistentes ao falecimento do de cujus, nos limites da herança. A responsabilidade do herdeiro não é ultra vires hereditatis

Os bens constitutivos da herança respondem pelo passivo desde a abertura da sucessão até a partilha. Mas, uma vez efetuada a partilha, a responsabilidade dos herdeiros é proporcional à parte que couber a cada herdeiro. Enquanto a herança se manteve em estado de indivisão, todos os bens hereditários respondiam coletivamente, porque nenhum dos herdeiros tinha ainda direitos sobre bens certos e determinados. A partir da divisão da herança, cada herdeiro passa a responder individualmente pela satisfação das dívidas da herança, proporcionalmente à respectiva quota.

Conforme Leandro Paulsen (Direito Tributário. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.729), a sujeição passiva do imposto é limitada à quota parte transmitida a cada herdeiro. Mas, os quinhões hereditários – i.e. as bases de cálculo – somente são conhecidas ao final do procedimento de inventário, com o esboço de partilha. 

A seu turno, Sacha Calmon Navarro Coêlho (Curso de Direito Tributário Brasileiro. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, 458) diz que a transferência patrimonial apenas na aparência é o fato gerador do imposto. O que se tributa na verdade são os acréscimos patrimoniais obtidos pelos donatários, herdeiros e legatários. Em outras palavras, o que se tributa é o acréscimo patrimonial atribuído a cada um na partilha.

Não tem sido outra a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como no RE 109.416, Primeira Turma, Rel. Min. Octavio Gallottti, DJ de 7/8/87:

IMPOSTO DE TRANSMISSÃO 'CAUSA MORTIS'. INCIDE SOBRE O MONTANTE LÍQUIDO DA HERANÇA, SENDO LÍCITO ABATER DO CÁLCULO AS DESPESAS FUNERÁRIAS PREVISTAS NO ART. 1.797 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE QUE SE CONHECE PELA LETRA 'D' DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL, PARA NEGAR-LHE PROVIMENTO. 

Mais recentemente, nesse sentido, decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Agravo Nº 70038681482, Oitava Câmara Cível, Relator: Rui Portanova, Julgado em 14/10/2010):

AGRAVO. ITCD. BASE DE CÁLCULO. DÍVIDAS. NÃO INCIDÊNCIA. As dívidas não devem ser acrescidas, mas abatidas do monte-mor para efeitos de base de cálculo de tributos, razão pela qual não podem servir de base para a incidência do ITCD. NEGARAM PROVIMENTO.

Esse tem sido o entendimento majoritário como, inclusive, orienta a Secretaria de Estado da Fazenda do Estado de Minas Gerais, entre outros, em sua página na internet: “para se obter a base de cálculo do ITCD, deve-se avaliar a totalidade do patrimônio, abater as dívidas do falecido que tenham sido declaradas habilitadas pelo juiz e, em seguida, excluir a meação do cônjuge ou companheiro, se for o caso”. 

O art. 12 da lei paulista vigora apenas em relação ao Estado de São Paulo e, enquanto estiver em vigor, abriga apenas os servidores do Fisco paulista. Nos demais Estados, como Santa Catarina, querer adotar semelhante regra caracterizaria infração à moralidade administrativa.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

O diferimento, as limitações dos decretos em matéria tributária e a indisponibilidade do crédito tributário

