DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A literalidade ingênua na aplicação do direito tributário

Velocino Pacheco Filho
Conforme dispõe o art. 155, I, da Constituição Federal de 1988, aos Estados foi atribuída competência para instituir imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos. A legislação estadual considera a instituição do usufruto, que é um direito real sobre a propriedade, como fato gerador distinto da transmissão da propriedade. 

Sucede que o art. 8°, II, da Lei 7.540/88, previa exoneração total (isenção) do tributo na instituição do usufruto. Posteriormente, o tributo passou a ser disciplinado pela Lei 13.136/04 que no § 2° do art. 7° passou a exigir o recolhimento de 50% do tributo na instituição do usufruto e os restantes 50% na sua extinção. 

O direito de propriedade compreende os direitos de usar, gozar, dispor e reaver a coisa de quem injustamente a detenha (Código Civil, art. 1.228). No caso de instituição de usufruto, o direito de propriedade se reparte, de modo que passa ao usufrutuário o direito “à posse, uso, administração e percepção dos frutos” (C.C., art. 1.394). O nu-proprietário detém a propriedade, mas despida de seus atributos (nua-propriedade). No momento em que cessa o usufruto, a propriedade reveste-se novamente de seus atributos voltando a ser plena.

No escólio de Marco Aurélio da Silva Viana, o usufruto assegura ao titular a utilização da coisa alheia diretamente, com oponibilidade erga omnes. Contudo, uma vez extinto o usufruto, recompõe o domínio no seu titular. Assim, quando as qualidades de usufrutuário e nu-proprietário são reunidas na mesma pessoa, têm-se a consolidação e, por conseguinte, a extinção do usufruto. Desse modo, se o usufrutuário adquire a propriedade, ou o nu-proprietário o usufruto, ela volta a ser plena.

Examinemos agora a hipótese de transmissão de um imóvel, com reserva de usufruto, sob a égide da Lei 7.540/88. Suponhamos ainda que o donatário não fez uso da isenção prevista no art. 8°, II, recolhendo na oportunidade a integralidade do imposto relativo à transmissão. Suponhamos ainda que a extinção do ônus real (e a conseqüente recomposição da propriedade) ocorreu sob o patrocínio da Lei 13.136/2004. Pergunta-se: podem as autoridades fazendárias exigir o recolhimento de mais 50% do imposto, com fundamento no § 2° do art. 7° da Lei 13.136/04?

Ora, a mudança de legislação não poderia resultar em gravame maior que o exigível na vigência de uma ou outra lei. Assim, se a instituição e a extinção do usufruto tivessem se dado na vigência da Lei 7.540/88, o tributo seria exigido apenas por ocasião da consolidação da propriedade e seria equivalente à aplicação da alíquota sobre a respectiva base de cálculo. Porém, no caso de ter sido pago por ocasião da sua instituição, descaberia a exigência do imposto por ocasião da extinção do usufruto, pois os direitos da Fazenda Pública já teriam sido satisfeitos. Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma, RE 83.855, DJU 1°/out/1976):

USUFRUTO DECORRENTE DE DOAÇÃO A TERCEIRO. COM A MORTE DA DONATARIA, EXTINGUE-SE O USUFRUTO E CONSOLIDA-SE A PROPRIEDADE NA PESSOA DO NU-PROPRIETARIO, NÃO SENDO DEVIDO O IMPOSTO DE TRANSMISSAO CAUSA MORTIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

O raciocínio permanece o mesmo: com a morte do usufrutuário, nos termos da lei civil, não se dá uma “transmissão do usufruto”, mas a extinção do direito real, recompondo-se a propriedade plena. A lei nova exige metade do imposto na instituição do usufruto e metade na sua extinção. Porém, se o contribuinte já recolheu a integralidade da exação, nos termos da lei antiga, o direito da Fazenda já foi satisfeito, nada mais podendo ser-lhe exigido. Conforme dispõe o art. 110 do CTN, a lei tributária não pode alterar o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados para definir ou limitar competências tributárias.

A exigência de recolhimento de mais 50% do imposto, por ocasião da extinção do direito real, corresponderia a um gravame tributário maior do que seria suportado na hipótese de tanto a transmissão da nua-propriedade como a sua recomposição ocorrerem na vigência da mesma lei. Tal exigência contraria o princípio da isonomia, insculpido no art. 150, II, da Constituição Federal, que proíbe instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Com efeito, a diferença de tratamento tributário não decorreria da situação do próprio sujeito passivo, mas apenas da circunstância de a instituição do usufruto (transmissão da nua-propriedade) ter ocorrido na vigência de uma lei e a sua extinção (consolidação da propriedade plena), na vigência de outra lei.

