DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Tributação Justa para Novos Modelos de Negócios

Especialistas da área tributária se reúnem em Florianópolis para discutir com empresários, investidores e startupers como tornar a tributação um instrumento de fomento à inovação


Serviços como Uber, Netflix e AirBnB ou conceitos como os de Inteligência Artificial, Big Data e Internet das Coisas são amplamente conhecidos e se desdobram em novidades a cada dia com o desenvolvimento acelerado da tecnologia. Se consumidores e empresas antenados já têm dificuldade em se manter atualizados com tanta inovação, setores mais tradicionais como o Fisco ficam ultrapassados ao pensar a cobrança de impostos com a mentalidade do século passado.

A falta de uma política adequada para novas atividades econômicas tem sido um entrave para o crescimento de startups e o desenvolvimento de diferentes formatos e modelos de negócios no Brasil. Para discutir soluções mais justas de tributar o mercado de inovação, um coletivo de profissionais da área tributária de Santa Catarina promove o II Seminário Anual da ASSET/SC – Associação de Estudos Tributários de Santa Catarina. O evento, que ocorre 23 e 24 de novembro em Florianópolis, é voltado para empresários, startupers, investidores e demais interessados em debater e promover ideias que contribuam para a justiça tributária.

Barreiras aos pequenos
O Brasil já possui mais de 4,2 mil startups, a maioria delas nos segmentos de aplicativos de Internet, mídia, e-commerce e entretenimento, que seguem um ritmo de crescimento médio superior a 20% ao ano.  A falta de regulamentação do setor, no entanto, é um dos fatores que contribuem para alta taxa de mortalidade das startups, especialmente as de economia colaborativa ou compartilhada. Um estudo efetuado pela Parallaxis Economia e Ciências de Dados, em 2016, mostra que apenas uma em cada cinco startups sobrevive aos primeiros cinco anos de vida.

O presidente da ASSET/SC, advogado tributarista Fabiano Ramalho, reforça que o Brasil precisa de mais políticas públicas no sentido de promover a desoneração fiscal e criar condições propícias para o desenvolvimento do setor de Tecnologia da Informação no país. “A importância de se tratar dessas questões é justamente pela falta de uma regulamentação adequada para o exercício dos modelos econômicos, sobretudo os baseados em inovação disruptiva e tecnológica”, afirma.

“O Estado não pode abrir mão dos impostos, mas isso não precisa representar uma barreira ao desenvolvimento econômico. O justo equilíbrio é condição indispensável para o crescimento econômico e a inserção do país no novo cenário da economia global”, acrescenta o presidente.

Tributação de Apps
A polêmica sobre os serviços oferecidos por aplicativos como Uber e AriBnB também estará em pauta durante o evento. A discussão que se estende por diversas cidades do Brasil se deve, em grande parte, à falta de legislação e regulamentação adequada, especialmente quando se trata de economia colaborativa e compartilhada, como os aplicativos de transporte e hospedagem que já fazem sucesso entre os usuários brasileiros.

Investidor-anjo
Em algumas áreas já surgem boas notícias que serão melhor detalhadas pelos especialistas tributários no seminário. É o caso da regulamentação do investidor-anjo, que já pode aplicar em uma startup sem se tornar sócios dela. Microempresas e empresas de pequeno porte também ganham impulso com aportes vindos de fundos que atuam como investidores-anjos.

Moedas virtuais
A nova febre entre os jovens investidores são as criptomoedas. Das mais de 600 existentes no mundo, a Bitcoin está entre as mais conhecidas no Brasil. O sucesso se deve à valorização expressiva dessa moeda virtual: 398% em um ano, enquanto a Ibovespa, principal índice de referência da Bolsa, subiu 28% no mesmo período. As moedas virtuais despertam interesse, mas também desconfiança e preocupação por parte diversos organismos governamentais. Um deles é o Fisco, já que as transações são realizadas em ambientes online, diretamente entre os usuários, sem passar por uma autoridade central para controle a propriedade dos valores mobiliários.

A advogada Luíza Balthazar, mestranda em propriedade intelectual, e o engenheiro especialista em Blockchain e criptomoedas, Fábio Ferrari, irão esclarecer dúvidas que vão desde a qualificação exata dos recursos (se como moedas ou investimentos financeiros) até a necessidade de declaração às autoridades e as possibilidades de taxação.

Visão de especialistas
A programação do evento contempla ainda temas como o Fisco do Século XXI; modelos de inovação para a fiscalização tributária no combate à evasão fiscal; impactos da robotização da economia e seus reflexos tributários; aspectos culturais e tributários sobre investimento em startups no Brasil e exterior; regulação de conteúdo digital e streaming; tributação do futuro, incluindo análises sobre Inteligência Artificial, IoT (Internet das Coisas), Big Data e Law Tech; além de cases do setor.

Os assuntos serão debatidos por advogados especialistas em Direito Tributário e Propriedade Intelectual, procuradores de municípios, auditores fiscais da Fazenda, representantes entidades internacionais e de empresas reconhecidas na área de inovação, como o Grupo Magazine Luiza; além de membros da Associação Catarinense de Empresas de Tecnologia – ACATE, apoiadora do evento.

SERVIÇO:
O quê: II Seminário Anual da ASSETSC
Tema do evento: Um Debate sobre a Tributação das Novas Atividades Econômicas
Quando: 23 e 24 de novembro de 2017 – das 8h às 18h
Onde: Auditório do SC401 Square Corporate - Florianópolis – SC
Programação e inscrições no site: www.assetsc.org.br

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A Inovação Tecnológica e o Desafio da Tributação das Startups no Brasil

Por Fabiano Ramalho

O século XXI inaugurou uma nova era do desenvolvimento econômico global. Novas formas de exercer atividades tradicionais vêm ganhando espaço rapidamente, sob a lógica da inovação constante, inaugurada por Schumpeter há cerca de 100 anos. (1988, p.48-49). Conceitos como obsolescência programada ou inovação destrutiva passaram a dominar os debates sobre o progresso econômico e social, condenando ao descarte ou à descontinuidade o modelo anterior, com a introdução de um novo bem, um novo serviço, um novo método de produção, um novo mercado, criando novas necessidades.

Ensina Schumpeter (1988, p.49) que:

[...] as novas combinações [inovações], via de regra, estão corporificadas, por assim dizer, em empresas novas que geralmente não surgem das antigas, mas começam a produzir ao seu lado; Para manter o exemplo já escolhido, em geral não é o dono de diligencias que constrói estradas de ferro.

Herdeiras dessa cultura da inovação radical, novas empresas surgem com um potencial de crescimento extraordinariamente acelerado, aliando inovação e tecnologia para a satisfação de demandas globais. São as chamadas startups, empresas do setor de tecnologia da informação, responsáveis por grande parte das mudanças atuais nos paradigmas da economia mundial.

Dados da Associação Brasileira de Startups indicam que, em julho de 2017, o número de startups em atuação no Brasil ultrapassou a cifra de 4.200 empresas, a maioria delas nos segmentos de aplicativos de Internet, mídia, e-commerce e entretenimento, num ritmo de crescimento médio superior a 20% ao ano. São números ainda modestos, especialmente se comparados com países onde o ecossistema startup é nutrido com fortes incentivos governamentais. Na França, por exemplo, uma estatística da Agência Digital do governo apontou, em 2016, a existência de 9.400 startups, num ritmo de crescimento de cerca de 30% entre os anos de 2012 e 2015, o que é dez vezes maior do que o crescimento das empresas tradicionais no mesmo período[1].

