DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

O tratamento tributário da industrialização por encomenda

Velocino Pacheco Filho

Que tributo incide sobre a industrialização por encomenda: ICMS ou ISS? Essa tem sido uma discussão recorrente. O Superior Tribunal de Justiça, de modo um tanto simplista, vinha entendendo que incide apenas o ISS, sem levar em conta a inserção da industrialização por encomenda em um ciclo de comercialização. Levava-se em conta apenas a literalidade da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003.

O ponto focal da discussão era a tributação dos produtos da indústria gráfica, tais como rótulos e embalagens, quando agregados a produtos destinados à comercialização, incidindo então o ICMS.

Nova orientação, entretanto, foi dada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI/MC 4389 (2011), em que foi relator o Min. Joaquim Barbosa. O Tribunal, em uma interpretação conforme o art. 1º, caput e § 2º da LC 116/2003 e o subitem 13.05 da Lista de Serviços, decidiu que incidiria o ICMS e não o ISS sobre as referidas operações. Conforme o novo paradigma, o ISS não incide sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, quando destinadas à integração ou utilização direta em processo subsequente de industrialização ou de circulação de mercadorias.

Por conseguinte, a contrario sensu, quando o produto resultante da industrialização por encomenda não se destinar à integração ou utilização direta em processo subsequente de industrialização ou de circulação de mercadorias incide apenas o ISS, com exclusão do ICMS.

Com efeito, o fato gerador do ICMS é definido como “operação de circulação de mercadoria”. Assim, antes de mais nada, é preciso que se trate de mercadoria, assim entendido “o bem móvel adquirido para fins de revenda” ou a industrialização de produto que se destina à mercancia. A condição de mercadoria não é uma qualidade intrínseca ao bem, mas depende da intenção de quem o adquire. Um mesmo bem pode ser mercadoria em um momento e não sê-lo no momento seguinte: quando o bem é adquirido para uso próprio e não para revenda deixa de ser mercadoria.

Á evidência, a industrialização por encomenda somente será tributável pelo ICMS quando se destinar à comercialização ou à integração a processo industrial cujo produto será destinado à comercialização. Porém, se o produto resultante se destinar ao uso do encomendante, não incide ICMS pela simples razão do bem não adquirir a condição de mercadoria. Simples assim.

A jurisprudência do STJ, posterior à ADI/CM 4389 reflete a nova orientação. Assim, a Primeira Turma do Tribunal, no julgamento do AgRg no Ag 13.611.444 RS (DJe 17-12-2013), decidiu que “industrialização por encomenda caracteriza prestação de serviço sujeita à incidência do ISS, e não do ICMS”.

Também a Segunda Turma do STJ, nos EDcl no AgRg no AREsp 309854 ES (Dje 18-9-2013) firmou entendimento no mesmo sentido: “No julgamento da medida cautelar na ADI 4.389, ficou consignado que a incidência do ICMS só ocorrerá nos casos em que a produção de embalagem, etiquetas sob encomenda (personalizada) seja destinada à subsequente utilização em processo de industrialização ou posterior circulação de mercadoria”. Há, portanto, convergência de entendimento das duas turmas que formam a 1ª Seção do Tribunal.

Também da Segunda Turma, o AgRg no AREsp 207589 RS (DJe 14-11-2012) esclarece: “Trata-se de serviços personalizados feitos em conformidade com o interesse exclusivo do cliente, distintos dos serviços destinados ao público em geral. A industrialização por encomenda caracteriza prestação de serviço sujeita à incidência de ISS, e não de ICMS”.

Finalmente, nos EDcl no AgRg no AREsp 103409 RS (DJe 18-6-2012), o Tribunal decidiu que a incidência do ICMS só ocorrerá nos casos em que a produção de embalagens e etiquetas sob encomenda (personalizada) seja destinada a subsequente utilização em processo de industrialização ou posterior circulação de mercadorias. Quando a industrialização sob encomenda destina-se ao uso da própria empresa, esta atua como consumidora final. Portanto, se não irá fazer parte de futuro processo de industrialização ou comercialização, o imposto que incide é o ISS e não o ICMS.

