DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Substituição tributária e livre concorrência

Velocino Pacheco Filho

Os Estados justificam a adoção do regime de substituição tributária “para frente” – regime em que o ICMS devido pelo varejista é recolhido antecipadamente pelo industrial, pelo importador ou pelo atacadista, na qualidade de contribuinte substituto – argumentando que contribui (i) para o incremento da arrecadação, (ii) pela garantia da concorrência leal e (iii) pelo desestímulo à evasão tributária.

Com efeito, a substituição tributária permite um melhor uso dos meios, materiais e humanos, à disposição do Fisco: os trabalhos de fiscalização concentram-se em poucas empresas (indústrias, importadores e atacadistas), no lugar de dispersar os esforços com grande número de empresas varejistas.

No tocante à proteção à concorrência, argumenta-se que quando o imposto é retido por antecipação, não importa se será revendido, no decurso da cadeia de circulação da mercadoria, por uma empresa “séria” ou por um sonegador contumaz, já que a retenção será igual para ambos. Caso não houvesse a retenção antecipada do imposto, o caminho estaria aberto para o subfaturamento e a evasão tributária, mediante ocultação da ocorrência do fato gerador. A incorporação prévia do lucro à base de cálculo teria o efeito de garantir que o produto chegue ao varejo pelo mesmo preço, independentemente de quem seja o revendedor. 

Ora, a livre concorrência consta entre os princípios informadores da ordem econômica, relacionados no art. 170 da Constituição da República, juntamente com a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e a busca do pleno emprego. Ou seja, o constituinte optou por uma economia de mercado, onde os preços são determinados pelo equilíbrio entre oferta e demanda, indicando o que, quanto, como e para quem produzir. 

Sucede que uma economia de mercado requer uma tributação neutra sobre o consumo e que não influencie nas decisões dos agentes econômicos. Contudo, tributação neutra não significa simples não-intervenção do Estado na economia, como queria o antigo paradigma liberal. Estamos falando em neutralidade na tributação sobre o consumo e não em relação ao sistema econômico em geral, em setores onde pode ser exercida a função indutora da tributação. Mesmo em relação ao mercado, deve ser mantido um equilíbrio entre os demais valores prestigiados pelo constituinte, como o tratamento favorecido à microempresa, a busca do pleno emprego, a proteção ao meio-ambiente etc.

Um motivo para a intervenção do Estado na economia é justamente a proteção da livre concorrência, conforme dispõe o § 4º do art. 173 da Constituição: “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Em suma, espera-se que o Estado aja com imparcialidade, sem criar condições desiguais de concorrência para os agentes econômicos.

Então se fala em neutralidade tributária no sentido de não interferência do tributo nas relações de mercado, tornando determinada operação mais vantajosa para um ou mais desvantajosa para outro. Neutralidade tributária significa que as decisões dos agentes econômicos (o que e quanto ofertar no mercado) dependam de fatores econômicos (demanda e oferta) e não da incidência de tributos.

Entretanto, os Fiscos dos Estados, na sua justificação do regime de substituição tributária não considera a hipótese de que o oferecimento do produto a preço menor não é necessariamente decorrente de fraude e sonegação, mas de maior competência  concorrencial. A substituição tributária pode apenas estar encobrindo a ineficiência das empresas interessadas, na medida em que o Poder Público garante a margem de lucratividade. Porque ser eficiente se o Poder Público as protege contra as incertezas da concorrência? Tudo sugere um acordo entre algumas empresas e o Poder Público. A substituição tributária se prestaria ao papel de barreira contra a entrada de novas empresas no mercado. Isto explicaria, por exemplo, a seleção arbitrária e sem critérios das mercadorias sujeitas ao regime. 