Exemplos de sucesso de startups estão espalhados em vários setores da economia, como no de transporte de passageiros, por meio dos aplicativos de Internet Uber[2] e Blablacar[3], e no de hospedagem, através do aplicativo AirBnB[4].

Com o suporte dessas novas tecnologias e sob a lógica da inovação radical, uma nova realidade social e econômica se impôs, mudando a forma com que os indivíduos se relacionam. Segundo Ferry (2016), estamos passando para uma nova etapa da revolução industrial, chamada “economia colaborativa”, cuja principal característica é a autonomia extrema dos indivíduos no desenvolvimento de atividades econômicas. Por meio da economia colaborativa, desenvolvem-se modelos de negócios onde os indivíduos exploram seu patrimônio pessoal para fins econômicos, utilizando soluções baseadas no big data[5], na inteligência artificial e nos objetos conectados (ou Internet dos objetos), ou seja, as atividades são facilitadas por plataformas colaborativas (aplicações de internet), que criam um mercado aberto para a exploração econômica temporária de bens ou serviços por parte dos indivíduos.

O aplicativo AirBnB, por exemplo, foi desenvolvido por uma startup situada na Califórnia, EUA, fundada em 2008. Utilizado por indivíduos espalhados em mais de 65.000 cidades e 190 países ao redor do mundo, conta um portfólio de mais de 3.000.000 de acomodações particulares[6]. Por meio dele, os indivíduos disponibilizam seus imóveis para locações de curta temporada, normalmente para turistas, num sistema baseado no compartilhamento do patrimônio pessoal e na colaboração mútua entre os usuários, que opinam reciprocamente sobre o relacionamento criado, gerando um perfil acessível a todos os usuários.

No entanto, no Brasil, as startups ainda enfrentam uma dura realidade. Apenas uma em cada cinco startups sobrevive aos primeiros 5 anos de vida. Um estudo efetuado pela Parallaxis Economia e Ciências de Dados entre julho e outubro de 2016 indica que somente 42,1% das startups já estão há mais de dois anos no mercado[7].

Esse cenário decorre não só da falta de regulamentação do setor ou da incipiente cultura econômica das startups, mas também da deficiência do Estado em estabelecer um marco regulatório e um modelo tributário adequado para o setor, em especial aquelas startups voltadas para a economia colaborativa ou compartilhada. Medidas de incentivo fiscal e um tratamento tributário diferenciado são fundamentais para a sobrevivência de uma empresa no ecossistema startup, que, na maioria das vezes, inicia suas atividades com o esforço pessoal de uma ou duas pessoas e com orçamento extremamente modesto.

Na França, as startups que investem em inovação são isentas do imposto de renda nos dois primeiros anos de vida, gozam de uma redução substancial nos encargos sociais trabalhistas por sete anos e ainda contam com um crédito fiscal especial, que permite recuperar um crédito de 30% sobre as despesas relacionadas com pesquisa e 20% com as relacionadas com inovação. Além disso, uma favorável regulação dos aportes de capital incentiva o investimento no setor, o que resulta nessa taxa de crescimento surpreendente.

Outros países possuem tratamento tributário semelhante, como os EUA e o Reino Unido, o que incentiva a migração de startups, na medida em que esse tipo de empreendimento, com vocação global, pode se deslocar facilmente para qualquer lugar. Recentemente, o Google lançou o programa Launchpad Accelerator, uma espécie de programa de aceleração de crescimento de startups em países emergentes. Segundo o criador desse programa, Roy Glasberg, “se o país onde você vive não está preparado para suportar seu projeto, busque outro mercado”.[8]

No Brasil, as micro e pequenas empresas, modelo adotado pela quase totalidade das startups, recebem um tratamento tributário diferenciado por meio do SIMPLES NACIONAL, com alíquotas reduzidas incidentes sobre a receita bruta, partindo de 4%, e com a simplificação das obrigações acessórias. Mas ainda há muito que avançar em termos de estímulo à inovação, especialmente com a desoneração fiscal do setor e a criação de uma política de estímulo à pesquisa e à inovação.

Porém, uma alteração recente na legislação, promovida pela LC 155/2016, acrescentou os artigos 61-A, 61-B, 61-C e 61-E à Lei Complementar n° 123/2006, promete dar um novo impulso no desenvolvimento das startups nacionais, com a regulamentação da figura do Investidor-Anjo.

O aporte de investimento nas startups era feito por meio de empréstimos conversíveis em ações e de contratos de opção de compra de ações, o que desestimulava o investimento, já que os investidores, tornando-se sócios, sujeitavam-se às consequências do insucesso do empreendimento, como as responsabilidades trabalhista e fiscal. Agora, com a alteração legislativa, o investidor-anjo não figura mais entre os sócios da startup, mitigando esse risco, já que o investimento não integrará mais o capital social da startup e não caracterizará receita tributável, como ocorria até 2016. É assim que determina o §4°, do art. 61-A, da LC 123/2006:

§ 4° O investidor-anjo:
I - não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou voto na administração da empresa;
II - não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;
III - será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação, pelo prazo máximo de cinco anos.

Outra inovação legislativa trazida pela LC 155/2016 foi a previsão, no art. 61-D, de que “os fundos de investimento poderão aportar capital como investidores-anjos em microempresas e empresas de pequeno porte”. Essa possibilidade abrirá um novo canal de investimento nas startups, contribuindo para o desenvolvimento do setor de tecnologia da informação no Brasil.

Mais um avanço importante está em tramitação no Congresso Nacional. Trata-se do Projeto de Lei n° 6625/2013, originário do PLS 321/2012, de autoria do senador José Agripino (DEM/RN), que dispõe sobre a criação de um regime tributário diferenciado específico para as startups, denominado Sistema de Tratamento Especial a Novas Empresas de Tecnologia (SisTENET), pelo qual será concedida uma isenção total de impostos federais para as empresas que se enquadrarem no novo regime, pelo período de 2 anos, prorrogáveis por igual período. Assim dispõe o art. 3° do referido projeto:

Art. 3° A empresa que se enquadre na definição do art. 2° [startup] poderá optar por aderir ao Sistema de Tratamento Especial a Novas Empresas de Tecnologia (SisTENET) pelo prazo de 2 (dois) anos contado de sua fundação, prorrogável por mais 2 (dois) anos, realizando a opção no momento de sua inscrição na Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Parágrafo Único. A Inscrição no SisTENET implica a isenção total e temporária do pagamento de todos os impostos federais.

O texto já conta com algumas emendas que o aperfeiçoam, como a que alterada a redação do §2° do art. 2°, proposta pelo relator do projeto na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara, o deputado Vitor Lippi (PSDB/SP), que amplia para R$ 60.000,00 a receita bruta trimestral para fins de enquadramento no SisTENET. Durante sua tramitação legislativa, o projeto deverá sofrer novas alterações, dentre elas, espera-se, a alteração do termo “todos os impostos”, prevista no parágrafo único do art.3° acima citado, para “todos os tributos”, mas já sinaliza a vigência de um importante instrumento de legal de apoio ao desenvolvimento do setor de tecnologia da informação.

Embora um pouco atrasadas em relação aos polos mundiais de desenvolvimento das startups, as políticas públicas que estão sendo implementadas no Brasil, especialmente as que promovem a desoneração fiscal, prometem criar condições propícias para o desenvolvimento do setor de Tecnologia da Informação no país, o que é fundamental para garantir um espaço de competitividade e sucesso para as nossas startups na nova economia global.