É esse o caso da confecção de banners sob encomenda e para uso do encomendante, como analisado em artigo anterior. O encomendante, na hipótese, é consumidor final. Os banners não se caracterizam como mercadoria, já que não se destinam à comercialização, mas ao uso próprio do encomendante. Não sendo mercadoria, não ocorre o fato gerador do ICMS.

Também no caso analisado pela Copat/SC na resposta à Consulta 85/2012 não está  caracterizado o fato gerador do ICMS. A matéria consultada é a reprodução de imagem e colocação de moldura, conforme especificação do encomendante, para seu próprio uso. Entretanto, o referido órgão consultivo entendeu equivocadamente que incide o ICMS e não o ISS: referindo-se ao produto entregue ao encomendante como “objeto decorativo fabricado sob encomenda”, argumentou que o interesse manifesto do cliente seria a compra do objeto decorativo e não a contratação de serviço, cuja prestação não subsistiria sem o bem em si mesmo. “O objeto da operação é a fabricação de artefato decorativo, conforme modelo e formato definidos pelo comprador (mercadoria sob encomenda, portanto)”. O parecer perdeu-se na distinção entre bem material e bem imaterial, sem reparar que para a caracterização do fato gerador do ICMS deve haver uma operação de circulação de mercadorias, seja ela material ou imaterial (veja decisão do STF sobre software de prateleira). Ora, se o bem encomendado destinava-se ao uso do próprio encomendante e não à mercancia, não houve operação de circulação de mercadoria, pois ele sequer chegou a caracterizar-se como mercadoria.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Conflitos de competência: ICMS ou ISS?

Velocino Pacheco Filho

A Constituição Federal atribuiu aos Estados a competência para instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (CF, art. 155, II) e aos Municípios a de instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar (CF, art. 156, III).

Excetuados os serviços colocados na esfera de incidência do imposto estadual, o fato gerador do ICMS consiste em uma obrigação de dar (e.g. entregar a mercadoria vendida ao adquirente). Já o imposto municipal incide sobre obrigações de fazer (=prestar serviços). Existe, contudo, uma zona cinzenta em que as respectivas esferas de competência se confundem. Isto ocorre quando o fazer compreende o dar (e.g. confecção de cartões de visita) ou o dar compreende o fazer (e.g. entregar equipamento industrial instalado no estabelecimento do adquirente). A questão é estabelecer critérios que delimitem os respectivos campos de incidência do ICMS e do ISS.

Ora, dispor sobre conflitos de competência, conforme art. 146, I, da Constituição Federal, é atribuição do legislador complementar federal. Cuida-se, no caso, de competência privativa da União, como é a de legislar sobre as limitações constitucionais ao poder de tributar e sobre normas gerais de direito tributário. Nessa hipótese, não há que se falar em competência suplementar dos Estados, na forma do § 2º do art. 24 da Constituição.

Então, é na Lei Complementar 116/2003 que devemos pesquisar, em busca de regra que diga em que situações incide o ISS e não o ICMS. O § 2º do art. 1º do referido pergaminho dispõe que os serviços relacionados na lista de serviços estão sujeitos apenas ao ISS, salvo se a própria lista ressalvar a incidência do ICMS sobre o material empregado na prestação do serviço. Nesse caso – e apenas nesse caso – incidem ambos os impostos: o ICMS sobre o material empregado e o ISS sobre a prestação de serviço.

De modo semelhante, o art. 3º, V, da Lei Complementar 87/1996 (que trata do ICMS) dispõe que o imposto estadual não incide sobre “operações relativas a mercadorias que tenham sido ou se destinem a ser utilizadas na prestação, pelo próprio autor da saída, de serviço de qualquer natureza definido em lei complementar como sujeito ao imposto sobre serviços, de competência dos Municípios, ressalvadas as hipóteses previstas na mesma lei complementar”.