Velocino Pacheco Filho
Conforme Sacha Calmon Navarro Coelho (Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 199), “ocorre diferimento do imposto quando o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria – estamos falando de ICMS – é transferido para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro”.
Por sua vez, a Primeira Turma do STF, no julgamento do RE 112.354-6 (DJ 14-2-92, p. 1167) distinguiu o diferimento da isenção nos seguintes termos: “do diferimento não resulta eliminação ou redução do ICM; o recolhimento do tributo é que fica transferido para momento subsequente”.
Ora, no mesmo sentido, o art. 1º do Anexo 3 do Regulamento do ICMS de Santa Catarina dispõe que “nas operações abrangidas por diferimento, fica atribuído ao destinatário da mercadoria a responsabilidade pelo recolhimento do imposto na condição de substituto tributário”.
Conforme o § 1º desse artigo, “o imposto devido por substituição tributária subsumir-se-á na operação tributada subseqüente promovida pelo substituto”. Contudo, dispõe o § 2º, o destinatário deverá recolher o imposto diferido, entre outras hipóteses, (i) quando não promover nova operação tributada; (ii) a promover sob regime de isenção ou não-incidência; ou (iii) se ocorrer qualquer evento que impossibilite a ocorrência do fato gerador do imposto. O imposto diferido, entretanto, deverá ser recolhido proporcionalmente à parcela não-tributada, no caso de operação subsequente beneficiada por redução da base de cálculo do imposto.
Somente não será devido o recolhimento do imposto diferido (i) no caso de operações que destinem mercadorias diretamente para o exterior do país; ou (ii) nas operações beneficiadas por isenção ou redução de base de cálculo, com expressa manutenção de créditos.
A lógica dessa regra é exatamente o direito a não estornar o crédito nessas hipóteses. O imposto diferido gera um direito de crédito, apesar da operação subsequente não estar sujeita à incidência do imposto, por expressa disposição legal (exceção à regra do inciso II, b, do § 2º do art. 155 da CF).
Então, o diferimento do imposto não representa sua dispensa. Pelo contrário, o imposto diferido subsume-se na operação tributada subsequente. Mas, se a operação não for tributada, o destinatário deve recolher o imposto que foi diferido.
Suponhamos agora que o imposto devido na operação subsequente seja inferior ao que foi diferido. Ainda podemos dizer que, nesse caso, o imposto diferido subsumiu-se na operação tributada subsequente?
Conforme Dicionário Aurélio, “subsumir” vem de sub- + lat. sumere (tomar, colher, aceitar) e tem os seguintes significados: Conceber (um indivíduo) como compreendido numa espécie. 2. Conceber (uma espécie) como compreendida em um gênero. 3. Considerar (um fato) como aplicação de uma lei. Como “subsumir” é empregado, no nosso caso, como elemento integrante da própria norma, podemos, de plano, afastar o terceiro significado. Dos outros dois, podemos extrair que “subsumir” refere-se à operação de absorção (ou compreensão) da parte no todo ou do menor pelo maior.
Em síntese, se o imposto devido na operação subsequente for inferior ao imposto diferido, a subsunção ocorre apenas parcialmente. Como, conforme acórdão colacionado do Supremo Tribunal Federal, do diferimento não resulta eliminação ou redução do imposto, infere-se que a parcela do imposto diferido que não se subsumiu na operação subsequente deve ser recolhida.  
Pois bem, o Decreto 909, de 2 de abril de 2012, acresceu o § 6º ao art. 1 º do Anexo 3 do RICMS-SC, dispensando “o recolhimento do imposto diferido por ocasião da entrada de matéria-prima e insumos industriais, quando empregados na fabricação de produto cuja saída seja beneficiada por crédito presumido em substituição aos créditos efetivos”.
A não-cumulatividade do ICMS, conforme art. 155, § 2º, I, da Constituição da República, consiste na compensação do imposto devido com o que foi cobrado (crédito) nas etapas anteriores de comercialização pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Chegamos assim ao conceito de imposto apurado como o resultado da diferença entre o débito e o crédito em cada período de apuração.
O crédito presumido é um valor determinado em lei, de acordo com critérios previamente definidos, que também vai compensar o imposto devido (débito). Pode ser benefício fiscal – caso em que alguns Estados chamam de crédito outorgado – ou uma forma simplificada de apuração. A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no AgRg no RE 551.155, relator Min. Joaquim Barbosa (RDDT 202: 223, 2012) fez a seguinte apreciação sobre a matéria:
2. Situação peculiar. Regime alternativo e opcional para apuração do tributo. Concessão de benefício condicionada ao não registro de créditos. Pretensão voltada à permanência do benefício, cumulado ao direito de registro de créditos proporcionais ao valor cobrado. Impossibilidade. Tratando-se de regime alternativo e facultativo de apuração do valor devido, não é possível manter o benefício sem a contrapartida esperada pelas autoridades fiscais, sob pena de extensão indevida do incentivo.
Mais uma vez, estamos diante de norma supostamente simplificadora: o § 6º do art. 1º do Anexo 3  dispensa o recolhimento do imposto diferido por ocasião da entrada de matéria-prima e insumos industriais, quando empregados na fabricação de produto cuja saída seja beneficiada por crédito presumido em substituição aos créditos efetivos. 
A primeira dúvida sobre a sua aplicação é a quais créditos efetivos se refere: Será o imposto diferido? Pela regra do § 4º desse artigo, “é vedado o destaque do imposto em documento fiscal correspondente à operação abrangida por diferimento”. Ademais, a regra dispensa o recolhimento do imposto diferido. Em que situação? Se a operação de saída do produto industrializado for tributada, o imposto diferido subsume-se no imposto devido pela saída. Então, o que fica dispensado?
Mas, pelo contrário, se a saída não for tributada – hipótese em que o imposto diferido deveria ser recolhido – o crédito presumido estaria compensando qual imposto? 
Por outro lado, se a intenção do legislador era dispensar, de alguma forma, a tributação, estaremos diante de benefício fiscal concedido sem a necessária autorização por convênio, celebrado pelo Confaz, conforme rito previsto na Lei Complementar 24/1975. A dispensa de recolhimento faz o diferimento transmudar-se em isenção.
Ora, decreto não é o veículo adequado para dispensar o recolhimento de tributo, matéria sob reserva absoluta de lei.  O inciso III do art. 71 da Constituição do Estado de Santa Catarina (disposição semelhante ao do inciso IV do art. 84 da Constituição Federal) restringe o papel dos decretos e regulamentos à fiel execução das leis.
Nesse sentido, a Primeira Turma do STJ, no R em MS 21.942 MS (RDDT 189: 225, 2011), decidiu que “4. ... a validade dos atos normativos secundários (entre os quais figura o decreto regulamentador) pressupõe a estrita observância dos limites impostos pelos atos normativos primários a que se subordinam (leis, tratados, convenções internacionais etc.)”.
Como atos do Poder Executivo, os decretos e regulamentos estão limitados em sua abrangência às leis que regulamentam. Em matéria tributária, explica-se a restrição porque o crédito tributário é indisponível: segundo magistério de Diógenes Gasparini (Direito Administrativo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 17-18):
Não se acham, segundo esse princípio, os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. Aqueles e este não são seus senhores ou donos, cabendo-lhes por isso tão-só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa finalidade é o Estado.
Concluindo, a dispensa de recolhimento do imposto diferido – quando este não se subsume completamente na operação subsequente – caracteriza, de fato, uma isenção que somente pode ser instituída por lei (não por decreto) e, no caso do ICMS, mediante prévia autorização pelo Confaz. 
Uma última indagação: semelhante decreto caracterizaria crime de responsabilidade, dada a natureza indisponível do crédito tributário?

segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Brasil tem jeito?