REFERÊNCIAS:

BRASIL, Congresso Nacional. Lei Complementar n° 155, de 27/10/2016. Altera a Lei Complementar n° 123, de 14 de dezembro de 2006, para reorganizar e simplificar a metodologia de apuração do imposto devido por optantes pelo Simples Nacional; altera as Leis n° 9.613, de 3 de março de 1998, 12.512, de 14 de outubro de 2011, e 7.998, de 11 de janeiro de 1990; e revoga dispositivo da Lei n° 8.212, de 24 de julho de 1991. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp155.htm>. Acesso em 02/09/2017.

BRASIL, Congresso Nacional. Projeto de Lei n° 6625/2013. Dispõe sobre o Sistema de Tratamento Especial a Novas Empresas de Tecnologia (SisTENET) e seu regime tributário diferenciado e dá outras providências. Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=598004. Acesso em 02/09/2017.

FERRY, Luc. L’uberisation du monde et la naissance de l’économie collaborative, Parenthèse Culture: 2016. Disponível em <http://www.parenthese-culture.fr/event/luberisation-du-monde-et-la-naissance-de-leconomie-collaborative-aibnb-blablacar-etc-chance-ou-danger-eclipse-du-capitalisme-ou-hyperliberalisme-fin-du-travail-ou-nouvell/>. Acesso em 30/07/2017.

SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do Desenvolvimento Econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e ciclo econômico. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.




[1] FrenchTech, Les 10 chiffres incontournables de l’écosystème startups français. Disponível em < https://www.maddyness.com/entrepreneurs/2017/03/21/frenchtech-ecosysteme-startup-francais-10-chiffres/>.  Acesso em 02/09/2017.
[2] Aplicação online desenvolvida por uma startup norte-americana de mesmo nome, que possibilita a conexão entre motorista a passageiros, oferecendo serviços de transporte semelhantes ao táxi, com recursos de inteligência artificial e conectividade.
[3] Aplicação online desenvolvida por uma startup francesa de mesmo nome, que conecta motoristas e passageiros para o compartilhamento de viagens com divisão de custos, sem obter lucro, com recursos de inteligência artificial e conectividade.
[4] Aplicação online desenvolvida por uma startup norte-americana de mesmo nome, que permite aos indivíduos alugar o todo ou parte de sua própria casa, oferecendo serviços de hospedagem semelhantes ao hotel, com recursos de inteligência artificial e conectividade.
[5] Todo tipo de rastro que deixamos na Internet e que são coletados, tratados e comercializados.
[6] AIRBNB, 2017. Quem Somos. Disponível em <https://www.airbnb.com.br/about/about-us>. Acesso em 30/07/2017.
[7] Convergência Digital, Maioria das startups fatura menos de R$ 50 mil por ano. Disponível em < http://www.convergenciadigital.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=site&infoid=45448&sid=5>.  Acesso em 02/09/2017.
[8] Olhar Digital, Sete Lições do Google para Fazer uma Startup Decolar. Disponível em < https://olhardigital.com.br/pro/noticia/7-licoes-do-google-para-fazer-uma-startup-decolar/69934>.  Acesso em 02/09/2017.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Taxa de emissão de passaporte

Velocino Pacheco Filho
Foi noticiado que está suspensa a emissão de novos passaportes devido à insuficiência do orçamento destinado às atividades de controle migratório e emissão de documentos de viagem. No entanto, para a emissão de passaporte é cobrada uma taxa de R$ 257,25 que, em tese, deveria cobrir os custos envolvidos.

A taxa é espécie tributária que tem como fato gerador uma atividade estatal relativa ao contribuinte. Temos duas espécies de taxas, conforme o tipo de atividade estatal exercida pelo Estado: (i) taxa pelo exercício do poder de polícia e (ii) taxa pela prestação de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. A taxa, juntamente com a contribuição de melhoria, são tributos ditos “vinculados” (a uma finalidade), enquanto os impostos são ditos não-vinculados, destinando-se ao financiamento do Estado como um todo. Se o financiamento do Estado é um dever da cidadania em que cada um participa na medida de sua capacidade de contribuir, quando o serviço público atende às necessidades de uma pessoa, individualmente identificada (uti singuli), ele deve ser financiado diretamente pela pessoa beneficiada, mediante pagamento de taxa.

Conforme Aurélio P. Seixas Filho que a taxa “tem a função de recuperar o custo específico e mensurável de uma atividade governamental relacionada diretamente com o contribuinte”. Por conseguinte, leciona Humberto Ávila, as taxas não podem “financiar atividades gerais e essenciais, que seriam praticadas mesmo sem a provocação dos contribuintes e pelas quais eles não podem ser considerados responsáveis”. Isto por que, segundo Misabel Derzi, o valor da taxa “deve mensurar o custo de atuação do Estado, proporcionalmente a cada obrigado”.

Ora, consta que a taxa cobrada para emissão do passaporte não é destinada diretamente ao custeio da emissão de passaportes, mas vai para a Conta Única do Tesouro Nacional, sendo utilizada para as mais diversas finalidades. A Polícia Federal não tem autonomia para gerenciar a receita da taxa cobrada dos respectivos contribuintes.

Se assim é, uma parcela do que é arrecadado do contribuinte, a título de contraprestação do serviço prestado, é utilizada em outras finalidades, ou seja, no financiamento do serviço público como um todo o que é função dos impostos e não das taxas. Ainda segundo H. Ávila, “somente uma atividade administrativa individualmente relacionada ao contribuinte e cujos custos possam ser-lhe imputáveis é que pode legitimar a cobrança de uma taxa. Não sendo esse o caso, o custo, por ser geral, deverá ser coberto por meio da cobrança de impostos”.

Se a taxa é calculada em função do custo do serviço prestado pelo Estado ao cidadão, é ilógico que faltem recursos para a prestação do serviço. O custo deveria ser integralmente coberto pela taxa cobrada. Se tal não acontece é porque o valor recolhido é desviado para financiar outras atividades. A receita da taxa deveria ser toda ela encaminhada ao órgão que presta o serviço. 

Por conseguinte, se está sendo cobrado, pela emissão de passaporte, um valor que não corresponde a essa prestação de serviço pelo Estado, é legítima a cobrança desse valor a maior? O contribuinte não está sendo extorquido, ao arcar com custos não relacionados ao serviço prestado? Esse é um abuso que não deveria ser tolerado em um Estado que se pretende democrático de direito.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Uniformização Fiscal Internacional: o Caminho para o Combate à Evasão Fiscal e o Desenvolvimento Econômico

Por Fabiano Ramalho

O comércio internacional passou por profundas mudanças nos últimos 100 anos, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. O processo de integração econômica que dominou a segunda metade do século XX promoveu uma gradual eliminação das barreiras alfandegárias no comércio entre os países, o que exigiu a adoção normas internacionais eficientes para garantir um ambiente de negócios propício e seguro.

A globalização trouxe, sem dúvida, enormes vantagens para os países abertos ao comércio internacional, impulsionando a economia mundial e fomentando o desenvolvimento econômico e social das nações por meio dos investimentos estrangeiros, que prometiam incrementar a receita fiscal dos Estados e, com isso, financiar políticas públicas diversas, como educação e saúde.

Sob o ponto de vista fiscal, duas novas perspectivas merecem destaque com a expansão da globalização: o uso ideológico do tributo, com forte viés político, e o banimento das fronteiras nacionais, com a concorrência entre os países para a atração de investimentos estrangeiros diretos. Tanto num quanto noutro caso, a parafiscalidade passou a assumir um papel primordial nas políticas fiscais das nações, especialmente nas relações internacionais.

