DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A exigibilidade do ICMS diferido

Velocino Pacheco Filho

Entende-se por diferimento a postergação da exigibilidade do imposto para etapa posterior de circulação da mercadoria. Segundo Sacha Calmon Navarro Coelho, o diferimento do ICMS ocorre quando “o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria é transferido para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro”. Assim, conforme julgamento da Primeira Turma do STF, no RE 112.354-6, “do diferimento não resulta eliminação ou redução do ICM; o recolhimento do tributo é que fica transferido para momento subsequente”.

O diferimento pode envolver outros institutos, como é o caso da substituição tributária relativa a operações antecedentes ou “para traz”. Entende-se por substituição tributária a translação da sujeição passiva para pessoa diversa do contribuinte. Conforme define o art. 121, parágrafo único, I, do CTN contribuinte é a pessoa que tem relação pessoal e direta com a situação fática que constite o respectivo fato gerador. 

Já a substituição tributária está prevista no art. 128 do Código Tributário Nacional: “a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação”.

O contribuinte do imposto está definido implicitamente na norma de incidência tributária. Isto é, se o contribuinte é aquele que “tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato gerador”, basta determinar o fato gerador que teremos identificado o contribuinte – e.g. se o fato gerador do imposto é a propriedade, a auferição de renda ou a circulação de mercadoria, o contribuinte não pode ser outro senão o proprietário, quem aufere a renda ou quem promove operações de circulação de mercadorias. Porém, a lei pode atribuir a responsabilidade pelo recolhimento do imposto a terceiro diverso do contribuinte, embora vinculado ao fato gerador (fonte pagadora, adquirente da mercadoria etc.).

De modo geral, o diferimento do imposto para operação subsequente implica substituição tributária, na medida em que a pessoa obrigada ao recolhimento (adquirente da mercadoria) é pessoa diversa do contribuinte (pessoa que procede à saída da mercadoria de seu estabelecimento). No caso do adquirente promover nova saída tributada, por valor igual ou superior ao da entrada, o imposto que foi diferido estará incluso no imposto devido na operação subsequente ou – na linguagem utilizada pelo legislador – o imposto diferido subsume-se no imposto devido na operação subsequente.

Por outro lado, a exoneração tributária é matéria submetida à reserva absoluta de lei. O financiamento do Estado é obrigação de todos, na medida de suas respectivas capacidades contributivas. Logo, somente a lei (em sentido estrito) pode dispensar a obrigação tributária. Jamais decreto ou decisão de autoridade administrativa poderia fazê-lo. No caso do ICMS, o constituinte impôs ainda a disciplina dos convênios para o exercício da competência exonerativa. A regra encontra-se insculpida no § 6° do art. 150 da Lei Maior:

“§ 6° Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2°, XII, g”.

Por conseguinte, o imposto que foi diferido deve tornar-se exigível em algum momento. Caso contrário, o diferimento transmutar-se-ia em isenção, o que não é possível. Somente convênio celebrado entre os Estados e o Distrito Federal, nos termos da Lei Complementar 24/75, poderia autorizar a dispensa do tributo. Assim, o ICMS diferido deve ser exigível em algum momento. Caso o imposto diferido não tenha sido recolhido em algum momento no futuro, ele deve ser cobrado de ofício, com os acréscimos legais, sem prejuízo do competente inquérito administrativo para apurar a responsabilidade do funcionário que autorizou a dispensa do pagamento.

Mas, quando é devido o ICMS diferido?

O ICMS, por força do disposto no art. 155, § 2°, I, da Constituição Federal, é um imposto plurifásico não-cumulativo. Isto significa que incide em todas as etapas de comercialização da mercadoria, mas o imposto a recolher, em cada etapa, corresponde à diferença entre o imposto devido e o que foi pago nas etapas anteriores.

Então, o imposto que foi diferido em uma etapa da comercialização não gera crédito para a operação subsequente. A legislação diz que se subsume na operação seguinte, no sentido de que parte do ICMS então recolhido nada mais é senão o ICMS diferido.