Velocino Pacheco Filho

Aumentar impostos será a única forma possível de resolver os problemas de caixa do Governo?

O art. 37 da Constituição prevê a eficiência como um dos princípios que informam a Administração Pública. Isso significa que deve ser dado o melhor uso possível aos recursos disponíveis e também o seu corolário, o princípio da eficácia ou obter os melhores resultados possíveis. A Administração Pública tem o dever de ser eficiente.

Uma Administração eficiente não deve tolerar o desperdício, as despesas desnecessárias ou o descaso no gerenciamento da coisa pública. Mais ainda, a Administração eficiente pressupõe a responsabilização do gestor público pela gestão ineficiente.

No início do sec. XX Osvaldo Cruz empreendeu uma campanha vencedora pela erradicação da febre amarela no Rio de Janeiro e de seu vetor o nosso conhecido Aedes Aegypti. O retorno do mosquito, agora trazendo a dengue, o zika vírus e a chikungunya, não poderia sugerir que houve relaxamento no seu controle? Não estaria demonstrando a ineficiência do controle sanitário em nosso País?

As recentes manifestações populares que colocaram milhares de cidadãos brasileiros nas ruas não podem ser interpretadas ingenuamente como apenas contra a Presidente ou contra o PT. Isso seria reduzir a importância das manifestações. Elas demonstram, sim, o descontentamento com a má gestão da coisa pública, com os políticos de modo geral, contra a corrupção, contra a impunidade e contra a precariedade dos serviços públicos prestados em contrapartida aos impostos exigidos do cidadão. Mas, também foram manifestações a favor da legalidade, da responsabilidade na gestão da coisa pública, de uma justiça atuante e de uma polícia eficiente. Essa foi a mensagem das ruas.

Haverá alguém tão ingênuo que acredite sinceramente que o impeachment, por si mesmo, seria solução para o Brasil ou, melhor dizendo, atenderia aos anseios do povo brasileiro? 

E no tocante à Administração Tributária? A eficiência não é apenas arrecadar o máximo possível; é arrecadar o que for devido e apenas o que for devido, observados os princípios constitucionais que informam o direito tributário e a realização dos objetivos fundamentais da República.

A Administração Tributária eficiente deve procurar maximizar a arrecadação sem violar princípios constitucionais ou os direitos fundamentais do cidadão-contribuinte. A Administração Tributária eficiente não pode recorrer a artifícios como não atualizar as tabelas relativas à tributação da renda ou do patrimônio, face à desvalorização da moeda.

Por outro lado, a Administração Tributária eficiente é incompatível com a renúncia fiscal não autorizada por lei (e por convênio no caso do ICMS), em proveito apenas de alguns (privilégio odioso), sem alcançar a maioria. Ricardo Lobo Torres (A Legitimação da Capacidade Contributiva e dos Direitos Fundamentais do Contribuinte. Direito Tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. Coordenação de Luis Eduardo Schoiueri. Vol. I, São Paulo: Quartier Latin, 2003, pg. 437) define privilégio odioso como “a permissão, destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba como alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais”.

Acrescenta esse autor que o privilégio odioso ofende o direito fundamental de propriedade, uma vez que implica discriminação contra o contribuinte excluído do privilégio, que vai arcar com o tributo de que foi dispensado o beneficiário do tratamento favorecido.

Todos devem contribuir para o financiamento do Estado, na medida da capacidade contributiva de cada um. Nesse sentido, leciona Roque Antonio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 59): “A lei tributária deve ser igual para todos e a todos deve ser aplicada com igualdade. Melhor expondo, quem está na mesma situação jurídica deve receber o mesmo tratamento tributário”.

Conforme Souto Maior Borges (Isenções Tributárias. 2ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1980, pg. 39), se todos devem contribuir, na medida da sua capacidade, para a satisfação dos encargos públicos, então não devem ser toleradas pelo ordenamento jurídico, discriminações tributárias, enquanto impliquem um tratamento privilegiado ou de favorecimento de determinadas pessoas.

Podem ser estabelecidas em lei apenas isenções compatíveis com o sistema constitucional da tributação, isto é, não violatórias do princípio de isonomia ou igualdade de todos perante o fisco. Podem ser outorgadas isenções que não contrariem o princípio da generalidade da tributação, mas que tão-somente o excepcionam.

Desse modo, os benefícios fiscais devem ser justificados, ou pelo princípio da igualdade ou por razões de extrafiscalidade. O princípio da igualdade, conforme magistério de Celso A. Bandeira de Mello (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 22), exige que o tratamento desigual deve ser justificado pela identificação  de uma correlação lógica concreta, aferida em função dos interesses abrigados no direito positivo constitucional. Nessa perspectiva, deve ser investigado se o critério discriminatório adotado constitui justificativa racional para “atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada” (p. 38).

Já a extrafiscalidade consiste no uso de tributos, não com vistas à arrecadação, mas a induzir comportamentos do cidadão-contribuinte. Ela pode consistir tanto no agravamento da imposição tributária (e.g. desestimular o consumo de determinadas mercadorias, como fumo, álcool etc.), como em renúncia fiscal. Nesse último caso, a renúncia deve estar afinada com os valores prestigiados pela Constituição, como os objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3º, a promoção dos direitos e garantias fundamentais e a efetivação das políticas públicas. É a finalidade constitucional que define o tributo como extrafiscal. 

Desse modo, a revisão dos benefícios fiscais e a supressão daqueles que não tenham justificativa plausível, com fundamento em princípios constitucionais, devem fornecer os recursos necessários para o financiamento do Estado e do cumprimento de suas finalidades essenciais.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Alcance e limites da interpretação gramatical


Velocino Pacheco Filho

Muito se tem falado sobre a precariedade da interpretação exclusivamente gramatical dos textos de direito positivo. Contudo, já ensinava Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 106) que “o primeiro esforço de quem pretende compreender pensamentos alheios orienta-se no sentido de entender a linguagem empregada”. Segundo esse autor, ainda surpreendentemente atual, o intérprete “graças ao manejo relativamente perfeito e ao conhecimento integral das leis e usos da linguagem, procura descobrir qual deve ou pode ser o sentido de uma frase, dispositivo ou norma”.

Desde que o povo veio a substituir o príncipe como titular da soberania, as leis são consideradas como expressão da vontade do povo, elaboradas e aprovadas por seus representantes eleitos. Então, os textos de direito positivo, resultado da atividade legislativa, têm um sentido e uma intenção que não podem ser ignorados pelo intérprete. Pelo contrário, eles são o ponto de partida do trabalho de interpretação, como observa Karl Larentz (Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed. Lisboa: Gulbenkian, 1997, p. 450): “Toda interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal”. O legislador dirige-se ao cidadão e deseja ser entendido por ele.

Não é outra a lição de Ricardo Lobo Torres (Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 327): “O método literal, gramatical ou lógico-gramatical é apenas o início do processo interpretativo, que deve partir do texto”.

Mas, embora imprescindível, a interpretação não pode ater-se apenas à análise gramatical do texto. Ela é insuficiente. Por quê? 

As razões são várias. Em primeiro lugar, as imprecisões da própria linguagem humana, suas ambiguidades e a pluralidade de sentido das palavras. Os chamados “termos indeterminados” – dos quais não podemos prescindir – têm conteúdo semântico vago que deve ser precisado pelo intérprete, de forma compatível com o ordenamento jurídico.

Cada palavra pode ter mais de um sentido; e acontece também o inverso – vários vocábulos se apresentam com o mesmo significado; por isso, da interpretação puramente verbal resulta ora mais, ora menos do que se pretendeu exprimir. .... Em regra, só do complexo das palavras empregadas se deduz a verdadeira acepção de cada uma, bem como a ideia inserta no dispositivo (Maximiliano, op. cit. p. 109).

Ademais, o fato concreto com que se depara o intérprete e aplicador da lei – e que não pode furtar-se a dar uma solução (vedação ao non liquet) – não é exatamente o mesmo com que se defrontou o legislador. Sempre há traços peculiares ao caso concreto.

Outra dificuldade é que as leis resultam do debate parlamentar, ou seja, de acordos firmados entre grupos de parlamentares que representam distintos interesses e ideologias. Como o legislativo representa a sociedade, nele estão presentes – como não poderia deixar de ser – os diferentes segmentos que a compõe. Daí que não se pode esperar consistência no direito positivo que resulta de um consenso negociado.
Por outro lado, a interpretação gramatical estabelece os limites dos significados possíveis do texto do direito legislado; o balizamento além do qual o intérprete não pode ir. “A interpretação literal, em outro sentido, significa um limite para a atividade do intérprete. Tendo por início o texto da norma, encontra o seu limite no sentido possível daquela expressão linguística” (Torres, op. cit. p. 241).

A interpretação das leis serve à sua aplicação. A lei é interpretada para poder ser aplicada. “A aplicação não prescinde da hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação a diagnose” (Maximiliano, op. cit. p. 8). Então, deve interpretar a lei todo aquele incumbido de aplicá-la. Essa tarefa é principalmente do Judiciário, mas pode incumbir também à Administração quando esta aplica a lei de ofício, como é o caso da atividade administrativa de constituição do crédito tributário (lançamento).

Todavia, em matéria de interpretação, a Administração não tem a mesma liberdade do Judiciário: a Administração não pode declarar a inconstitucionalidade de lei, ou negar vigência a decreto ou portaria de Secretário de Estado. A isso se opõe o princípio da hierarquia que informa a Administração. Já o judiciário não sofre tais limitações.

Vejamos, apenas como exemplo, a incidência do ICMS, de competência dos Estados, e do ISS, de competência dos Municípios. Abstraindo a questão das prestações de serviço de transporte e de comunicação, podemos resumidamente dizer que o fato gerador do ICMS consiste em obrigações de dar e o do ISS em obrigações de fazer. Mas pode acontecer que tenhamos um fato misto que compreenda tanto obrigação de dar quanto de fazer. Qual tributo deverá incidir? 

Dispõe o art. 146, I, da Constituição Federal, que “cabe à lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”.

Ora, a Lei Complementar 116/2003 (que trata do ISS), art. 1º, § 2º dispõe que ressalvadas as exceções expressas na lista de serviços, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que sua prestação envolva o fornecimento de mercadorias. A Lei Complementar 87/1996 (que trata do ICMS), art. 2º, IV e V, dispõe, por sua vez, que o imposto incide sobre o fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios ou quando, sujeitos ao imposto sobre serviço, a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.