Sob o primeiro aspecto, o uso do tributo como instrumento de mudança social, por meio de políticas de redistribuição de renda e de progressividade do imposto, por exemplo, tem sido implementado por vários países, no intuito de promover uma justiça social mais efetiva e combater a desigualdade social. Thomas Piketty diz que “o imposto não é apenas uma questão técnica: ele implica numa questão eminentemente política, que pode contribuir para remodelar as relações entre as pessoas e os grupos sociais.”[1] (PIKETTY, 2011).

Muito além de uma reforma fiscal, ele defende uma verdadeira revolução social por meio do tributo, com a individualização do imposto, progressividade e equidade, propondo, por exemplo, mudanças significativas no imposto sobre a renda e sobre o patrimônio. A preocupação, aqui, não é só com um tributo mais justo e proporcional, mas, sobretudo, com uma redistribuição de renda mais agressiva e um controle maior do Estado sobre a economia.

Mas é a segunda perspectiva trazida pela globalização que interessa para o presente estudo. A busca por investimentos estrangeiros que financiem as políticas de desenvolvimento social e econômico tem levado diversos países a enfrentarem uma verdadeira guerra fiscal internacional. A concorrência pelo capital tem imposto uma política agressiva de concessão de isenções, reduções de alíquotas e créditos fiscais, sem que isso resulte em vantagem para o Estado concedente, já que o incremento nas receitas públicas é muito modesto.

No início da década de 90, os investimentos estrangeiros no Brasil totalizavam cerca de US$ 37 bilhões, saltando para mais de US$ 103 bilhões no ano 2000, um crescimento de aproximadamente 180%. No mesmo período, a arrecadação tributária passou de US$ 143 bilhões para US$ 197 bilhões, um crescimento de pouco mais de 37%.

De fato, essas políticas geram o fenômeno do dumping fiscal internacional, um processo de deterioração da base fiscal dos países em desenvolvimento, extremamente prejudicial e com altos sacrifícios sociais e econômicos. Isso porque o ambiente concorrencial entre as nações criou condições propícias para práticas de evasão fiscal, por meio dos procedimentos de otimização fiscal por parte das empresas multinacionais, que usam e abusam de modelos baseados em trusts, offshores, paraísos fiscais, etc., para reduzir drasticamente ou mesmo eliminar o seu custo tributário. Sem falar dos prejuízos internos, como a concorrência desleal gerada contra as empresas nacionais, que não contam com os mesmos estímulos fiscais.

A corrida pelo investimento estrangeiro direto exige dos Estados a criação de um ambiente e negócios atrativo, o que inclui não apenas aspectos fiscais, mas também políticos, jurídicos e sociais. Na esfera fiscal, além dos benefícios oferecidos diretamente ao investidor, somam-se os tratados internacionais para eliminar a bitributação, que tem por finalidade básica evitar a dupla incidência tributária, com a cobrança de tributos direitos e indiretos pelo país da sede/residência e pelo país da fonte da renda (overlaping tax jurisdictions). Estima-se que existam atualmente cerca de 3.000 tratados internacionais para evitar a bitributação, sendo que o Brasil possui acordos dessa espécie com mais de 30 países[2].

A importância dos tratados internacionais sobre bitributação para o comércio internacional foi bem retratada por José Casalta Nabais:

Uma das importantes consequências da internacionalização crescente das situações tributárias traduz-se na necessidade de os estados terem uma política fiscal externa orientada para o combate à dupla tributação internacional que as actuais economias abertas favorecem extraordinariamente. Política essa que visa adequar o sistema fiscal, de um lado, à internacionalização das empresas nacionais evitando tratar os lucros por elas gerados no estrangeiro e repatriados em termos desfavoráveis face aos lucros por elas gerados no estrangeiro e repatriados em termos desfavoráveis face aos lucros gerados no país e, de outro, incentivar o investimento estrangeiro procurando não prejudicar a repartição dos lucros gerados pelos estabelecimentos estáveis nacionais de sociedades com sede no estrangeiro.” (NABAIS: 2010)[3]

A O.C.D.E. – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, por meio do seu Comitê Fiscal, no intuito de regular a tributação internacional, desenvolveu, a partir de 1963, uma convenção-modelo, uma espécie de guia comentado que serve de instrumento interpretativo do conteúdo e da amplitude das cláusulas das convenções destinadas a evitar a bitributação, tanto por países membros da OCDE, como também por aqueles não membros. No entanto, no mais das vezes, essas convenções se restringem a limitar a competência tributária do país onde o investimento estrangeiro é efetuado, deixando de lado qualquer tentativa de promover uma uniformização fiscal mais profunda entre os países contratantes, especialmente para prevenir a concorrência fiscal entre os países.

Sem essa uniformização, cria-se um cenário de concorrência fiscal internacional e de paraísos fiscais, favorecendo a ocorrência da evasão fiscal, por meio do planejamento fiscal realizado pelas grandes empresas, que fazem desaparecer o lucro ou o desloca para uma tributação reduzida ou, mesmo, inexistente. De uma ou de outra forma, o prejuízo para muitos Estados é evidente, notadamente aqueles menos desenvolvidos, que, diante da acentuada perda de arrecadação fiscal, enfrentam dificuldades para financiar investimentos em infraestrutura e gastos sociais em saúde, educação, saneamento, etc.

Na tentativa de melhor regular os modelos de tributação internacional, combater a evasão fiscal e evitar o uso abusivo dos tratados por parte das grandes empresas multinacionais, a O.C.D.E. e os países que integram o G-20 criaram, em 2013, o plano BEPS – Base Erosion and Profit Shifting, com 15 ações destinadas a de prover os governos com soluções e ferramentas para fechar as lacunas existentes nas regras tributárias, dentre elas o combate ao uso abusivo dos tratados e a divulgação de planejamentos tributários agressivos. Uma das ações mais importantes no combate à evasão fiscal trazida pelo plano BEPS é, sem dúvida, aquela que força as empresas multinacionais a declararem seus lucros onde exercem atividade econômica e obtêm rendimentos, tendo impedir, assim, que os procedimentos de otimização fiscal por elas adotados desloquem esses lucros para paraísos fiscais ou países com alíquotas reduzidas.

A partir de 2017, as empresas que auferirem receitas anuais superiores a 750 milhões de Euros ficam obrigadas a declarar, em cada país em que exerçam atividade, informações sobre lucro, ativos, impostos e empregados, etc, informações essas que serão trocadas automaticamente entre os países, para fins de controle. Também a partir de 2017, entre em vigor o intercâmbio automático de informações fiscais (Standard for Automatic Exchange of Financial Account Information in Tax Matters), instituído em 2014 pelo 7° Fórum Mundial sobre a Transparência e a Troca de Informações para Fins Fiscais, que pretende nada menos que acabar com o sigilo bancário, utilizado como instrumento para escapar do pagamento dos tributos devidos, especialmente com relação a ativos mantidos no exterior. Atualmente, mais de 90 países aderiram a esse intercâmbio, incluindo o Brasil, o que representa mais um esforço global no combate à evasão fiscal.

No entanto, mesmo essas iniciativas poderosas ainda não são suficientes para inibir integralmente a evasão fiscal. Países chaves no combate à evasão fiscal, como os EUA, ainda não aderiram ao plano BEPS e mesmo os países que ratificaram sua adesão não estão obrigados a implementar todas as ações nele previstas. Além disso, a falta de uma uniformização fiscal global mais efetiva, que minimize os efeitos nocivos da concorrência fiscal entre as nações, ameaça manter o estado caótico e paradoxal de desigualdade econômica global, impondo aos países menos desenvolvidos, que mais necessitam de recursos para a promoção do seu desenvolvimento social, político e econômico, uma renúncia de receitas gigantesca.

A concorrência fiscal entre os países e a persistência dos paraísos fiscais ainda favorecem o uso abusivo de práticas de otimização fiscal, gerando perdas de arrecadação não apenas para os países em desenvolvimento, mas também para os mais ricos do globo. Dados da Comissão Europeia estimam que, aproximadamente, 1 bilhão de Euros escapam anualmente dos cofres públicos dos países que integram a União Europeia[4]. Já o relatório Background Brief Inclusive Frameworks on BEPS[5], da O.C.D.E., estima que, anualmente, entre US$100 e US$240 bilhões de receitas tributárias são perdidas por meio dessas práticas, o que culminou no esforço de mais de 100 países no combate à evasão fiscal, por meio da implementação dos esforços propostos pelo BEPS.

O combate à evasão fiscal internacional é tão relevante que, no seu recente livro “Sans Domicile Fisc[6], Eric Bocquet (senador) e Alain Bocquet (deputado), chegaram a afirmar que a erradicação da evasão fiscal na França eliminaria toda a dívida pública:

La dette en France s’élève à 71 milliards d’euros. Le montant de l’évasion fiscale est estimé à 60 à 80 milliards d’euros par an. Elle s’élève à environ 1 000 milliards d’euros pour l’ensemble de l’Union Européenne. Si l’argent planqué dans les paradis fiscaux ou qui échappe au fisc, grâce aux méthodes d’optimisation fiscale illégale revenait à l’État, il n’y aurait plus de dette.” (BOCQUET, Eric et al: 2016) [7]

No entanto, apesar dos esforços da comunidade internacional no combate à evasão fiscal, os interesses do capital parecem ainda falar mais alto. O cenário de concorrência fiscal entre os países em muito se assemelha com a guerra fiscal do ICMS entre os Estados brasileiros e, como esta, não leva a um bom caminho em termos de desenvolvimento econômico e social. Por outro lado, a ineficácia do BEPS na inibição da concessão de incentivos fiscais ou redução dos tributos entre os países alimenta essa guerra fiscal, quer seja pela disputa do investimento estrangeiro. 

Uma política global de governança fiscal ampla e abrangente, que imponha, por exemplo, limites mínimos e máximos de carga tributária no comércio internacional e o banimento dos paraísos fiscais, pode, aos poucos, acabar com esse cenário e, somado com as demais iniciativas que atualmente estão sendo implementadas, pode, se não eliminar, reduzir muito as perdas de arrecadação provocadas pela evasão fiscal praticada pelas empresas multinacionais, garantindo, assim, um caminho mais promissor para o desenvolvimento econômico mais igualitário entre os países.


Notas e Referências:

[1] PIKETTY, Thomas. Pour Une Révolution Fiscale. Un Impôt sur le Revenu pour le XXIe Siècle. Seuil, 2011. P.67.

[2] Disponível em:

[3] NABAIS, José Casalta. A soberania fiscal no actual quadro de internacionalização, integração e globalização econômicas. Lisboa: Jornal Direito Público, volume 1, edição 6, 2010.

[4] Disponível em:

[5] Disponível em:

[6] BOCQUET , Eric e BOCQUET , Alain. Sans domicile fisc. Paris : ed. du Cherche-Midi : 2016.

[7] “A dívida [pública] na França subiu para 71 bilhões de Euros. O montante da evasão fiscal é estimado em 60 a 80 bilhões de Euros por ano. Ela subiu para algo em torno de 1 trilhão de Euros para o conjunto da União Europeia. Se o dinheiro escondido nos paraísos fiscais ou que escapa do Fisco, graças aos métodos de otimização fiscal ilegal retornasse ao Estado, não haveria mais dívida [pública]”.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A progressividade aparente do ITCMD em Santa Catarina

Velocino Pacheco Filho
Sempre que possível, dispõe o § 1º do art. 145 da Constituição, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Têm caráter pessoal os impostos que levam em conta as condições de cada contribuinte. A capacidade econômica (ou contributiva), por sua vez, respeita ao critério pelo qual cada um é chamado a contribuir para o financiamento do Estado.
A implementação dos princípios da pessoalidade e da capacidade econômica levam à progressividade da tributação, entendida como aplicação de alíquotas mais altas em razão do aumento da base de cálculo. Desse modo, os mais ricos contribuem em proporção maior para o financiamento da coisa pública.
A progressividade das alíquotas do ITCMD, como forma de realizar a justiça fiscal, encontrou respaldo no Pleno do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento do RE 562.045 RS, rel. p/ acórdão a Min. Carmem Lúcia (DJe 233, pub. em 27-11-2013), decidiu:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL: PROGRESSIVIDADE DE ALÍQUOTA DE IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS E DOAÇÃO DE BENS E DIREITOS. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 145, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DA IGUALDADE MATERIAL TRIBUTÁRIA. OBSERVÂNCIA DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO.
O art. 9º da Lei 13.136, de 25 de novembro de 2004, de Santa Catarina, adotou a progressividade de alíquotas, variando de 1% para a parcela da base de cálculo igual ou inferior a R$ 20.000,00 até 7%, para a parcela da base de cálculo que exceder a R$ 150.000,00. Esses valores ainda são os originais de 2004; apesar da inflação, eles nunca foram atualizados. 
Conforme disposto no art. 10 dessa Lei, são isentos do pagamento do imposto, o herdeiro, o legatário ou o donatário que houver sido aquinhoado com um único bem imóvel, desde que se destine à moradia própria do beneficiário que não possua qualquer outro bem imóvel e cujo valor não seja superior a R$ 20.000,00. Também está isento o herdeiro, o legatário ou o donatário, quando o valor dos bens ou direitos recebidos não exceder ao equivalente a R$ 2.000,00. Nos demais casos, a transmissão é tributada. 
Esses valores são irrisórios e fazem com que a pretendida progressividade pareça uma burla. Com a passagem do tempo e a persistência do fenômeno inflacionário, a tendência é “nivelar por cima” de modo que todos, não importa quão diminuta seja a herança, legado ou doação, passem a ser tributados pela alíquota máxima de 7%.
Além disso, a própria Constituição do Estado determina, conforme art. 130, IV, que o imposto sobre a transmissão causa mortis e doação não será exigido quando o acervo hereditário ou os quinhões forem considerados irrelevantes em razão de sua reduzida expressão monetária ou o adquirente for deficiente físico ou mental incapaz de prover a própria subsistência. Essas disposições jamais foram implementadas na legislação tributária estadual, de modo que se tornaram letra morta, apesar de constarem da Lei Magna do Estado de Santa Catarina.
Para o Estado, a situação é muito cômoda! Basta não fazer nada, que a receita tributária do ITCMD tende a aumentar, sem que isto represente aumento da riqueza ou maior eficiência dos órgãos fiscalizadores.
No entanto, diz a Constituição da República que um de seus fundamentos é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). O art. 3º, III, por sua vez, elege como objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais. A progressividade das alíquotas do ITCMD colabora com a consecução desses objetivos, mas a progressividade da Lei 13.136/2004 é apenas aparente. A falta de atualização dos valores leva todos para a alíquota máxima.
A questão, contudo, tem uma componente de ordem moral. 
Klaus Tipke distingue entre a moral tributária do Estado, a moral tributária dos contribuintes e a moral tributária da Administração. A esta última refere-se o princípio da moralidade administrativa prevista no art. 37 da Constituição Federal. 
A moral tributária do Estado, segundo Tipke, repousa no princípio da capacidade econômica. Será moral o tributo que cobre de cada um conforme a sua capacidade de contribuir.
Entre nós, Marco Aurélio Greco (Notas sobre o Princípio da Moralidade, in Direito Tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. Coord. Luis Eduardo Schouri. São Paulo: Quartier Latin, 2003) leciona que “conduta imoral não é a que ‘desobedece’ um padrão prévio, mas sim a que causa ‘injustiça’ a alguém. Moralidade, pois, é conceito que só pode ser aferido em relação ao Outro que é destinatário da conduta”.
Em síntese, o crescimento da arrecadação, devida à não atualização da tabela do ITCMD, de modo que todos passem gradualmente a ser tributados pela alíquota mais alta, caracteriza uma imoralidade, na medida que subverte a progressividade e o princípio de cada um ser tributado na medida de sua capacidade econômica.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Substituição tributária e livre concorrência