O entendimento de que seria devido o recolhimento de mais 50% do imposto na extinção do usufruto, nos exatos termos da lei nova, resulta, na melhor das hipóteses, de uma literalidade ingênua na interpretação da lei. Mas se não houve ingenuidade por parte do Fisco, mas fique demonstrado que houve má-fé, pode ficar caracterizada a imoralidade administrativa (CF, art. 37) ou mesmo o crime de excesso de exação (CP, art. 316, § 1º), consistindo na “exigência de tributo que o funcionário sabe ou deveria saber indevido”.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Como a substituição tributária modifica a norma de incidência?

Velocino Pacheco Filho
A importância crescente da substituição tributária na arrecadação do ICMS justifica uma incursão mais aprofundada em seus aspectos teóricos. Do ponto de vista formal, o que caracteriza a substituição tributária, relativamente à estrutura da norma de incidência tributária?
A norma de incidência tributária estabelece uma relação de dever ser entre o titular do direito subjetivo e a pessoa obrigada à sua satisfação (obrigação tributária). Contudo, o nascimento da obrigação depende da ocorrência, no mundo, de fato concreto que corresponda ao fato gerador hipoteticamente descrito no antecedente da norma. Eis que a norma de incidência tributária tem a estrutura de uma proposição deôntica condicionada.
As proposições condicionadas são do tipo [Se A, então B], em que A e B são proposições simples do tipo sujeito-cópula-predicado. A proposição A (antecedente ou descritor) contém a condição que, no caso da norma tributária, corresponde à descrição do fato gerador ou hipótese de incidência. Por sua vez a proposição B (consequente ou prescritor) contém a obrigação tributária. A ocorrência concreta do fato (condição) descrito no antecedente, resulta no surgimento da obrigação tributária prevista no consequente.
A doutrina identifica cinco aspectos (Ataliba) ou critérios (Barros Carvalho) na norma de incidência tributária: três no antecedente (material, especial e temporal) e dois no consequente (quantitativo, compreendendo alíquota e base de cálculo, e subjetivo – sujeitos ativo e passivo).  A norma de incidência do ICMS tem normalmente a seguinte configuração:
Se [X é A], então [X deve ser B]
Em que:
X é o contribuinte;
A é o fato gerador do imposto (realizar operações de circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual ou intermunicipal e de comunicação);
B é a obrigação tributária de recolher o imposto devido
A concretização da condição prevista no antecedente traz como consequência o nascimento da obrigação de recolher o imposto. A primeira proposição é simplesmente declaratória de um fato (realizar operação de circulação de mercadorias), mas a segunda estabelece uma obrigação, ou seja, um dever-ser indicado pela cópula deôntica “deve” ou “é obrigado a”. 
Note-se que o sujeito da proposição antecedente (quem pratica o fato eleito como fato gerador da obrigação tributária) é também o sujeito da proposição consequente (está obrigado ao pagamento do tributo). X é dito contribuinte porque “tem relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador” da obrigação tributária (CTN, art. 121, parágrafo único, I); X é o sujeito passivo direto.
Segundo Paulo de Barros Carvalho, o núcleo da hipótese de incidência (critério material) é composto (apenas) por um verbo e seu complemento, descrevendo abstratamente uma atuação estatal ou um fato do particular. Contudo, se há um verbo, necessariamente deve haver um sujeito da ação. Afinal, o antecedente assume a forma de uma proposição simples do tipo sujeito-cópula-predicado. Entretanto, esse autor ignora a existência do sujeito da proposição antecedente, o que não deve ter maior relevância, já que a proposição antecedente e a proposição consequente normalmente têm o mesmo sujeito.
Mas, a norma de incidência da substituição tributária difere justamente quanto ao sujeito passivo, apresentando a seguinte configuração:
Se [X é A], então [Y deve ser B]
Nesse caso, o sujeito em ambas as proposições já não é o mesmo. X é que tem relação direta e pessoal com o fato gerador (contribuinte), mas a obrigação de recolher o tributo não é de X mas de Y que é o sujeito passivo indireto ou substituto tributário. Conforme Sacha Calmon Navarro Coelho: “a pessoa designada na lei como realizadora da hipótese de incidência (fato gerador) é diversa da que, na consequência da norma, aparece como designada como sujeito passivo da obrigação”. Esse autor critica Paulo de Barros Carvalho por negar a presença de um aspecto pessoal no antecedente da norma. Com efeito, em termos lógicos, o antecedente (protase) é, por sua vez, uma proposição simples que deve ter necessariamente um sujeito ligado ao predicado pela cópula. 
Mas, adverte o mesmo autor, o terceiro que figura como sujeito no consequente (apódose) não paga dívida alheia: paga dívida própria. Apenas não realizou o fato gerador. A obrigação tributária, como relação jurídica, surge originalmente em relação ao substituto o que é diferente dela surgir em relação ao contribuinte e posteriormente transferir-se a terceiro, em virtude de evento subsequente. Assim, tanto o substituto como o contribuinte se caracterizariam como sujeitos passivos diretos da obrigação tributária.
A substituição tributária pode ser entendida como técnica de arrecadação, instituída no interesse da Fazenda Pública e para sua estrita conveniência. Contudo, o legislador não é livre para eleger como substituto quem melhor lhe convier, pois este deve estar “vinculado ao fato gerador da respectiva obrigação”, conforme dispõe o art. 128 do CTN. 
A exigência de vinculação visa colocar o substituto em posição de se ressarcir do tributo junto ao substituído. Assim, no caso de substituição por fatos geradores antecedentes ou concomitantes, a vinculação fica evidenciada pelo fato dos substitutos serem a própria fonte pagadora e, portanto, em condições de reter o tributo. No caso da substituição por fatos geradores futuros (“para frente”), o substituto escolhido situa-se no início do ciclo de comercialização, de modo a poder reter o imposto do substituído antecipadamente.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