Merece menção que disposições semelhantes constavam dos §§ 1º e 2º do art. 8º do Decreto-lei 406/1958 que anteriormente regia essas matérias.

Em síntese: quando estiverem presentes, simultaneamente, operação de circulação de mercadorias e prestação de serviço, o ICMS incide apenas quando (i) o serviço não constar da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 ou (ii) a própria lista ressalvar a incidência do ICMS sobre as mercadorias empregadas.

Pois bem! Poderia a Administração Tributária estadual adotar outro critério – mais favorável aos Estados – que não o previsto nas LC 116/2003 e na LC 87/1996? Certamente que não! Se o fizesse, estaria não só invadindo a competência tributária dos Municípios, como também a competência privativa do legislador complementar federal para dirimir conflitos de competência. Além disso, estaria contrariando norma expressa de lei complementar federal.

Com efeito, leciona Karl Larentz (op. cit. 453): “o que está para além do sentido literal linguisticamente possível e é claramente excluído por ele, já não pode ser entendido, por via da interpretação, como o significado aqui decisivo deste termo”. Isto por que o significado literal da lei tem uma dupla missão: é não só o ponto de partida para a indagação judicial do sentido, como também traça os limites da atividade interpretativa. “Uma interpretação que não se situe já no âmbito do sentido possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido”.

A adoção de critérios outros, além dos expressamente previstos pelo legislador complementar para demarcar as esferas de competência, respectivamente, de Estados e Municípios não constitui interpretação, mas inovação que é vedada à Administração. 

quinta-feira, 17 de março de 2016

O sigilo bancário e a defesa da privacidade: “o direito de sonegar”.

Velocino Pacheco Filho

Questão recorrente é saber se o Fisco tem direito de pedir informações diretamente às instituições financeiras sobre as movimentações de seus correntistas ou se tais informações dependem de autorização judicial. 

Conforme § 1º do art. 145 da Constituição, os impostos, sempre que possível terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. 

Então, o acesso da administração tributária a dados sobre o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte é garantido pela própria Constituição, desde que (i) venham conferir efetividade ao caráter pessoal e graduação segundo a capacidade econômica de cada um e (ii) sejam respeitados os direitos individuais.

Que esta disposição constitucional compreende informações bancárias, parece estar confirmada pelo art. 197, II, do Código Tributário Nacional, segundo o qual estão obrigados, mediante intimação escrita, a prestar à autoridade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades financeiras de terceiros, os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras. 

Bem verdade que o parágrafo único desse artigo dispõe que o dever de informações não abrange fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão. Estariam nesse caso as informações dos bancos sobre seus clientes? É pouco provável que o legislador tenha pretendido retirar no parágrafo o direito que concedeu no corpo do artigo.
O sigilo que as instituições financeiras devem observar quanto às movimentações de seus clientes foi tratado pela Lei Complementar 105/2001. Esse diploma legal, no entanto, ressalva o Fisco nos arts. 5º e 6º:

Art. 5º O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.

Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

Dito de outro modo: desde que haja processo administrativo em curso e que o seu exame seja considerado indispensável pela autoridade administrativa competente, é garantido ao Fisco o exame de documento, livros e registros, inclusive os referentes a contas de depósito e aplicações financeiras. Portanto, a autorização para o acesso do Fisco a informações bancárias dos contribuintes fica a cargo de autoridade administrativa e não do judiciário. O Fisco, no entanto, fica obrigado a guardar sigilo sobre essas informações, nos termos do art. 198 do CTN, respondendo criminalmente o agente do Fisco, no caso de divulgação das mesmas.

Comenta com pertinência Marcos Antônio P. Noronha (O Sigilo Bancário no Brasil. In: TÔRRES, Heleno Taveira et al. – coord. – Direito Tributário e Processo Administrativo Aplicado. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 423): “descabe, completamente, a ideia de que o Fisco sairá utilizando indevidamente o sigilo bancário dos cidadão com base em infundadas suspeitas e que as informações obtidas poderão ser divulgadas”.

No entanto, parcela significativa da doutrina tem negado o direito do Fisco de acesso a informações bancárias do contribuinte. Mesmo a jurisprudência, ainda que não declarada a inconstitucionalidade dos arts. 5º e 6º da LC 105 ou do art. 197, II, do CTN, tem condicionado o acesso a tais informações à autorização do Judiciário. Esse entendimento está sendo revisto pelo Supremo Tribunal Federal.

Os que pretendem limitar o acesso do Fisco às informações bancárias fundamentam nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal: (i) o inciso X trata da proteção da privacidade e (ii) o inciso XII, do sigilo de dados. 

Ora, nesse ponto devemos perguntar: que privacidade está sendo protegida? A do crime organizado? A dos corruptos? A dos sonegadores? O Estado brasileiro, em particular o Poder Judiciário, está protegendo a lavagem de dinheiro proveniente de atividades ilegais como o tráfico de drogas, a prostituição, a corrupção, a sonegação?

A Constituição não garante expressamente o sigilo bancário. Apenas por interpretação – discutível – podemos enxergá-la inserida na proteção à privacidade ou do sigilo de dados. No esclarecido magistério de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri SP: Manole, 2007, p. 181), “o sigilo bancário, embora tenha a ver com privacidade, não conhece uma subsunção imediata na Constituição, embora esta, tendo em vista a inviolabilidade do direito à privacidade, exija do legislador a máxima cautela com a publicidade das relações privadas”.