Dispõe o RICMS-SC que “o imposto devido por substituição tributária subsumir-se-á na operação tributada subsequente promovida pelo substituto”. Se não houver operação tributada subsequente, o destinatário (substituto tributário) deve recolher o imposto que foi diferido, salvo se a operação subsequente for isenta ou não tributada ou se ocorrer qualquer evento que impossibilite a ocorrência do fato gerador do imposto.

Mas, o que ocorre se o imposto devido pela operação subsequente não for suficiente para cobrir o ICMS que foi diferido? Seria, por exemplo, o efeito de uma redução da base de cálculo. Como diferimento e isenção não se confundem, o imposto diferido (=postergado) deve ser satisfeito.
  
“Subsumir”, conforme Dicionário Aurélio, vem de sub- + lat. sumere (tomar, colher, aceitar). Significa conceber um indivíduo como compreendido numa espécie ou uma espécie como compreendida em um gênero. Por conseguinte, “subsumir” refere-se à absorção da parte no todo ou do menor no maior.

Ora, se o imposto devido não for suficiente para cobrir o imposto diferido, então não há absorção do diferido pelo imposto devido na operação. Em outras palavras, não há subsunção. Como – segundo o STF – do diferimento não resulta eliminação ou redução do imposto, infere-se que a parcela do imposto diferido que não se subsumiu na operação subsequente deve ser recolhida.

Com efeito, a dispensa de recolhimento do imposto diferido – quando este não se subsumir completamente na operação subsequente – caracterizaria, de fato, uma isenção a qual somente poderia ter sido instituída por lei e mediante prévia autorização pelo Confaz.

Em síntese, como diferimento não se confunde com isenção, ele deve ser recolhido em algum momento posterior, subsumindo-se no imposto devido ou, se for o caso, recolhido separadamente pelo substituto tributário.

À evidência, quando o RICMS-SC dispõe que o imposto diferido deve ser pago juntamente com o imposto relativo à operação subsequente, fica implícito que a “subsunção” do imposto pressupõe que o imposto devido na operação subsequente seja maior que o diferido (ou seja, se o imposto não tivesse sido diferido, seria deduzido como “crédito”). Caso contrário – o imposto diferido ser maior que o imposto relativo à operação subsequente – a parcela do imposto diferido que exceder o imposto próprio da operação deverá ser recolhida, sob pena de exonerar parcela do imposto devido, sem lei ou convênio que o autorize.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Critérios para identificação das mercadorias sujeitas ao ICMS-ST

Velocino Pacheco Filho

Uma dúvida recorrente é saber se determinada mercadoria está inclusa no regime de substituição tributária “para frente” ou não. Mais exatamente, se o sujeito passivo está obrigado a recolher antecipadamente o tributo devido nas etapas subsequentes de comercialização até o consumidor final ou não.

Para definir critérios objetivos de enquadramento, vamos nos basear em duas regras de interpretação: a) interpretação restritiva do direito excepcional e b) o conceito de reserva legal.

O art. 155, II, da Constituição Federal atribuiu aos Estados competência para instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e à prestação dos serviços que menciona. O § 2º, I, do mesmo artigo diz que o imposto será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.

Então, o caso normal é o imposto incidir em cada etapa de circulação da mercadoria (ou da prestação de serviço), compensando-se o imposto devido em cada etapa com o imposto que incidiu nas etapas anteriores (não-cumulatividade). O regime de substituição tributária “para frente”, que concentra toda a arrecadação em uma única etapa, ao exigir que o fabricante ou importador recolha antecipadamente todo o imposto devido nas etapas futuras, constitui exceção à não cumulatividade. 

Por conseguinte, as normas que instituem a substituição tributária, por serem normas de direito excepcional, devem ser interpretadas restritivamente, ou seja, apenas nos estritos termos da legislação. Em primeiro lugar, temos a descrição da mercadoria na lei. A mercadoria estará sujeita ao regime de substituição tributária apenas se corresponder exatamente à descrição contida na lei. A classificação da mercadoria na NCM/SH desempenha um papel subsidiário. Vejamos as seguintes hipóteses:

a) dentro de cada posição, subposição ou código da NCM/SH, estarão sujeitos à ST apenas as mercadorias que corresponderem à descrição na lei; 

b) as mercadorias abrangidas na posição, subposição ou código da NCM/SH que não corresponderem às mercadorias descritas na lei não estão submetidas à ST; e

c) no caso de conflito entre a descrição da mercadoria na lei e na NCM/SH, prevalece a descrição contida na lei.

Eventualmente, a legislação pode condicionar a inclusão da mercadoria no regime de substituição tributária à sua destinação. Nesse caso, apenas as mercadorias que tiverem essa destinação estariam sujeitas ao regime. A pergunta óbvia é: como o substituto tributário poderia saber qual a destinação que será dada à mercadoria pelo consumidor? No caso, a destinação deve ser a prevista pelo fabricante, mesmo que o consumidor lhe dê outra destinação. 

Por fim, tratando-se de norma de direito excepcional, é inviável a utilização da analogia para incluir no regime, mercadorias não descritas expressamente na lei. Isso porque, o direito excepcional afasta a possibilidade de lacuna o que inviabiliza a integração da legislação tributária, nos termos do art. 108. Ainda que fosse o caso de lacuna, o emprego da analogia é vedado pelo § 1º desse artigo.

O substituto tributário deve recolher (i) o ICMS relativo à operação própria e (ii) a antecipação, como responsável, do ICMS relativo ao fato gerador presumido. Então, no caso de inclusão por analogia de outras mercadorias no regime, estaria sendo exigido tributo não previsto em lei.

A substituição tributária nada mais é que a atribuição de responsabilidade pelo recolhimento do ICMS a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador, mas diversa do contribuinte – aquele que tem relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador (CTN, art. 121, p. único, I). Assim, a norma que institui a substituição tributária modifica o critério subjetivo, situado no consequente da norma de incidência tributária – ou regra matriz de incidência. 

Ora, segundo o art. 150, § 7º da Carta da República, somente a lei – em sentido formal – poderá atribuir a condição de responsável pelo pagamento de imposto cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente. Em outras palavras, somente a lei pode instituir a substituição tributária “para a frente” que, portanto, está abrangida pelo princípio da reserva legal. Conforme Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª e. São Paulo: Atlas, 2003, p. 199), se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente os campos materiais especificados pela Constituição estão submetidos ao da reserva da lei.

Roque Antonio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 223), por sua vez, esclarece que a lei deve conter todos os elementos e supostos da norma jurídica tributária, inclusive o sujeito passivo, elementos estes que, portanto, somente podem ser definidos por lei (em sentido estrito) e não podem ser objeto de delegação ao Poder Executivo.
Nesse sentido, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal (ADI 1.296 PE): “o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado – como o Poder Executivo – produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar”.

A sujeição da substituição tributária ao princípio da reserva legal foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (R. Esp 1.370.908 SC, rel. Min. Humberto Martins, DJe de 4-12-2014), ao decidir que a fixação do regime de substituição tributária por decreto afronta o princípio da reserva legal.
Por conseguinte, o ICMS-ST somente pode ser exigido em relação às mercadorias expressamente previstas em lei como sujeitas ao regime – mais precisamente, no caso catarinense, somente estão sujeitas ao regime de substituição tributária as mercadorias descritas na Seção V do Anexo 1 da Lei 10.297/1996. Assim, se determinada mercadoria estiver prevista em convênio – e.g. Convênio ICMS 92/2015 – mas não estiver prevista na lei estadual, não é possível cobrar o ICMS-ST. Afinal, é necessária lei em sentido formal e convênio não é lei, mas um acordo firmado pelos Poderes Executivos dos Estados, sem o concurso dos respectivos Poderes Legislativos.

O regime de substituição tributária deve ser instituído pela lei de cada Estado. Os convênios apenas dão vigência extraterritorial à legislação estadual, de modo a obrigar o contribuinte estabelecido em outro Estado a recolher o ICMS-ST nas operações interestaduais para o Estado de destino. Claro que essa possibilidade depende da mercadoria estar prevista na lei que instituiu a substituição tributária no Estado de destino. Se determinada mercadoria estiver prevista em convênio, mas não estiver prevista na lei do Estado de destino, a substituição tributária não poderá ser exigida.