A substituição tributária constitui uma exceção à regra da não-cumulatividade, já que todo o tributo é exigido em uma única fase do ciclo de comercialização. Na substituição tributária “para frente” o tributo que seria devido na última operação do ciclo de comercialização (do varejista para o consumidor final) é exigido antecipadamente de quem inaugura o ciclo – o produtor, o importador ou o atacadista. Nesse caso, o imposto exigido do substituto é calculado sobre base de cálculo arbitrada, com afastamento da base de cálculo real correspondente à operação presumida que deverá ser realizada pelo substituído. Naturalmente, ela representa o abandono de qualquer tributação neutra sobre o consumo e, por conseguinte, de uma tributação compatível com o princípio da livre concorrência, já que a incidência do tributo passa a ser fator relevante nas decisões empresariais.

Quando duas empresas concorrem no mercado, deveria vencer a que fosse mais eficiente, colocando seu produto a preços mais baixos que o concorrente ou ofertando um produto de melhor qualidade. O tributo, no caso, iria integrar a estrutura de custos. O empresário mais eficiente, que conseguisse reduzir os seus custos e oferecer seus produtos a preços mais competitivos, espera-se, iria conseguir uma fatia de mercado maior que o de seu concorrente.

Contudo, com regime de substituição tributária “para frente” será cobrado o tributo sobre um preço estimado que não leva em conta a eficiência do empresário. É como se para o Fisco, não interessasse o empresário ser mais eficiente, oferecendo seu produto a um preço menor. A base de cálculo do fato gerador presumido é a mesma.

Desse modo, o empresário mais eficiente, que tem condições de oferecer preços mais baixos ao mercado do que aqueles fixados por presunção do Fisco, estará sendo penalizado na medida em que irá repassar ao consumidor o mesmo valor do tributo que aqueles que praticarem preços iguais ou mesmo superiores ao que for arbitrado. Por conseguinte, a substituição tributária “para frente” constitui, na verdade, um obstáculo à livre concorrência.

Assim, pretender que a substituição tributária garante a concorrência é um completo equívoco. Pelo contrário, o regime, além de subverter a não cumulatividade, representa uma intervenção do Estado no sistema de preços. Constitui o que Karl Engish chama de contradição teleológica – i.e. uma legislação infraconstitucional que frustra a consecução de princípios insertos na Constituição, no caso a livre concorrência .

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Tributação e analogia

Velocino Pacheco Filho 

A analogia é técnica de integração da legislação tributária, prevista no art. 108, I, do CTN: “Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia”.

São duas as condições para o emprego da analogia: (i) a existência de lacuna, como uma incompletude insatisfatória do ordenamento jurídico e (ii) a existência de pelo menos um elemento de identidade entre o caso previsto e o não previsto. Segundo Limongi França (Hermenêutica Jurídica. 7ª e. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 45), “a identidade entre os dois casos deve atender ao elemento em vista do qual o legislador formulou a regra que disciplina o caso previsto, constituindo-lhe a ratio legis”. Carlos Maximiliano fala de uma semelhança essencial, “da qual dependem todas as conseqüências merecedoras de apreço na questão discutida”.

Por sua vez, a lacuna não se confunde com o silêncio eloquente da lei (o que a lei quis, disse, o que não quis, guardou silêncio).  A distinção, elucida Marco Aurélio Greco (Planejamento Tributário. 3ª ed. São Paulo Dialética, 2011, p. 176): 

a lacuna é a não previsão no sentido de falta de norma específica para a hipótese; o silêncio eloqüente é o não querer que esteja previsto, no sentido de existir uma norma que determina que o caso não está alcançado. Não é meramente o não prever; silêncio eloqüente é uma não previsão que corresponde a uma vontade que o caso não esteja alcançado.

No caso do direito tributário, uma terceira condição se impõe: conforme § 1º do art. 108 do CTN, “o emprego da analogia não poderá resultar em exigência de tributo não previsto em lei”. Sobre o tema, leciona Hugo de Brito Machado (Comentários ao Código Tributário Nacional, vol. II, São Paulo: Atlas, 2004, p. 225) que “a lei que define as hipóteses de incidência tributária não admite integração analógica”, porque seria incompatível com o princípio da legalidade. Ou seja, não se poderia cogitar de lacuna porque em face do princípio da legalidade tributária, não há tributo sem lei anterior que o institua.