Em particular, com base no art. 5º da LC 105, foi firmado acordo entre Brasil e os EUA para permitir o intercâmbio de informações fiscais no âmbito do Foreign Account Tax Compliance Act, aprovado pelo Decreto Legislativo 146/2015, no que se refere às instituições financeiras brasileiras. Para dar-lhe efetividade, foi editada a Instrução Normativa RFB 1.571/2015, tornando obrigatória para as instituições financeiras a prestação de informações sobre as operações financeiras de seus clientes.

Entre os argumentos contrários à medida, apelou-se para o risco de “compartilhar essas informações personalíssimas com outros países que não se comprometem com os direitos e garantias estabelecidos na Constituição Federal, dentre os quais, a necessidade de prévia autorização judicial”. Os países que causam tanta preocupação, por não terem compromisso com os direitos e garantias constitucionais, são os Estados Unidos, a França, a Inglaterra, a Alemanha e outros onde tem se desenvolvido a teoria dos direitos e garantias constitucionais que o Brasil tem copiado tão aplicadamente.

A solicitação, pela Administração Tributária, de informações sobre operações bancárias do contribuinte é um ato administrativo vinculado que visa realizar a função precípua do Fisco, outorgada pela Constituição, que é o poder de tributar, dentro do qual está inserido o de fiscalizar, e, portanto, deve dispensar autorização judicial prévia para ser praticado, estando no âmbito de competência da própria administração que representa o Poder Executivo (Noronha, op. cit. p. 422).

A seu turno, Gilmar Ferreira Mendes e outros (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 375), reconhece que a LC 105 atribuiu aos agentes do Fisco, no exercício do seu poder de fiscalização, o poder de requisitar informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras, independentemente de autorização judicial: 

O direito ao sigilo bancário, entretanto, não é absoluto, nem ilimitado. Havendo tensão entre o interesse do indivíduo e o interesse da coletividade, em torno do conhecimento de informações relevantes para determinado contexto social, o controle sobre os dados pertinentes não há de ficar submetido ao exclusivo arbítrio do indivíduo.

A fiscalização é uma função típica de Estado, razão por que é permitido ao Fisco acesso a informações bancárias do contribuinte, sem que para isso, precise de prévia autorização judicial, pois nada mais estará fazendo que cumprir sua função. O poder de tributar e de fiscalizar é inerente ao poder de polícia do Estado, que deve ser considerado normal em um país democrático, onde esteja presente o estado de direito. Cuida-se do condicionamento da liberdade do indivíduo ao bem estar social que consiste, no caso, em melhor distribuição de renda e não sobrecarga  de uns em favor de outros (Mendes, op. cit. p. 424).

O próprio Superior Tribunal de Justiça já vinha sinalizando a relativização do sigilo bancário (AgRg no AgIn 1.329.960 SP; Luiz Fux; Primeira Turma; DJe 22/02/2011):

12. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 facultou à Administração Tributária, nos termos da lei, a criação de instrumentos/mecanismos que lhe possibilitassem identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, respeitados os direitos individuais, especialmente com o escopo de conferir efetividade aos princípios da pessoalidade e da capacidade contributiva (artigo 145, § 1º).

13. Destarte, o sigilo bancário, como cediço, não tem caráter absoluto, devendo ceder ao princípio da moralidade aplicável de forma absoluta às relações de direito público e privado, devendo ser mitigado nas hipóteses em que as transações bancárias são denotadoras de ilicitude, porquanto não pode o cidadão, sob o alegado manto de garantias fundamentais, cometer ilícitos. Isto porque, conquanto o sigilo bancário seja garantido pela Constituição Federal como direito fundamental, não o é para preservar a intimidade das pessoas no afã de encobrir ilícitos.

Em suma, não se justifica dificultar o acesso do Fisco às informações bancárias dos contribuintes, mesmo por que elas permanecerão protegidas pelo sigilo a que estão obrigadas as autoridades fiscais, conforme art. 198 do Código Tributário Nacional. O que não se pode admitir é utilizar o sigilo bancário como escudo protetor de atividades ilícitas. Já é tempo do Brasil deixar de ser o país da impunidade.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

A RETOMADA DA CONSCIÊNCIA DE CONTRIBUINTE


Fabiano Ramalho

As relações entre os dois polos da sujeição tributária (Estado-Fiscal e Cidadão-Contribuinte) têm merecido grande interesse dos intelectuais do Direito. Dentre estes, há os que, de uma maneira ou de outra, enxergam uma deterioração crescente da qualidade dessa relação, especialmente com a experiência pós-moderna do Direito Tributário, que parece denotar certo esvaziamento da plena consciência de contribuinte por parte do cidadão.

Pagar tributo virou quase uma obrigação automática, irrefletida, descolada de consequências político-sociais, e, o que é pior, parece assimilar aquilo que há de mais perverso no mundo atual, que é o imediatismo pragmático, o individualismo radical, a efemeridade de valores e o contratualismo moral.

Essa realidade surreal não veio da noite para o dia. É fruto do desenvolvimento mal sucedido da visão de mundo moderna, a partir do século XIX, com o desenvolvimento da ciência e do capitalismo e a crença num mundo estável, ordenado, seguro, coerente, limpo, sólido. Apesar dos progressos alcançados, essa crença colocou o homem numa espécie de armadilha cartesiana, onde a lógica subjuga os sentidos e a razão predomina sobre a emoção.