Velocino Pacheco Filho

Os Estados justificam a adoção do regime de substituição tributária “para frente” – regime em que o ICMS devido pelo varejista é recolhido antecipadamente pelo industrial, pelo importador ou pelo atacadista, na qualidade de contribuinte substituto – argumentando que contribui (i) para o incremento da arrecadação, (ii) pela garantia da concorrência leal e (iii) pelo desestímulo à evasão tributária.

Com efeito, a substituição tributária permite um melhor uso dos meios, materiais e humanos, à disposição do Fisco: os trabalhos de fiscalização concentram-se em poucas empresas (indústrias, importadores e atacadistas), no lugar de dispersar os esforços com grande número de empresas varejistas.

No tocante à proteção à concorrência, argumenta-se que quando o imposto é retido por antecipação, não importa se será revendido, no decurso da cadeia de circulação da mercadoria, por uma empresa “séria” ou por um sonegador contumaz, já que a retenção será igual para ambos. Caso não houvesse a retenção antecipada do imposto, o caminho estaria aberto para o subfaturamento e a evasão tributária, mediante ocultação da ocorrência do fato gerador. A incorporação prévia do lucro à base de cálculo teria o efeito de garantir que o produto chegue ao varejo pelo mesmo preço, independentemente de quem seja o revendedor. 

Ora, a livre concorrência consta entre os princípios informadores da ordem econômica, relacionados no art. 170 da Constituição da República, juntamente com a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e a busca do pleno emprego. Ou seja, o constituinte optou por uma economia de mercado, onde os preços são determinados pelo equilíbrio entre oferta e demanda, indicando o que, quanto, como e para quem produzir. 

Sucede que uma economia de mercado requer uma tributação neutra sobre o consumo e que não influencie nas decisões dos agentes econômicos. Contudo, tributação neutra não significa simples não-intervenção do Estado na economia, como queria o antigo paradigma liberal. Estamos falando em neutralidade na tributação sobre o consumo e não em relação ao sistema econômico em geral, em setores onde pode ser exercida a função indutora da tributação. Mesmo em relação ao mercado, deve ser mantido um equilíbrio entre os demais valores prestigiados pelo constituinte, como o tratamento favorecido à microempresa, a busca do pleno emprego, a proteção ao meio-ambiente etc.

Um motivo para a intervenção do Estado na economia é justamente a proteção da livre concorrência, conforme dispõe o § 4º do art. 173 da Constituição: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Em suma, espera-se que o Estado aja com imparcialidade, sem criar condições desiguais de concorrência para os agentes econômicos.

Então se fala em neutralidade tributária no sentido de não interferência do tributo nas relações de mercado, tornando determinada operação mais vantajosa para um ou mais desvantajosa para outro. Neutralidade tributária significa que as decisões dos agentes econômicos (o que e quanto ofertar no mercado) dependam de fatores econômicos (demanda e oferta) e não da incidência de tributos.

Entretanto, os Fiscos dos Estados, na sua justificação do regime de substituição tributária não considera a hipótese de que o oferecimento do produto a preço menor não é necessariamente decorrente de fraude e sonegação, mas de maior competência  concorrencial. A substituição tributária pode apenas estar encobrindo a ineficiência das empresas interessadas, na medida em que o Poder Público garante a margem de lucratividade. Porque ser eficiente se o Poder Público as protege contra as incertezas da concorrência? Tudo sugere um acordo entre algumas empresas e o Poder Público. A substituição tributária se prestaria ao papel de barreira contra a entrada de novas empresas no mercado. Isto explicaria, por exemplo, a seleção arbitrária e sem critérios das mercadorias sujeitas ao regime. 

A substituição tributária constitui uma exceção à regra da não-cumulatividade, já que todo o tributo é exigido em uma única fase do ciclo de comercialização. Na substituição tributária “para frente” o tributo que seria devido na última operação do ciclo de comercialização (do varejista para o consumidor final) é exigido antecipadamente de quem inaugura o ciclo – o produtor, o importador ou o atacadista. Nesse caso, o imposto exigido do substituto é calculado sobre base de cálculo arbitrada, com afastamento da base de cálculo real correspondente à operação presumida que deverá ser realizada pelo substituído. Naturalmente, ela representa o abandono de qualquer tributação neutra sobre o consumo e, por conseguinte, de uma tributação compatível com o princípio da livre concorrência, já que a incidência do tributo passa a ser fator relevante nas decisões empresariais.

Quando duas empresas concorrem no mercado, deveria vencer a que fosse mais eficiente, colocando seu produto a preços mais baixos que o concorrente ou ofertando um produto de melhor qualidade. O tributo, no caso, iria integrar a estrutura de custos. O empresário mais eficiente, que conseguisse reduzir os seus custos e oferecer seus produtos a preços mais competitivos, espera-se, iria conseguir uma fatia de mercado maior que o de seu concorrente.

Contudo, com regime de substituição tributária “para frente” será cobrado o tributo sobre um preço estimado que não leva em conta a eficiência do empresário. É como se para o Fisco, não interessasse o empresário ser mais eficiente, oferecendo seu produto a um preço menor. A base de cálculo do fato gerador presumido é a mesma.

Desse modo, o empresário mais eficiente, que tem condições de oferecer preços mais baixos ao mercado do que aqueles fixados por presunção do Fisco, estará sendo penalizado na medida em que irá repassar ao consumidor o mesmo valor do tributo que aqueles que praticarem preços iguais ou mesmo superiores ao que for arbitrado. Por conseguinte, a substituição tributária “para frente” constitui, na verdade, um obstáculo à livre concorrência.

Assim, pretender que a substituição tributária garante a concorrência é um completo equívoco. Pelo contrário, o regime, além de subverter a não cumulatividade, representa uma intervenção do Estado no sistema de preços. Constitui o que Karl Engish chama de contradição teleológica – i.e. uma legislação infraconstitucional que frustra a consecução de princípios insertos na Constituição, no caso a livre concorrência .

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Tributação e analogia

Velocino Pacheco Filho 

A analogia é técnica de integração da legislação tributária, prevista no art. 108, I, do CTN: “Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia”.

São duas as condições para o emprego da analogia: (i) a existência de lacuna, como uma incompletude insatisfatória do ordenamento jurídico e (ii) a existência de pelo menos um elemento de identidade entre o caso previsto e o não previsto. Segundo Limongi França (Hermenêutica Jurídica. 7ª e. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 45), “a identidade entre os dois casos deve atender ao elemento em vista do qual o legislador formulou a regra que disciplina o caso previsto, constituindo-lhe a ratio legis”. Carlos Maximiliano fala de uma semelhança essencial, “da qual dependem todas as conseqüências merecedoras de apreço na questão discutida”.

Por sua vez, a lacuna não se confunde com o silêncio eloquente da lei (o que a lei quis, disse, o que não quis, guardou silêncio).  A distinção, elucida Marco Aurélio Greco (Planejamento Tributário. 3ª ed. São Paulo Dialética, 2011, p. 176): 

a lacuna é a não previsão no sentido de falta de norma específica para a hipótese; o silêncio eloqüente é o não querer que esteja previsto, no sentido de existir uma norma que determina que o caso não está alcançado. Não é meramente o não prever; silêncio eloqüente é uma não previsão que corresponde a uma vontade que o caso não esteja alcançado.

No caso do direito tributário, uma terceira condição se impõe: conforme § 1º do art. 108 do CTN, “o emprego da analogia não poderá resultar em exigência de tributo não previsto em lei”. Sobre o tema, leciona Hugo de Brito Machado (Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. II, São Paulo: Atlas, 2004, p. 225) que “a lei que define as hipóteses de incidência tributária não admite integração analógica”, porque seria incompatível com o princípio da legalidade. Ou seja, não se poderia cogitar de lacuna porque em face do princípio da legalidade tributária, não há tributo sem lei anterior que o institua.

Seria o caso do assim chamado “diferencial de alíquotas” nas operações interestaduais – a diferença entre a aplicação da alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual. A partir da Emenda Constitucional 87/2015 que alterou a redação do inciso VII do § 2º do art. 155 da Constituição da República, o ICMS resultante da diferença entre as alíquotas pertenceria ao Estado de destino.

Normalmente, o imposto devido é o resultado da aplicação da alíquota sobre a base de cálculo que, no caso do ICMS, é o valor da operação. Entretanto, no caso da importação de mercadoria do exterior, a mercadoria não vem onerada pelo ICMS, de modo que a simples aplicação da alíquota sobre o valor da operação representa que o imposto está sendo calculado “por fora”, ao contrário das operações no mercado interno. Isto significa que a mercadoria importada sofre tributação menor que a similar adquirida no mercado interno.

Em vista disso, a Emenda Constitucional 33/2001 acrescentou a alínea “i” ao inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição da República: “cabe à lei complementar fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”.

O dispositivo constitucionaliza o cálculo “por dentro” do ICMS e dispõe que o cálculo por dentro também será aplicado às importações. Isto por que, até então, o ICMS nas importações era calculado “por fora”. A inclusão é expressa para o ICMS relativo à importação e não a qualquer outro caso. Por outro lado, o dispositivo comete à lei complementar a fixação da base de cálculo, ou seja, o cálculo do imposto. 

Ora, a Lei Complementar 87/1996 define a base de cálculo na importação no art. 13, V. O § 1º, I, do mesmo artigo, com redação dada pela Lei Complementar 114/2002, dispõe que “integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo, o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”. A alteração introduzida pela Lei Complementar 114/2002 torna expressamente obrigatório o cálculo por dentro no caso de importação. 

Outras situações, entretanto, como é o caso do diferencial de alíquotas, continuou sendo calculado “por fora”, apesar de apresentar os mesmos efeitos. Poderia ser aplicada, por analogia, a mesma solução?

A situação é análoga ao da importação. A mercadoria é tributada no Estado de origem pela alíquota interestadual, o que significa que o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna no Estado de destino e a alíquota interestadual é calculada “por fora”. Como na importação, há vantagem em comprar de outro Estado.

A ratio legis, então, nos dois casos, é a mesma: o cálculo “por fora” não equaliza o ônus tributário, conforme a mercadoria seja adquirida internamente ou importada do exterior ou de outro Estado. Por não haver previsão expressa da legislação, a lacuna, como incompletude insatisfatória do ordenamento jurídico, está caracterizada.

Contudo, a adoção do cálculo “por dentro” representa uma inovação e um agravamento do ônus tributário. Até agora, o diferencial de alíquota tem sido calculado “por fora”. Nessas condições, a integração do direito tributário, pelo emprego da analogia, esbarra na vedação inserta no § 1º do art. 108 do CTN.

A adoção do “cálculo por dentro”, no caso do diferencial de alíquota, exige lei em sentido estrito. A própria Constituição da República dispõe que compete à lei complementar, em relação aos impostos que discrimina, a definição da respectiva base de cálculo. (CF, art. 146, III, “a”). Trata-se do princípio da reserva legal que, conforme magistério de Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª e. São Paulo: Atlas, 2003, p. 199), é de abrangência mais restrita que o princípio da legalidade: “Se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente alguns estão submetidos ao da reserva da lei. Este é, portanto, de menor abrangência, mas de maior densidade ou conteúdo, visto exigir tratamento de matéria exclusivamente pelo Legislativo, sem participação normativa do Executivo”.

O Estado de Minas Gerais editou a Lei 21.781/2015, tratando do diferencial de alíquota, seguido do Decreto 46.930/2015 que disciplinou o cálculo por dentro do imposto relativo à diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

UMA NOVA ÉTICA TRIBUTÁRIA

por FABIANO RAMALHO

O mundo que conhecemos está mudando. Não apenas sob o aspecto econômico, mas também na forma como as pessoas se relacionam. A convergência de um mundo globalizado e dos avanços tecnológicos possibilitaram condições nunca antes vistas para o progresso humano. Vivemos mais, vamos mais longe e com mais saúde.

E, com o avanço de três poderosas ferramentas tecnológicas, a saber, o big data[1], a inteligência artificial e os objetos conectados (ou Internet dos objetos), essas mudanças aceleraram ainda mais. Sob a lógica da inovação constante, uma nova realidade social e econômica se impôs de forma irresistível, mudando a vida dos indivíduos. Segundo Luc Ferry[2], estamos passando para uma nova etapa da revolução industrial, chamada “economia colaborativa”, cuja principal característica é a autonomia extrema dos indivíduos no desenvolvimento de atividades econômicas.

Novas formas de exercer atividades econômicas, como aquelas decorrentes das aplicações Uber, Blablacar e AirBnB, onde os indivíduos exploram seu patrimônio pessoal para fins econômicos, provocaram a derrocada de um mundo em rápida obsolescência e fizeram com que profissões tradicionais ficassem fadadas ao desaparecimento, num inevitável processo de dumping social.

Nesse cenário turbulento, uma nova ética social reclama seu espaço, a fim de acomodar as novas relações sociais e permitir o aperfeiçoamento das instituições político-jurídicas. O Direito precisa, evidentemente, apresentar respostas a essas novas demandas sociais e, no caso do Direito Tributário, uma nova ética começa a delinear os contornos da atuação dos operadores do direito e da contabilidade.

Essa ética da alteridade em matéria tributária começa a surgir no meio jurídico por meio da positivação de normas de responsabilidade, que impõem deveres de comportamento para os profissionais da tributação, obrigando-os, e.g., a reportar atos de desconformidade à Lei, praticados por seus clientes.

É o caso, e.g., da obrigação de declarar ao COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras, qualquer suspeita de crime de lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo. A Lei n° 9.613/1998, com as alterações da Lei n° 12.683/12, obriga diversas pessoas físicas e jurídicas a promoverem essa declaração, prevendo, em seu art.1°, que constitui crime “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Nos últimos 5 anos, uma média superior a 400.000[3] comunicações de suspeita de irregularidades foram feitas ao COAF por ano, desencadeando procedimentos diversos pelas autoridades competentes, com vistas à prevenção e ao combate da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo.