ICMS: circulação jurídica vs. circulação econômica

Velocino Pacheco Filho

Afinal! Incide ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa ou não? A incidência está expressamente prevista no art. 12 da Lei Complementar 87/1996. Além disso, o § 4º do art. 13 da mesma Lei define a base de cálculo do imposto nessa mesma hipótese. Não podemos esquecer que a LC 87/96 dispõe sobre normas gerais do ICMS, usando da competência atribuída à União pelo art. 146, III, da Constituição.

No entanto, os tribunais superiores têm decidido que não há incidência do ICMS nas transferências. Embora sem declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais mencionados, no controle concentrado ou pelo rito previsto no art. 52, X, da Constituição, os tribunais têm negado a sua aplicação, nos casos que lhes foram submetidos.

A justificação dessas decisões tem por base a discussão do sentido da expressão “circulação” empregada pelo constituinte ao definir a materialidade da hipótese de incidência: trata-se de uma circulação jurídica ou de uma circulação econômica? Em outras palavras, para ficar caracterizado o fato gerador do imposto, é necessária a mudança de titularidade da mercadoria?

A jurisprudência dos tribunais adotou claramente a teoria da circulação jurídica. Por conseguinte, os dispositivos mencionados da LC 87/96 não poderiam ser aplicados, uma vez que a legislação infraconstitucional não pode ampliar a materialidade dos fatos tributáveis pelos Estados-membros, conforme competência tributária a eles atribuída pela Constituição.

Sobre esse ponto, cabem dois comentários: (i) os dispositivos em comento da LC 87/96 não foram excluídos do ordenamento jurídico, permanecendo em vigor em relação aos casos não apreciados pelos tribunais e (ii) a incompatibilidade dos dispositivos com a Constituição deve-se apenas à interpretação emprestada ao vocábulo “circulação”.

Com efeito, em oposição à circulação jurídica, parte da doutrina defende a teoria da circulação econômica que não considera a mudança da titularidade da mercadoria como condição necessária para caracterizar a ocorrência do fato gerador do imposto. Bastaria que a operação movimente a mercadoria, aproximando-a do consumidor, para ficar caracterizado o fato gerador do ICMS.

Mas, em termos práticos, qual a implicação de adotar a circulação jurídica ou a circulação econômica? A resposta é simples: conforme o conceito de circulação adotado, diferente será a transmissão do crédito do imposto.