Não por acaso, a festa da Modernidade terminou com o fracasso da condição humana, representado pelas duas guerras mundiais, pelo colapso da economia global, pelos regimes totalitaristas e pela falácia do Estado do Bem-Estar Social, já na primeira metade do século XX.

Nesse cenário, a consciência humana parece ter sido perdida, substituída por uma forma de submissão voluntária, que transforma o homem em gado manso, educado e tranquilo, alheio ao mundo que o rodeia e desprovido de uma visão crítica da realidade. É, então, que surgem intelectuais dedicados a investigar essa realidade endêmica, como Nietzsche, Sartre, Heidegger, Foucault, Freud, dentre outros, todos ligados, de forma mais ou menos homogênea, a movimentos como o Existencialismo e o Humanismo.

Dentre eles, escolhi para ilustrar esse pequeno estudo o pensamento de Antoine de Saint-Exupéry, escritor, poeta, aviador, repórter francês e, por que não, filósofo, que viveu na primeira metade do século XX. Autor que ficou imortalizado pelo livro "O Pequeno Príncipe" (erroneamente interpretado como literatura infantil), mas que possui uma obra consagrada ao humanismo.

Ele defendia arduamente a retomada de consciência da condição humana, relacionada com a redescoberta do Ser Humano, tão afetado pelas mazelas do final do século XIX e do início do XX. A experiência das guerras, da vida (sobrevivência) no deserto, do vazio da vida moderna, do fracasso das promessas da modernidade, influenciariam fortemente Exupéry, fazendo-o identificar como consequência imediata uma perda da consciência humana, um vazio existencial. Ele escreveu em um de seus textos: "O Homem não tem mais sentido, é preciso absolutamente falar aos homens".[1]

Philippe Diolé[2], escritor francês contemporâneo de Exupéry, Ilustrou bem a preocupação da época vivida pelo autor de "Le Petit Prince": "Não é somente o cenário que é fabricado, elaborado neste século XX, também os sentimentos e a vida interior. Existências inteiras situam-se entre o metrô e o cinema e só se alimenta de imagens em conserva ou vozes gravadas e emoções fingidas [...] É preciso evitar toda essa falsa realidade para encontrar a verdadeira."

Max Picard, outro herdeiro da tradição humanista, dizia que "nada mudou tanto a natureza do homem quanto a perda do silêncio". Ele escreveu sobre a necessidade do silêncio da alma e o afastamento do seu contrário, o rumor cotidiano, na mesma linha de idéias de Saint-Exupéry: "A palavra não existe mais como espírito somente como rumor, como maneira acústica... Esse rumor é um vazio sonoro que recobre o vazio insonoro. A palavra autêntica, ao contrário, é plenitude sonora acima da superfície silenciosa do silêncio.[...] O rumor é pseudopalavra e pseudossilêncio, por sua vez: é dito alguma coisa e não há palavra; desaparece alguma coisa no rumor e não há silêncio."[3]

Em "O Pequeno Príncipe"[4], Saint-Exupéry condensou muitas de suas idéias sobre essa retomada de consciência, de uma forma por vezes lúdica, como na metáfora do deserto, que simbolizava o vazio da alma, por vezes poética e filosófica, como no ensinamento "o essencial é invisível aos olhos".

O livro está recheado de um humanismo que permeava o imaginário de pensadores da época, todos preocupados com um ritmo de crescimento acelerado da ciência moderna e do capitalismo, que progressivamente descolavam o homem do Ser Humano (ou o Ente do Ser, na visão de Sartre) e que culminou com duas guerras mundiais e a criação da Bomba Atômica. Através das metáforas de “O Pequeno Príncipe”, Exupéry nos conta os seus dramas morais pessoais e a preocupação coletiva com relação ao futuro da humanidade, devolvendo uma certa realidade ao mundo, onde o homem é a única fonte de valor e de moralidade.

A retomada de consciência busca, portanto, reencontrar os caminhos da Existência, numa espécie de culto do Eu interior, na sua acepção de natureza humana, essencial para a salvação do Ser. É, de certa forma, uma luta pela “liberdade”, enquanto resultante da emancipação do pensamento, esse bem imaterial que parece ser perseguido pelo gênero humano desde os tempos mais longínquos.

Encontramos essa busca de uma consciência superior em plena era elisabetana, na obra de Shakespeare[5], quando o príncipe Hamlet encontra seu dilema existencial mais fundamental na Cena I, do 3° Ato, expresso no monólogo "ser ou não ser", cuja melhor interpretação denota a insatisfação do jovem príncipe com a futilidade de sua época, com a podridão do Reino da Dinamarca, onde as consciências se acovardavam ante as conveniências da Corte. Em outro momento da Peça, Hamlet, questionado por Polônio sobre o que estava lendo, responde, fingindo-se de louco: “palavras, palavras, palavras”, parafraseando a consciência da época, que não se importava verdadeiramente com nada.

Essa crise de consciência se agravou com o advento da pós-modernidade, embalada pela Guerra Fria e a ameaça constante de uma catástrofe nuclear durante boa parte da segunda metade do século XX. Uma nova consciência emerge, tutelada por um mercado capitalista ávido pelo consumismo, e que irá forjar aquilo que costumamos chamar de Sociedade do Consumo. Incerteza existencial, somada com globalização, banalização de costumes, supremacia da lógica do mercado e demandas culturais transgênicas formaram um amálgama de novos valores, descartáveis, temerários, individualistas e de pobreza intelectual, desprovidos de uma consciência crítica.