Mas talvez o mais expressivo exemplo de mudança na ética profissional esteja surgindo em alterações iminentes da atividade dos contadores e auditores. Está em fase de implantação no Brasil o NOCLAR - Non Compliance with Laws and Regulations (não conformidade com as leis e regulações), um dos módulos do International Financial Reporting Standards (IFRS), editada em julho de 2016 pela International Ethics Standards Board for Accountants - IESBA (Conselho de Normas Éticas Internacionais para os Profissionais da Contabilidade), com o intuito de combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo no mundo.

No Brasil, o NOCLAR está sendo traduzido e analisado pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e pelo Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (IBRACON), dentre outros órgãos. Prevista para entrar em vigor em julho de 2017, a norma exige que, não havendo outra solução, os contadores e auditores informem aos órgãos competentes atos de desconformidade à lei, praticados pelas empresas para as quais prestem serviços.

Essa norma representa uma evolução enorme em termos de ética profissional, a ponto de impor a revisão de velhos conceitos relacionados com o sigilo profissional. Em nome do interesse público, o dever de comunicar atos de desconformidade à Lei (e não apenas aqueles relacionados com lavagem de dinheiro e terrorismo, objetos do COAF), tem um forte apelo de moralização das atividades econômicas, ao mesmo tempo em que impõe uma forte disciplina legal aos seus agentes. As possibilidades em termos de combate à evasão fiscal, e.g., são imensas, o que contribuiria para o equilíbrio das contas públicas. Por isso, não é exagero admitir que, em curto prazo, normas semelhantes sejam assimiladas pela legislação pátria, alcançando diversos outros profissionais.

No entanto, diante dessa tendência normativa inovadora, surgem preocupações legítimas com a preservação de direitos e garantias previstos em nosso Ordenamento Jurídico, como, e.g., a segurança jurídica, o respeito às prerrogativas profissionais e a proteção daqueles que comunicam os atos de desconformidade à Lei.

Como oferecer a devida proteção contra perseguições e represálias? Mesmo na experiência do COAF, onde há proteção por meio do sigilo, ocorrem falhas que expõem o delator a diversos riscos. Como admitir, então, a vigência imediata do NOCLAR ou norma semelhante, cujo alcance é muito maior e não tem previsão de proteção ao comunicante?

O NOCLAR advém de um conjunto de pronunciamentos contábeis padronizados globalmente, com previsão de aplicação simultânea nos diversos países signatários. Ocorre que nem todos possuem maturidade social e legislativa para recepcionar as novas normas e procedimentos. É o caso do Brasil, que possui um gap nesse sentido, acumulando uma grande defasagem no desenvolvimento social e político em relação aos países mais desenvolvidos. Essa desvantagem impõe ao país uma dificuldade extra na implementação dessa nova matriz de ética profissional para os profissionais da contabilidade.

Não é apenas a falta de uma legislação de proteção para as comunicações de atos ilegais, mas também a falta de uma cultura que permita uma consciência plena do dever de legalidade que causa preocupação. Impor essas alterações sem o devido amadurecimento legal e social implicaria em queimar etapas importantes do desenvolvimento de nossas instituições, o que colocaria em risco tanto a eficácia das novas medidas quanto a segurança jurídica dos cidadãos.

Na maioria dos países desenvolvidos, a comunicação dos atos de desconformidade à lei deriva de uma maturidade social avançada, cuja cultura jurídica reconhece tal prática como um “direito” do cidadão. De fato, quem comunica atos contrários à lei o faz para o exercício de um direito, em prol do interesse público, o que é garantido por lei. Muito antes de se pensar em NOCLAR, já existia nesses países todo um arcabouço legal que garantia o exercício do direito de relatar os atos ilegais e protegia o comunicante de qualquer consequência nociva.

Normas internacionais, ao longo do tempo, sistematizaram essa proteção em nível global por meio de tratados internacionais, como é o caso da “Convenção Civil sobre a corrupção do Conselho Europeu”, de 04/11/1999, e da “Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção”, de 31/10/2003. Esta última, da qual o Brasil é signatário, prevê, em seu art.33, a proteção de “toute personne qui signale aux autorités compétentes, de bonne foi et sur la base de soupçons raisonnables” os fatos de corrupção[4].

Nos EUA, onde o comunicante é conhecido como wistleblower, uma série de normas oferecem proteção ao exercício do direito de comunicar atos ilegais, como o  Whistleblower Protection Act (Public Law 101-12)[5], de 1989, que protege os servidores públicos federais que reportam desvios de conduta em suas agências governamentais. O mesmo ocorre na França, onde o Lanceur d´Alerte, como é chamado, é protegido por leis e regulamentos diversos, como a Loi n° 2007-1598[6], de 13/11/2007, relativa à luta contra a corrupção.

A Transparência Internacional, ONG dedicada ao combate à corrupção ao redor do mundo, editou o International Principles for Whistleblower Legislation, que é um conjunto de sugestões legislativas para a proteção de quem reporta desconformidade e para o incentivo dessa reportagem. Nesse documento, constam os princípios básicos que animam o direito de reportar, como consta do seguinte trecho:

“The right of citizens to report wrongdoing is a natural extension of the right of freedom of expression, and is linked to the principles of transparency and integrity.” [7]

No entanto, mesmo diante de tamanho suporte legislativo, a proteção ao comunicante ainda apresenta falhas. Um caso ficou famoso na Europa, conhecido como LuxLeaks[8], onde dois lanceurs d’alerte, Antoine Deltour e Raphaël Halet, colaboradores do escritório de auditoria PricewaterhouseCoopers (PwC), foram condenados[9] pela Justiça de Luxembourgo à doze meses de prisão e multa de 1.500 € e nove meses de prisão e 1 000 €, respectivamente, por terem revelado o conteúdo de várias centenas de acordos fiscais extremamente vantajosos entre o fisco de Luxemburgo e clientes da PwC, como a Apple, Amazon e Pepsi.[10]

Se mesmo lá, onde existe forte proteção jurídica para o comunicante, ocorrem represálias e perseguições, como esperar que a obrigação de contadores e de outros profissionais brasileiros de comunicar atos de desconformidade à lei, sem nenhuma proteção prévia, possa alcançar êxito no Brasil? Parece prematuro admitir a vigência do NOCLAR e de normas do mesmo gênero no país, diante desse cenário preocupante.

Ninguém, em sã consciência, seria contra o desenvolvimento de novas regras de ética profissional, sobretudo quando voltadas ao combate à corrupção, à fraude e à evasão fiscal. No entanto, aderir a tais regras sem a devida proteção seria um verdadeiro suicídio, com graves consequências sociais para o denunciante. É condição sine qua non, para o amadurecimento da ética tributária no Brasil, o desenvolvimento sustentável de condições sociais, políticas e econômicas, voltadas para a formação de uma cultura social e jurídica que permitam a implementação segura de normas com essa finalidade. E só conseguiremos isso através de um amplo debate público e da formação de uma adequada consciência sobre o justo em matéria tributária.


(Obs.: Artigo publicado originalmente em 22/02/2017, na Coluna da ASSET/SC, junto ao site Empório do Direito.)



[1] Todo tipo de rastro que deixamos na Internet e que são coletados, tratados e comercializados.
[2] Disponível em https://goo.gl/HjXi8a
[7] Disponível em www.transparency.org
[9] Atualmente em fase de recurso na Corte de Luxemburgo.