Segundo art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal, o ICMS é imposto não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação ou prestação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Então o imposto cobrado em uma fase do ciclo de comercialização torna-se crédito para compensar o imposto devido na seguinte. O objetivo da regra da não-cumulatividade é transmitir o crédito até a última operação com o consumidor final, de modo que a totalidade do imposto cobrado seja ônus do consumidor e não do aparelho produtivo.

Ora, a teoria da circulação jurídica da mercadoria não reconhece a incidência do imposto no caso de mera transferência entre estabelecimentos pertencentes à mesma empresa. Por definição legal, a apuração do imposto (confronto entre débitos e créditos) se dá em cada estabelecimento. Para assegurar a transmissão do imposto, é preciso permitir a transferência do crédito de um estabelecimento para outro, independentemente da incidência do imposto, o que as legislações estaduais não contemplam. Na verdade, a própria LC 87/96 não prevê a hipótese. Mas, simplesmente não permitir que o crédito seja transmitido não é compatível com o princípio da não cumulatividade, principalmente porque a não tributação da transferência acarreta uma cumulatividade naquela fase da circulação, com maior ônus para o contribuinte.

Do ponto de vista da praticidade da tributação, a forma mais simples e menos burocrática de transmitir o crédito do imposto é tributando todas as operações. Ou seja, a não-cumulatividade (imposta pela Constituição) seria melhor atendida pela teoria da circulação econômica.

No caso das operações interestaduais, temos um problema adicional: a alteração da distribuição constitucional da receita tributária. Com efeito, a regra inserta no art. 155, § 2º, IV, VII e VIII, distribui a receita entre Estado de origem e Estado de destino. A adoção da teoria da circulação jurídica tem como consequência que toda a receita tributária ficaria com o Estado de destino, modificando a distribuição da receita tributária entre os Estados.

Em vista disso, alguns doutrinadores, embora defendendo a teoria da circulação jurídica, entendem que as transferências interestaduais (em que há mudança do sujeito ativo da relação jurídico-tributária) deveriam ser tributadas, justamente para preservar a repartição constitucional da receita tributária.

Nesse sentido, Cristian Ricardo Prado Moises, Procurador do Estado do Rio Grande do Sul, em artigo publicado no nº 230 da Revista Dialética de Direito Tributário, de novembro de 2014, defende a revisão dessa jurisprudência, para levar em conta a preservação do equilíbrio na distribuição da receita tributária entre os membros da Federação, invocando o princípio da unidade da Constituição, segundo o qual qualquer dispositivo da Carta deve ser interpretado “como integrante de uma totalidade harmônica”, qual seja, o sistema constitucional.

Nenhum dispositivo constitucional deve ser interpretado isoladamente, como suficiente em si mesmo. Desse modo, o sentido de “circulação”, como utilizado pelo constituinte no art. 155, § 2º, I, não poderia se restringir a apenas uma das suas possíveis significações, mas ser escolhida a significação que melhor atenda os diferentes valores e princípios acolhidos pela Lei Fundamental, entre elas a distribuição de receita tributária entre os membros da Federação. Esse é um argumento respeitável! Porém, devemos dele extrair todas as suas implicações.

A Constituição não é algo estático, pétreo, imutável. Pelo contrário, ela é dinâmica, adaptando-se às novas circunstâncias de uma sociedade em permanente mutação. É o que acontece com a distribuição da receita tributária entre os Estados. O Congresso Nacional recentemente tem discutido sobre a tributação do e-comércio, modalidade não presencial que teve enorme desenvolvimento desde a promulgação da Constituição, de modo a alterar substancialmente a repartição da receita tributária em favor dos Estados de origem. Essa discussão veio ressuscitar antigo pleito dos Estados de destino, onde a mercadoria seria efetivamente consumida.

Como consequência da regra da não-cumulatividade, o ônus tributário deve recair sobre o consumidor final. Pela teoria do princípio de destino, a receita tributária deve ser atribuída ao Estado de destino, para financiar os serviços públicos prestados aos seus residentes, ou seja, aos consumidores finais das mercadorias oneradas pelo ICMS.

Pois bem! A interpretação sistemática da Constituição impõe a escolha do melhor significado entre os significados possíveis, ou seja, aquele que melhor atenda aos princípios e valores contidos na Constituição.