Zigmunt Bauman, sociólogo polonês, denuncia esse flagelo do homem pós-moderno em sua obra, especialmente em “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”[6]. Para ele, a marca da sociedade pós-moderna é a própria “vontade de liberdade”, com o abandono da crença de uma vida social estável, segura e ordenada, prometida pela falida Modernidade. Mas essa liberdade é determinada pelas Leis de mercado, flexível, transitória e infiel, moldando, portanto, uma moral “de ocasião”, descartável ao menor sinal de inadequação às novas demandas de consumo. 

O homem pós-moderno não pode criar vínculos duradouros, sob pena de ser excluído e descartado. O pertencimento à sociedade pós-moderna exige uma consciência adquirida em corredores de shoppings centers, um narciso fraco, uma moral de cabide, que pode ser vestida conforme a ocasião. Hoje, ética e moral viram mercadorias na sociedade de consumo.

Parece que o deserto humano pensado por Exupéry está cada vez mais vasto e perigoso. Em todas as instâncias da vida social e política, estamos sujeitos às forças de um mercado dominador e cada vez menos controlado, que transforma tudo que toca em mercadoria.

No Direito, isso não é diferente. As constantes perdas em matéria de segurança jurídica, a relativização de valores e princípios tradicionais, a desconstrução de sólidos fundamentos da ordem jurídica e a crescente invasão na esfera da vida privada dos indivíduos, são reflexos imediatos da nossa incapacidade de retomar uma consciência emancipatória e libertária, como forma de reação.

E, na esfera do Direito Tributário, essa deformação se manifesta de uma forma perigosa e pragmática: a da transformação social pelo tributo. Com centralização da arrecadação, reformas por Decretos e relativização de princípios como o da capacidade contributiva, da legalidade e da vedação do confisco, vemos crescer cada vez mais o uso do Direito Tributário como instrumento político de reformas sociais, ou, se preferirem, o uso ideológico do tributo. Estamos perdendo, aos poucos, a percepção do justo em matéria tributária, especialmente no que pertine à preservação da liberdade do contribuinte.

Denunciando essa deformação do Direito pelo mundo pós-moderno, Misabel Abreu Machado Derzi, afirma que “instalam-se, ao lado do pluralismo e da complexidade, a ausência de regras, a permissividade, a descrença generalizada, a incerteza e a indecisão, de tal modo que princípios jurídicos até então sólidos e bem fundamentados como segurança jurídica, capacidade contributiva, progressividade do imposto, igualdade e até mesmo legalidade são postos em dúvida”[7].

A defesa da liberdade do contribuinte, então, deve ser o ponto de partida para uma retomada de consciência da condição de contribuinte, na moderna sociedade de consumo. Deve ser a reação a toda vulgarização e relativização dos valores e princípios fundamentais do Direito Tributário, pois, tal e qual era para o humanismo, ela confere ao homem-contribuinte a prerrogativa de dialogar com o Poder Tributante e lutar pela criação de um imposto justo. Em última instância, a liberdade, enquanto pilar da consciência de contribuinte do cidadão, proporciona o estabelecimento de uma efetiva e eficiente ética tributária.

Mas essa consciência não é desprovida de deveres. Ao contrário, ela exige um compromisso permanente com o coletivo, com a res publica e, em última análise, com o Estado. É algo como uma alteridade da condição de contribuinte, autoconsciente de seus direitos e deveres, de seu pertencimento ao Estado, que traduz a certeza da necessidade do imposto, enquanto fonte de financiamento do Estado, e dos limites e garantias desse poder fiscal. 

Significa, portanto, o abandono de uma visão da sujeição tributária meramente individualista e mesquinha, preocupada apenas com a obtenção de privilégios fiscais isolados ou com simulacros disfarçados de planejamento tributário, vícios próprios da consciência pós-moderna.

Na busca dessa consciência, o Estado também exerce um papel fundamental, não só pela conduta ética na relação tributária e na preservação da moralidade nos atos da Administração Pública, mas também pela consciência de seus agentes de que, ao lado de suas funções voltadas para a fiscalização e arrecadação de tributos, existe o dever constitucional de defender os direitos e garantias do contribuinte. Cabe aos agentes estatais contribuir para uma educação fiscal efetivamente emancipadora do contribuinte.

Sem esse esforço conjunto, dificilmente avançaremos em matéria de retomada de uma consciência superior de contribuinte, o que, paradoxalmente, provocaria o colapso do próprio sistema tributário, pois as mazelas da pós-modernidade do direito, acima comentadas, derrubariam de vez os fundamentos desse fabuloso edifício da Justiça. 

[1] BERT, J.-C, Saint-Exupéry, Éditions Universitaires, em Livres de France, Março de 1955, n° 3.
[2] O Mais Belo Deserto do Mundo, Ed.Albin Michel, 1955, p.70
[3] Le Monde du Silence, traduit de l'allemand par J.-J. Anstett, Ed. Presses Universitaires de France, 1954, pp. 134/139.
[4] Paris: Gallimard, 2007.
[5] Hamlet, tradução de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, Bárbara Heliodora, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, pp. 168 e 182.
[6] Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[7] DERZI, Misabel Abreu Machado. A Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça Individual. In: Tributos e Direitos Fundamentais. Coordenador Octávio Campos Fischer. São Paulo: Dialética, 2004, p.262.