Seria o caso do assim chamado “diferencial de alíquotas” nas operações interestaduais – a diferença entre a aplicação da alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual. A partir da Emenda Constitucional 87/2015 que alterou a redação do inciso VII do § 2º do art. 155 da Constituição da República, o ICMS resultante da diferença entre as alíquotas pertenceria ao Estado de destino.

Normalmente, o imposto devido é o resultado da aplicação da alíquota sobre a base de cálculo que, no caso do ICMS, é o valor da operação. Entretanto, no caso da importação de mercadoria do exterior, a mercadoria não vem onerada pelo ICMS, de modo que a simples aplicação da alíquota sobre o valor da operação representa que o imposto está sendo calculado “por fora”, ao contrário das operações no mercado interno. Isto significa que a mercadoria importada sofre tributação menor que a similar adquirida no mercado interno.

Em vista disso, a Emenda Constitucional 33/2001 acrescentou a alínea “i” ao inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição da República: “cabe à lei complementar fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”.

O dispositivo constitucionaliza o cálculo “por dentro” do ICMS e dispõe que o cálculo por dentro também será aplicado às importações. Isto por que, até então, o ICMS nas importações era calculado “por fora”. A inclusão é expressa para o ICMS relativo à importação e não a qualquer outro caso. Por outro lado, o dispositivo comete à lei complementar a fixação da base de cálculo, ou seja, o cálculo do imposto. 

Ora, a Lei Complementar 87/1996 define a base de cálculo na importação no art. 13, V. O § 1º, I, do mesmo artigo, com redação dada pela Lei Complementar 114/2002, dispõe que “integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo, o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”. A alteração introduzida pela Lei Complementar 114/2002 torna expressamente obrigatório o cálculo por dentro no caso de importação. 

Outras situações, entretanto, como é o caso do diferencial de alíquotas, continuou sendo calculado “por fora”, apesar de apresentar os mesmos efeitos. Poderia ser aplicada, por analogia, a mesma solução?

A situação é análoga ao da importação. A mercadoria é tributada no Estado de origem pela alíquota interestadual, o que significa que o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna no Estado de destino e a alíquota interestadual é calculada “por fora”. Como na importação, há vantagem em comprar de outro Estado.

A ratio legis, então, nos dois casos, é a mesma: o cálculo “por fora” não equaliza o ônus tributário, conforme a mercadoria seja adquirida internamente ou importada do exterior ou de outro Estado. Por não haver previsão expressa da legislação, a lacuna, como incompletude insatisfatória do ordenamento jurídico, está caracterizada.

Contudo, a adoção do cálculo “por dentro” representa uma inovação e um agravamento do ônus tributário. Até agora, o diferencial de alíquota tem sido calculado “por fora”. Nessas condições, a integração do direito tributário, pelo emprego da analogia, esbarra na vedação inserta no § 1º do art. 108 do CTN.

A adoção do “cálculo por dentro”, no caso do diferencial de alíquota, exige lei em sentido estrito. A própria Constituição da República dispõe que compete à lei complementar, em relação aos impostos que discrimina, a definição da respectiva base de cálculo. (CF, art. 146, III, “a”). Trata-se do princípio da reserva legal que, conforme magistério de Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª e. São Paulo: Atlas, 2003, p. 199), é de abrangência mais restrita que o princípio da legalidade: “Se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente alguns estão submetidos ao da reserva da lei. Este é, portanto, de menor abrangência, mas de maior densidade ou conteúdo, visto exigir tratamento de matéria exclusivamente pelo Legislativo, sem participação normativa do Executivo”.

O Estado de Minas Gerais editou a Lei 21.781/2015, tratando do diferencial de alíquota, seguido do Decreto 46.930/2015 que disciplinou o cálculo por dentro do imposto relativo à diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual.