DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A transação e a indisponibilidade do crédito tributário.

Velocino Pacheco Filho

Uma fonte permanente de incerteza, nas relações entre Fisco e contribuintes, é a morosidade do processo de impugnação do crédito tributário. A Emenda Constitucional 45/2004 acrescentou aos direito fundamentais “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Resta adotar as medidas que tornem realidade esse novo direito. Não seria bom se houvesse algo como um “juizado administrativo de pequenas causas tributárias”?

O art. 156, III, do CTN, prevê a transação como modalidade de extinção do crédito tributário. Trata-se de instituto análogo ao previsto no art. 840 do Código Civil: “É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas”. Contudo, diversamente do que ocorre no direito civil, a transação no direito tributário (i) depende de lei que a autorize e (ii) somente é possível no caso de terminação de litígios (não há transação para prevenir o litígio). 

Dispõe o art. 171 do CTN: “A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção do crédito tributário”.

Conforme art. 10 da Lei Complementar 24/1975, as condições gerais para a concessão de transação por um Estado-membro serão definidas por convênio. No entanto, a Cláusula Quinta do Convênio ICM 24/75 dispõe apenas que a transação será permitida em “casos excepcionais de que não resulte dispensa de tributo devido”.

 O que sempre frustrou a adoção da transação no direito tributário é precisamente as “concessões mútuas”, já que o Fisco está sujeito ao princípio da indisponibilidade da coisa pública. Conforme Paulo de Barros Carvalho, “o princípio da indisponibilidade dos bens públicos impõe seja necessária previsão normativa para que a autoridade competente possa entrar no regime de concessões mútuas, que é da essência da transação”.

Ensina Diógenes Gasparini que os bens, direitos, interesses e serviços públicos não estão à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. 

Já segundo Sacha Calmon Navarro Coelho, na esfera do direito privado prevalece o império da vontade das partes, que podem livremente dispor de seus direitos o que não acontece no direito tributário em que o crédito tributário é público e indisponível: “somente a lei pode dele dispor”. Isto por que transacionar não é pagar, é procedimento para possibilitar o pagamento.

O litígio a que se refere o CTN, pressupõe discussão em juízo ou será admissível a transação no processo administrativo? Na opinião de Hugo de Brito Machado, a transação tem aplicação restrita aos créditos tributários discutidos perante o Poder Judiciário. O litígio, segundo ele, caracteriza-se pela resistência de um dos sujeitos da obrigação tributária à pretensão do outro. Os órgãos de julgamento administrativo integram a própria Administração Pública, de sorte que no processo administrativo fiscal faz-se apenas o controle interno da legalidade do lançamento. Antes de ser este definitivo para a própria Administração não se pode dizer que existe uma pretensão desta a ensejar resistência do contribuinte.

Por outro lado, se considerarmos a cientificação do lançamento ao sujeito passivo como manifestação da pretensão impositiva do Fisco, poderíamos entender a transação como forma alternativa de resolução do conflito, ainda que na esfera do contencioso tributário administrativo.

Ora, alguns países – Portugal, por exemplo – têm adotado com sucesso a técnica da arbitragem na solução de conflitos tributários. A adoção do juízo arbitral tem se mostrado eficiente em impor maior celeridade aos processos, bem como em reduzir a pendência de processos nos tribunais administrativos. A transação abre caminho para esse tipo de solução.

Constituído o crédito tributário, o contribuinte pode (i) impugnar administrativamente o lançamento ou (ii) esperar a execução fiscal para então opor embargos ou exceção de pre-executividade, se for o caso. Poderíamos acrescentar uma terceira possibilidade: tratando-se de crédito tributário até determinado valor, o sujeito passivo poderia protocolar junto às autoridades administrativas pedido de transação. 

A lei que criar a arbitragem administrativa, por conseguinte, deverá (i) fixar o valor máximo do crédito tributário que poderá ser objeto de arbitragem, (ii) definir a autoridade competente para celebrar a transação, (iii) as condições que permitam a celebração de transação; e (iv) qual o limite das concessões pela Fazenda Pública.

A cláusula quinta do Convênio ICM 24/75 determina que a transação não poderá resultar em dispensa do tributo devido. Então o Fisco tem como campo aberto à transação os valores relativos à multa, juros e correção monetária. No tocante ao tributo, a transação deverá ficar restrita ao que for incerto. É o caso, por exemplo, da base de cálculo arbitrada pela autoridade fazendária, nos termos do art. 148 do CTN.

O termo de transação, subscrito pelo Fisco e pelo sujeito passivo, poderá ainda definir o prazo de recolhimento do tributo ou conceder parcelamento. Porém, no caso de inadimplência do sujeito passivo o crédito tributário deve ser executado imediatamente.

A validade da transação pode, por outro lado, ser condicionada à homologação pelo Secretário da Fazenda, pelo Procurador Fiscal ou pelo Presidente do tribunal administrativo.

Outra possibilidade é adotar efetivamente a arbitragem, caso em que a lei deve definir os critérios de escolha dos árbitros. O termo de arbitragem, nesse caso, deve ter o mesmo efeito da decisão definitiva do tribunal administrativo.

Desse modo, o contencioso administrativo pode ser aliviado dos processos de pequeno valor, podendo, então, se concentrar nos processos realmente significativos. 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O regulamento e suas limitações

Velocino Pacheco Filho

O Fisco, em suas autuações, costuma fundamentar seu procedimento em dispositivos do regulamento do imposto, raramente mencionando dispositivos de lei. Isto nos leva a indagar qual a função do regulamento e quais suas relações com a lei que regulamenta. 

Devemos ter em mente que o regulamento é baixado apenas pelo Executivo, sem intervenção do Legislativo. Isto quer dizer que falta ao regulamento o consentimento do povo, através de seus representantes eleitos, legítimo detentor da soberania.  Falta ao regulamento, portanto, aquele aspecto que caracteriza a democracia representativa e a diferencia dos regimes despóticos.

Assim, dispõe o art. 71, III, da Constituição do Estado de Santa Catarina, que é atribuição privativa do Governador do Estado, expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis. Disposição análoga encontra-se no art. 84, IV, da Constituição Federal. Note-se que ambas as constituições distinguem entre “decreto” e “regulamento”, isto por que nem todos os decretos regulamentam as leis, mas apenas aprovam regulamentos como peças normativas separadas. Em qualquer caso, decretos e regulamentos não inovam a ordem jurídica, mas tratam de normas instrumentais para o fiel cumprimento das leis. Isto quer dizer que as disposições regulamentares devem ter fundamento em disposições de lei. Em matéria tributária, tratam principalmente de obrigações acessórias. 

Há matérias que somente podem ser tratadas por lei. O art. 97 do Código Tributário Nacional refere-se expressamente à instituição ou extinção de tributos, à sua majoração ou redução, à definição da obrigação tributária principal, às alíquotas, à base de cálculo, à cominação de penalidades, e à exclusão, suspensão e extinção do crédito tributário. Essas matérias somente podem ser tratadas por lei (reserva absoluta), não podendo ser delegadas ao Executivo (seja a decreto ou a lei delegada).

No entanto, a desobediência a tais preceitos são frequentes e notórias. Vejamos um exemplo tirado da legislação tributária de nosso Estado. 

O art. 2º do Anexo 5 do Regulamento do ICMS/SC dispõe que as  pessoas físicas ou jurídicas que promoverem operações relativas à circulação de mercadorias ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação estão obrigadas a inscrever no cadastro de contribuintes do ICMS todos os seus estabelecimentos localizados no Estado, antes de iniciar suas atividades. 

Porém, o § 10 do mesmo artigo permite que a inscrição possa ser concedida a estabelecimento de pessoa física ou jurídica que não se enquadre nas disposições do caput do artigo, em situações excepcionais, definidas em ato do Diretor de Administração Tributária. Até aqui, o RICMS/SC se manteve nos limites de sua esfera de competência, tratando apenas de obrigações acessórias. O que pode ser questionada é a sensatez do dispositivo que permite a concessão de inscrição cadastral a não-contribuintes e, pior ainda, como poder discricionário do Diretor de Administração Tributária. O que justifica a exceção? Porque deixa-la ao inteiro alvedrio do Diretor, sem qualquer definição das hipóteses em que poderia ser concedida? No que a quebra do princípio da isonomia atende ao interesse público?

Mas, o que nos interessa é o § 4º do art. 1º do referido Anexo 5: “Uma vez cadastrado, o contribuinte estará sujeito ao recolhimento da diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual, ainda que as aquisições sejam relacionadas a atividade não sujeita ao ICMS, salvo nos casos previstos na legislação”. 

Opa! Agora estamos entrando em matéria reservada à lei. Na verdade, essa matéria está tratada na Constituição Federal, a qual não pode receber tratamento diverso nem por lei, menos ainda pelo regulamento. 

Com efeito, dispõe o art. 155, § 2º, VII e VIII, da Lei Suprema, que nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, será adotada alíquota interestadual quando o destinatário for contribuinte do imposto. Mas, se o destinatário não for contribuinte, deverá ser utilizada a alíquota interna do Estado de origem. Ou seja, a receita tributária somente será repartida entre Estado de origem e Estado de destino se o destinatário for contribuinte do imposto. 

O inciso VIII esclarece que no caso da mercadoria se destinar ao consumo do destinatário (contribuinte), o imposto correspondente à diferença entre a aplicação da alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual cabe ao Estado de destino. Então, o Estado de destino somente poderá cobrar o imposto correspondente à diferença de alíquotas se o destinatário for contribuinte e a mercadoria não se destinar à revenda, mas ao consumo do destinatário. Essa regra, que tem seu assento na Constituição, não pode ser simplisticamente substituída por outra que vincula a exigência do tributo pelo Estado de destino à inscrição do destinatário no cadastro de contribuintes do ICMS. Sobretudo quando a legislação estadual permite a inscrição de não-contribuintes. Trata-se de subordinar o principal ao acessório. 
Se o destinatário da mercadoria não for contribuinte do imposto não há que se falar em recolhimento do imposto correspondente à diferença entre as alíquotas, esteja inscrito ou não como contribuinte do ICMS.

O problema foi minorado, ao menos no que se refere ao comércio eletrônico, com a recente aprovação da Emenda Constitucional nº 87. A única forma possível de alterar a Constituição é pela via da emenda constitucional (ressalvadas as clausulas pétreas). A tentativa de modificação da Constituição pela celebração do Protocolo ICMS 21/2011 foi fulminada pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 4.628 DF. Se convênios e protocolos, aprovados pelo Confaz, não podem modificar normas constitucionais, porque o regulamento do imposto o seria?

quarta-feira, 15 de abril de 2015

O que é “benefício fiscal”?

Velocino Pacheco Filho

Cada área do conhecimento desenvolve a sua própria linguagem, às vezes emprestando sentido mais específico a palavras e expressões da linguagem geral. O direito tributário não é exceção. A necessidade de maior precisão na formulação de conceitos força o desenvolvimento de um linguajar próprio que não é o resultado de mero pedantismo ou do desejo de “falar difícil”.

Vejamos o caso da expressão “benefício fiscal”. À evidência, todo tratamento tributário que beneficie alguém, ainda que seja a totalidade dos contribuintes, pode ser qualificado como benefício. Mas quando se fala em “benefício fiscal” em linguagem técnica e não na linguagem vulgar, se está a referir a algo mais específico. 

O princípio da isonomia (todos são iguais perante a lei) que, no caso do direito tributário, traduz-se em uma vedação ao tratamento tributário diferenciado a contribuintes que se encontram em situação equivalente, resulta no reconhecimento de que todos devem contribuir para o custeio do Estado, na medida da sua capacidade contributiva.

O “benefício fiscal” define-se como um regime de tributação que resulte em uma vantagem para o beneficiado ou um desagravamento perante o regime normal. Nesse sentido, a Constituição Federal dispõe no art. 150, § 2º, XII, g, que compete à lei complementar “regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”. A Lei Complementar 24/1975, art. 2º, § 2º, por sua vez, dispõe que “a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados”. 

Todas essas medidas adotadas pelo legislador revelam o cuidado na concessão de tratamento que não é dispensado à totalidade dos contribuintes, mas apenas a alguns. Por isso mesmo, essa diferença de tratamento deve ser justificada com base na capacidade contributiva de cada um ou, no caso de extrafiscalidade, de outro princípio ou valor constitucional (erradicação da pobreza, redução das desigualdades, desenvolvimento nacional, dignidade da pessoa humana etc.). Com efeito, benefícios fiscais são medidas de caráter excepcional instituídas para a proteção de interesses públicos que são de relevância maior que a própria tributação cuja incidência afastam.

Os benefícios fiscais são, portanto, privilégios, porém justificados pelos valores e princípios explícita ou implicitamente albergados pela Constituição. Nisso se diferenciam os benefícios fiscais dos privilégios odiosos que atendem apenas aos interesses particulares dos respectivos beneficiários. Isto não quer dizer que todos os benefícios fiscais previstos na legislação o sejam verdadeiramente. Alguns benefícios são de fato privilégios odiosos, travestidos em benefícios fiscais como lobos em pele de cordeiro. 

Os benefícios fiscais ou privilégios não-odiosos são legitimados por considerações de justiça, como exceções à regra geral que obriga a todos contribuir para o financiamento do setor público na medida da capacidade contributiva de cada um.

O tratamento tributário, embora mais benéfico, quando concedido a todos e não se dirija especificamente a um segmento de contribuintes, não se caracteriza como benefício fiscal. É o caso das imunidades que são restrições constitucionais à competência para instituir tributos. Se o art. 150, VI, b, veda a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto seu objetivo é valorizar a liberdade de culto, dirigindo-se a qualquer culto religioso, desde a macumba até o budismo, sem distinção. As imunidades não são benefícios fiscais.

O que dizer da adoção do regime de créditos financeiros – trata-se de benefício fiscal?  Sem dúvida, a ampliação do universo dos créditos apropriáveis (compensando o imposto a recolher) beneficia os contribuintes. Mas não são benefícios fiscais em sentido técnico. O seu uso em um texto jurídico representa uma escolha imprópria e irrefletida de palavras.

No caso do ICMS, dispõe o art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal que o imposto será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. A não-cumulatividade é restrita às operações de comércio ou abrange também a saída das indústrias? No caso das indústrias, temos de considerar como crédito também o ICMS que onerou os insumos utilizados para a produção das mercadorias. E quanto aos bens do ativo imobilizado que não se consomem nem são incorporados ao novo produto, mas representam custo de produção?

Dispõe o inciso XII, c, do mesmo parágrafo que cabe à lei complementar “disciplinar o regime de compensação do imposto”. A lei complementar é que vai definir se o regime é de créditos físicos ou financeiros. Ora, o art. 20 da Lei Complementar 87/1996 assegura ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada a seu uso ou consumo ou ao ativo permanente. Ficou consagrado assim, no direito tributário brasileiro, o regime de créditos financeiros, embora alguns itens (bens de uso e consumo do estabelecimento) tenham suspensa a sua entrada em vigor.

Não se trata de regra de exceção ou privilégio de alguns. Pelo contrário, aplica-se a todos os contribuintes do imposto. Não é benefício fiscal, mas apenas a “regra do jogo”. 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

ICMS ou ISS? Critérios de demarcação

Velocino Pacheco Filho

Aos Estados a Constituição da República deferiu a competência para instituir imposto (ICMS) sobre (a) operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a (b) prestação de serviço de transporte (exceto o realizado dentro do território do mesmo Município) e de comunicação, nos termos do art. 155, II.

Os Municípios, por sua vez, são competentes para instituir imposto (ISS) sobre serviços de qualquer natureza, desde que (a) não estejam compreendidos na competência tributária dos Estados e (b) estejam definidos em lei complementar, conforme art. 156, III da Lei Maior. Os serviços de competência dos Estados são apenas os de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

Mas, qual deverá ser o tratamento da prestação de serviços que envolva fornecimento de mercadorias (ou, inversamente, o fornecimento de mercadorias que envolva prestação de serviços)? Dispõe a Lei Complementar 87/1996, art. 2º, IV, que incide o imposto estadual sobre “o fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios”. Nesse caso, a base de cálculo do ICMS é o valor da operação (LC 87/1996, art. 12, VIII, a, c/c art. 13, IV, a).

Por outro lado, a Lei Complementar 116/2003, art. 1º, § 2º, dispõe que, ressalvadas as exceções expressas na própria Lista, os serviços mencionados na Lista de Serviços (anexa à mesma lei complementar) não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que sua prestação envolva o fornecimento de mercadorias. Conforme art. 7º da mesma Lei Complementar, a base de cálculo do ISS é o preço do serviço.

Porém, a própria Lista de Serviços pode ressalvar a incidência do ICMS sobre as mercadorias fornecidas juntamente com a prestação do serviço. Nesse caso, a base de cálculo do ICMS é o preço corrente da mercadoria fornecida ou empregada (LC 87/96, art. 12, VIII, b, c/c art. 13, IV, b).

Em síntese, no caso de prestação de serviço com fornecimento de mercadoria, podemos definir os seguinte critérios de demarcação da respectiva incidência dos dois impostos:

(a) o serviço prestado consta da Lista de Serviços: incide apenas o ISS;

(b) o serviço prestado não consta da Lista de Serviço: incide apenas o ICMS;

(c) o serviço prestado consta da Lista de Serviço que, entretanto, faz ressalva da incidência do ICMS sobre a mercadoria fornecida ou empregada na prestação: incidem ambos os impostos.

Contudo, se o produto resultante destinar-se à revenda ou à agregação a produto destinado à revenda, fica descaracterizada a prestação de serviço, passando a incidir o ICMS estadual. Recente precedente do Supremo Tribunal Federal (Medida Cautelar na ação Direta de Inconstitucionalidade 4.389 DF, relator Min. Joaquim Barbosa – RDDT 191, 2011, pp. 488-505) decidiu que “o ISS não incide sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subseqüente de industrialização ou de circulação de mercadoria. Presentes os requisitos constitucionais e legais, incidirá o ICMS”.

O critério de demarcação adotado pelo legislador é objetivo e, aparentemente, de fácil aplicação. Mesmo assim, tem havido controvérsias.

Seja, por exemplo, o caso de uma empresa que fornece a seus clientes, fotos pessoais ou imagem disponível na página da empresa, impressas em tecido tipo tela ou papel fotográfico, de acordo com o pedido do cliente, devidamente esticada e fixada com grampos de metal sobre a madeira ou, no caso de quadro emoldurado, é utilizada, como suporte da imagem, uma placa de espuma sintética laminada com papel em ambos os lados. Finalmente, vidro e moldura são integrados ao produto, que é acondicionado em embalagem para remessa ao encomendante.

A Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 prevê a incidência do ISS sobre:

13.04 – Reprografia, microfilmagem e digitalização.

14.07 – Colocação de molduras e congêneres.

A Lista de Serviços não ressalva a incidência do ICMS sobre os materiais utilizados na prestação de serviços. Incide, portanto, exclusivamente o ISS, de competência dos Municípios. 

No entanto, o Estado tem exigido ICMS sob o argumento de que o “interesse do cliente é a compra do objeto decorativo, e não a contratação de qualquer tipo de serviço nos termos admitidos anteriormente, de modo que a obrigação de fazer é meramente acessória à obrigação de dar”. Ou seja, o entendimento do Fisco estadual é que “o objeto da operação é a fabricação de artefato decorativo, conforme modelo e formato definidos pelo comprador (mercadorias sob encomenda, portanto)”.

Aplicando ao caso os critérios de demarcação eleitos pelo legislador, temos:

(a) Os serviços de reprodução de imagem e de colocação de moldura constam da Lista de Serviço? Sim.

(b) A Lista de Serviços excepciona os materiais fornecidos ou empregados na prestação do serviço? Não.

(c) Finalmente, as reproduções, devidamente emolduradas, se destinam à revenda? Não, se destinam ao uso do encomendante.

Logo, trata-se de prestação de serviços, tributada pelo ISS, afastada a incidência do ICMS.

Não compete ao Fisco afastar os critérios objetivos de demarcação, adotados pelo legislador, substituindo-os por outros, de caráter subjetivo, conforme sua própria concepção do fato gerador do tributo. Estamos diante do que K. Engish refere-se como contradições valorativas não imanentes, ou seja, valorações do intérprete e aplicador do direito que não se harmonizam com as valorações do legislador. Trata-se, nesse caso, de valorações trazidas de fora do sistema e, portanto, em conflito com a lei.

O mesmo se dá com a confecção de carimbos, confeccionado de acordo com especificações do próprio encomendante, para seu uso. Incide apenas o ISS porque está expressamente previsto na Lista de Serviços:

24.01 – Serviços de chaveiros, confecção de carimbos, placas, sinalização visual, banners, adesivos e congêneres.

O argumento de se tratar de mercadoria fabricada por encomenda e, portanto, sujeita à incidência do ICMS, estaria correta se não estivesse prevista na Lista de Serviço, a teor do disposto no art. 2º, IV, da Lei Complementar 87/1996: “O imposto incide sobre o fornecimento de mercadorias com prestação de serviço não compreendido na competência tributária dos Municípios”. Mas, como o serviço está previsto na Lista, incide o ISS e não o ICMS.