Ora, entre os objetivos fundamentais enumerados no art. 3º da Constituição está o da construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Aprofundando o conceito, o inciso III desse artigo, fala do objetivo fundamental de redução das desigualdades sociais e regionais. Fácil perceber que o princípio de destino contribuiria significativamente para a realização desse objetivo fundamental. O consumidor final, residente no Estado de destino (mais pobre) seria beneficiado. Cabe comentar que o balanço do comércio interestadual tende a favorecer os Estados industrializados em detrimento dos Estados cuja economia depende majoritariamente de produtos primários (efeito da elasticidade-renda da mercadoria).

A propósito, Thomas Piketty, o conhecido economista francês que recusou receber a Legião de Honra (a mais alta honraria concedida pelo governo francês), tem feito relevantes contribuições ao estudo da desigualdade. Em sua alentada obra, “O Capitalismo no Século XXI”, demonstra a tendência do capitalismo a aumentar as diferenças de renda, produzindo efeitos deletérios sobre a economia e a sociedade, inclusive sobre a maneira como as pessoas veem a democracia. Nessa senda, sugere o uso deliberado da tributação como medida corretiva.


Diante dessas considerações, os tribunais superiores estariam assim tão errados ao adotar a teoria da circulação jurídica? Entre circulação jurídica e circulação econômica, qual atende melhor os objetivos fundamentais da República? Podemos simplesmente contrapor o federalismo aos objetivos fundamentais, ou, pelo contrário, devemos procurar desenvolver uma fórmula para compor os princípios constitucionais envolvidos?

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Responsabilidade do Estado por dano decorrente de resposta em consulta fiscal

Velocino Pacheco Filho
Qual a responsabilidade do Estado pelos danos causados ao contribuinte, devidos a resposta equivocada em consulta fiscal?

De modo geral, o Estado pode ser responsabilizado pelos danos patrimoniais ou morais que causar, caso em que será obrigado a pagar indenização para compensar os prejuízos causados. A indenização é devida tanto no caso do dano ser provocado por atos lícitos ou por atos ilícitos. Basta ficar comprovada relação de causa e efeito entre o procedimento do Estado e o dano. O dever de reparar o dano somente pode ser afastado em algumas hipóteses como no caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima.

A responsabilidade objetiva do Estado (independe da comprovação de dolo ou culpa) está prevista no § 6º do art. 37 da Constituição:

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

De modo geral, são pressupostos do dever de indenizar (i) ação ou omissão, (ii) culpa ou dolo do agente, (iii) relação de causalidade e (iv) dano. Mas, a responsabilidade do Estado por atos de seus agentes é de natureza objetiva, ou seja, prescinde de comprovação da culpa. 

Mas, se a responsabilidade do Estado é objetiva, bastando ficar comprovado o nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano, a responsabilidade do agente é subjetiva. Ou seja, para que o funcionário responsável pelo dano seja obrigado a restitui ao Estado os valores pagos ao prejudicado a título de indenização (direito de regresso), deve ficar comprovada a sua culpa, em qualquer de suas modalidades (negligência, imperícia ou imprudência).

A responsabilidade do Estado por dano causado ao contribuinte em razão de consulta foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 131.741 SP, Segunda Turma (DJ 24-5-1996, Ementa vol. 1829, pp. 243):

TRIBUTÁRIO. CONSULTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS CAUSADOS. Ocorrendo resposta à consulta feita pelo contribuinte e vindo a administração pública, via o Fisco, a evoluir, impõe-se-lhe a responsabilidade por danos provocados pela observância do primitivo enfoque.

Conforme justificação do voto do relator da matéria, Min. Marco Aurélio, não se concebe que a Administração Pública, na hipótese de equívoco – que afinal, para ela representou inegável vantagem – deixe de indenizar aquele que sofreu o correspondente prejuízo.

Assim, o Estado torna-se responsável pelos prejuízos causados ao consulente em razão de resposta equivocada ou ainda pela demora (omissão) em responder. Ficando demonstrado o nexo causal entre a resposta da Administração e o dano, a Administração fica obrigada a repará-lo, pagando a justa indenização.

Sobre a demora na resposta, a Emenda Constitucional 45/2004 acrescentou o inciso LXXVIII ao art. 5º da Constituição, do seguinte teor: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. 

A consulta fiscal é modalidade de processo administrativo não contencioso que, nos termos do art. 31, I, da Lei Complementar 313/2005, do Estado de Santa Catarina, devem ser respondidas no prazo máximo de noventa dias, prorrogável uma única vez, por igual período, fundamentadamente, sob pena de responsabilização funcional. 

O parágrafo único do mesmo artigo acrescenta que a Administração Fazendária é administrativa e civilmente responsável por dano que a sua conduta, de acordo com a resposta à consulta, imponha ao contribuinte.

O eventual dano causado ao contribuinte pela demora do Fisco em responder à consulta pode ensejar indenização. Caso fique caracterizado que o dano deveu-se à culpa do servidor, em qualquer de suas modalidades, cabe ação regressiva contra o servidor.

Na mesma situação, estaria a resposta insuficiente, baseada em análise superficial e apressada da matéria consultada, apenas para livrar-se da incumbência. Um exemplo típico desse comportamento é a recusa de receber a consulta como tal, alegando que a matéria está tratada de modo claro na lei, bastando ao consulente uma leitura atenta. 

Trata-se do conhecido e questionável brocardo in claris cessat interpretatio (quando a lei é clara não cabe interpretação). Mas, quando é que a lei é clara? Se a lei fosse auto-explicativa, de modo que a simples transcrição dos dispositivos legais resolvesse todas as dúvidas, não haveria necessidade de juízes. A hermenêutica seria uma ciência morta, pois qualquer beócio poderia aplicar a lei. Mas, a lei não pode ser aplicada mecanicamente: mesmo a lei aparentemente mais clara é plurívoca, albergando diversos sentidos possíveis. A tarefa do intérprete, pois, consiste na construção de significados, de acordo com o ordenamento jurídico e com as regras de hermenêutica.

A decisão jurídica não é fruto apenas da pura inferência lógica, mas da relação dialética do intérprete com o texto de lei, em busca da melhor interpretação para o caso concreto. Dizia Carlos Maximiliano que “obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação”.

Assevera o mesmo autor que a afirmativa de ser a lei clara já constitui um exercício de interpretação: “a verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a, pressupõe o uso preliminar da mesma. Para se concluir que não existe atrás de um texto claro uma intenção efetiva desnaturada por expressões impróprias, é necessário realizar prévio labor interpretativo”.

Com efeito, são raras as situações em que a consulta é absolutamente descabida e a dúvida ser dirimida com a simples leitura da legislação. Deve-se tomar como princípio a boa-fé do consulente. Somente em casos extremos, demasiado evidentes, a consulta pode ser recusada sob a alegação de clareza do texto legal. Isto porque o contribuinte tem o direito, constitucionalmente assegurado, de obter uma resposta do Fisco. A clareza da lei não se presume. 

Fruto ainda dessa pressa de responder, a justificação da resposta pode se mostrar contraditória, inconsistente, ou simplesmente incoerente em relação aos seus fundamentos, sem a necessária e madura reflexão.

A resposta pode ainda conter um elemento malicioso, qual seja, o interesse arrecadatório da Administração. Com esse objetivo, a interpretação pode ser forçada, às vezes de modo contrário a texto expresso de lei, para fazer incidir a regra de tributação, com resultados frequentemente ridículos.

Vejamos o caso da substituição tributária, instituto que atribui a terceiro vinculado ao fato gerador a responsabilidade pelo recolhimento do tributo, com afastamento da responsabilidade do contribuinte. Conforme art. 121 do CTN, o sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo, podendo ser (i) contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador ou (ii) responsável, quando sua obrigação decorra de disposição expressa de lei. Além disso, o art. 128 – apontado como fundamento da substituição tributária – dispõe que a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa. Por fim, o § 7º do art. 150 da Constituição, introduzido pela Emenda Constitucional 3/1993, para por fim à discussão sobre a constitucionalidade da substituição tributária “para frente” diz que “a lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento do imposto cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente”. Então, a substituição tributária deve estar expressamente prevista em lei e somente pode ser aplicada em seus estritos termos. Não se pode estabelecer substituição tributária por interpretação ou pelo uso de analogia ou qualquer outro motivo. A definição do sujeito passivo, inclusive por responsabilidade, é matéria reservada à lei que não pode ser modificada por decreto ou outro diploma de inferior hierarquia.
Temos, por exemplo, o caso do art. 227 do Anexo 3 do RICMS-SC que, com base nos Protocolos ICMS 196/2009 e 116/2012, submete ao regime de substituição tributária os materiais de construção, acabamento, bricolagem ou adorno, relacionados na Seção XLIX do Anexo 1. Não é permitido ao intérprete abstrair da finalidade para adotar como critério de enquadramento no regime apenas a descrição da mercadoria na legislação estadual e a respectiva classificação na NBM/SH. A inclusão no referido regime de mercadorias outras que não as destinadas à construção civil etc. corresponde a exigir tributo sem a devida autorização legal. A destinação da mercadoria, neste caso, é parte essencial da descrição feita pelo legislador da operação tributável cujo imposto deverá ser exigido do substituto.

O termo “bricolagem”, por sua vez, tem sido usado de modo abusivo, para exigir, por analogia, a antecipação do imposto sobre ampla variedade de mercadorias, desde fitas adesivas para confecção de embalagens até cravos para ferraduras. O conceito não pode ser tão aberto que abranja qualquer coisa, sob pena da sujeição passiva não ser mais determinada pela lei, mas pela fantasia do intérprete.

Outra situação emblemática refere-se ao conflito entre as esferas de incidência do ICMS e do ISS. O ICMS tem como fatos geradores as operações de circulação de mercadorias e a prestação de serviços de transporte (exceto os intramunicipais) e comunicação. O fato gerador do ISS, por sua vez, é a prestação de serviços, exceto os submetidos ao ICMS (transporte e comunicação), definidos em lei complementar (lista de serviços). A regra é que os serviços constantes da lista submetem-se apenas ao ISS, mesmo que a prestação do serviço inclua o fornecimento de mercadorias, salvo se a própria lista ressalvar a incidência do ICMS sobre as mercadorias fornecidas.

Nesse caso está a confecção de banners, prevista expressamente no item 24.01 da lista de serviços anexa à LC 116/2003, sem qualquer ressalva sobre a incidência do ICMS sobre os materiais empregados (redação vigente). No entanto, contrariando respostas anteriores, foi respondido que seria devido o ICMS sobre a confecção de banners. Porque? Por uma interpretação viciada que confunde fatos distintos, senão vejamos. O item 85 da lista de serviços anexa à Lei Complementar 56/1987 (texto revogado) dispunha sobre a tributação pelo ISS de “propaganda e publicidade, inclusive promoção de vendas, planejamento de campanhas ou sistemas de publicidade, elaboração de desenhos, textos e demais materiais publicitários (exceto sua impressão, reprodução ou fabricação)”. A mesma matéria está tratada no item 17.06 da lista anexa à Lei Complementar 116/2003, contudo sem qualquer ressalva sobre a incidência de ICMS. A resposta esdrúxula do Fisco resulta da confusão entre a redação do item 85 da lista anexa à Lei Complementar 56/1987, apesar de revogada, e a redação do item 24.1 da lista anexa à Lei Complementar 116/2003.

Ora, o Estado não pode pretender tributar os banners, porque (i) não existe ressalva na lista de serviços para incidir ICMS sobre os materiais fornecidos na prestação de serviços – a jurisprudência relativa ao período anterior à Lei Complementar 116/2003 não se aplica ao caso presente, (ii) a confecção de banners não guarda relação com prestação de propaganda e publicidade, envolvendo itens diferentes da lista de serviços, o 17.06 e o 24.01 e, finalmente (iii) o mesmo item 24.01 inclui serviço de chaveiro e confecção de carimbos. Ora ninguém pensaria em cobrar ICMS sobre serviço de chaveiro ou sobre confecção de carimbos, logo também não poderá cobrá-lo sobre confecção de banners, assumindo que os serviços enumerados no mesmo item da lista tenham o mesmo tratamento tributário. 

Como o serviço se restringe à confecção de banners, também não podemos falar em “comunicação” visual que, para sua caracterização, é preciso que a exposição ao público seja realizada pelo prestador do serviço e não pelo encomendante do banner.

Nesse caso, a resposta equivocada da Administração Tributária produz um duplo prejuízo: para o contribuinte, do qual é exigido um imposto que não deve, e para o Município, que deixa de receber o tributo que lhe é devido.

Concluindo, cabe indenização no caso da resposta à consulta resultar em prejuízo para o consulente. Se o dano for causado pelo servidor ou pelo órgão responsável por responder às consultas fiscais, agindo com negligência, imperícia ou imprudência, cabe ao Estado promover ação regressiva contra o servidor ou servidores integrantes do referido órgão. Se a responsabilidade do Estado é objetiva, a do servidor não é: deve ficar provado que o servidor, ao menos, agiu culposamente.