As matérias elencadas no art. 146 da Constituição da República estão reservadas privativamente ao legislador complementar federal o que significa que os Estados não podem dispor sobre elas de modo diverso, e menos ainda a Administração Tributária, mediante interpretação.

Tomemos, por exemplo, a tributação sobre a confecção de placas, banners, adesivos e congêneres, que se destinam à exposição ao público contendo mensagens publicitárias: qual tributo deve incidir – o ICMS de competência dos Estados ou o ISS de competência dos Municípios?

Em outras palavras, a confecção e entrega ao encomendante de placas, banners etc. caracteriza prestação de serviço de “comunicação visual” ou uma operação de circulação de mercadorias – hipóteses em que incide o ICMS – ou trata-se de prestação de serviço (encomenda para uso próprio), sujeita ao ISS?

Pois bem. Para ficar caracterizada a comunicação visual, o prestador de serviço não deve se limitar à confecção desses materiais, mas deve ainda providenciar, por sua conta, a exposição ao público da mensagem (em outdoor ou indoor). Sem isso, não há que se falar em comunicação (visual ou não). Para haver prestação de serviço de comunicação, antes de mais nada, deve haver efetivamente comunicação, ou seja: a transmissão de uma mensagem entre o emitente e o destinatário. Não constitui prestação de serviço de comunicação a mera confecção do material e sua entrega ao encomendante para que este o utilize como lhe aprouver.

A partir da entrada em vigor da Lei Complementar 116/2003, não incide o ICMS sobre a confecção de materiais publicitários (item 17.6 da Lista de Serviços), ou de carimbos, placas, sinalização visual, banners, adesivos e congêneres (item 24.01).

Observe-se que o tratamento de propaganda e publicidade na Lei Complementar 116/2003 difere do tratamento que era dado pela Lei Complementar 56/1987: esta última, no caso de propaganda e publicidade, excetuava da incidência do ISS a confecção de materiais publicitários que, então estavam sujeitos à incidência do ICMS. Já a lista anexa à LC 116/2003 não contém qualquer exceção.

Por outro lado, propaganda e publicidade, serviço previsto no item 17.6 da Lista de Serviços, não se confunde com a confecção de carimbos, placas, sinalização visual, banners, adesivos e congêneres, listados no item 24 da mesma lista. Ora, a legislação vigente é a Lei Complementar 116/2003 e sua lista de serviços. A lista anexa à Lei Complementar 56/1987 é legislação revogada que não deve produzir efeito sobre fatos novos.

Esse foi o entendimento originalmente adotado pela Secretaria da Fazenda de Santa Catarina, na resposta à Consulta Copat 36/2006. O mesmo entendimento foi adotado pelo Estado do Paraná (Consulta 39/2006) e pelo Estado de Minas Gerais (Consulta 251/2009), considerando as modificações introduzidas pela Lei Complementar 116/2003. O Estado de Minas Gerais chegou a editar a Instrução Normativa SUTRI 1/2005 que afirma expressamente no parágrafo único de seu art. 3º que não incide ICMS sobre a confecção de banners personalizados, encomendados pelo usuário final.

Contudo, a Secretaria da Fazenda de Santa Catarina modificou posteriormente o seu entendimento, para considerar tributada a confecção de banners, mediante ampliação abusiva do conceito de industrialização por encomenda.

A incidência do ISS nessa hipótese, entretanto, resulta de um raciocínio tão simples e claro como é o modo “bárbara” do silogismo da primeira figura:

Todo serviço relacionado na lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/2003, salvo a previsão na própria lista da incidência do ICMS sobre os materiais empregados na prestação do serviço, submete-se exclusivamente à incidência do ISS (cf. LC 116/2003, art. 1º, § 2º).

Ora, a confecção de banners (segundo modelo e especificações do encomendante, para seu próprio uso) está previsto no item 24 da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/2003, sem ressalva da incidência do ICMS sobre os materiais empregados.

Logo, a confecção de banners se sujeita exclusivamente à incidência do ISS.

Recapitulando, se o serviço está relacionado na lista de serviços, poderiam, no máximo, incidir ambos os impostos (desde que a própria lista ressalvasse a incidência do ICMS sobre os materiais empregados); jamais poderia incidir apenas o ICMS. A nova interpretação adotada pela SEF/SC representa invasão da competência tributária reservada aos Municípios pelo Constituinte. Pois, cabe exclusivamente à lei complementar – no caso a LC 116/2003 – por expressa disposição constitucional, dirimir conflitos de competência.

 Consequência não menos grave seria a constituição de crédito tributário, induzido erroneamente pela resposta à consulta, em claro conflito com a competência tributária dos Municípios.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Contribuintes e responsáveis: quem deve pagar o IPVA?

Velocino Pacheco Filho

O art. 3º da Lei 7.543/1988, que instituiu o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) em Santa Catarina, dispõe que o contribuinte do imposto é o proprietário do veículo automotor. Porém, a redação original do § 1º, III, do mesmo artigo, atribuía a responsabilidade pelo pagamento do imposto e dos acréscimos legais à empresa detentora da propriedade, no caso de veículo cedido pelo regime de arrendamento mercantil.

O dispositivo é redundante! Se o contribuinte do IPVA é o proprietário, é totalmente despiciendo atribuir-lhe também a responsabilidade pelo recolhimento. Essa responsabilidade é inerente à condição de contribuinte.

Na tentativa de corrigir a falha, a Lei 15.242/2010 modificou a redação do mencionado dispositivo, atribuindo a responsabilidade, nessa hipótese, ao arrendatário.

No entanto, de forma ilógica e simplória, decisões do Tribunal Administrativo Tributário (TAT) têm entendido que cancelado notificações fiscais emitidas contra o proprietário, para fatos geradores posteriores a 27 de julho de 2010, sob o pretexto de que deveriam ter sido emitidas contra o arrendatário.

Ora, a obrigação tributária, como relação intersubjetiva, envolve duas pessoas: o sujeito ativo (Estado), que tem o direito subjetivo de exigir a prestação (tributo), e o sujeito passivo obrigado ao adimplemento da obrigação. O art. 121 do Código Tributário Nacional (CTN) define sujeito passivo da obrigação principal como “a pessoa obrigada ao pagamento do tributo ou penalidade pecuniária”. O parágrafo único do mesmo artigo distingue duas espécies de sujeitos passivos: (i) o contribuinte, “quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador” e o (ii) responsável, “quando sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”.

Ou seja, responsabilidade tributária não se presume: a obrigação de pagar é, em princípio, sempre do contribuinte (sujeito passivo direto). Para obrigar um terceiro, é necessário disposição expressa de lei. Na falta de disposição expressa, nada pode ser exigido do terceiro.

O legislador pode escolher qualquer um como responsável tributário? Certamente que não. O art. 128 do mesmo pergaminho diz que “a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa”, mas desde que esteja vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação. Qual a natureza dessa “vinculação”? o responsável, como o contribuinte, deve estar vinculado ao fato gerador. Isto quer dizer que para que o legislador possa atribuir responsabilidade à terceira pessoa, esta deve estar em posição tal que possa recuperar, do contribuinte, o valor pago a título de tributo. Em outras palavras, o tributo deve atingir a capacidade contributiva do contribuinte (aquele que pratica o fato gerador) e não a do responsável.

Poderiam objetar que, no caso da responsabilidade dos oficiais de registro de imóveis, pelo imposto de transmissão, estes não são capazes de recuperar o tributo do verdadeiro contribuinte. Mas isso somente ocorre quando ele deixa de cumprir dever de ofício (exigir a comprovação do pagamento do imposto). O Erário não pode ser prejudicado pelo descuido do oficial responsável.

Além disso, o art. 128 prevê a responsabilidade (i) com exclusão da responsabilidade do contribuinte (caso da substituição tributária) ou (ii) com responsabilidade subsidiária do cumprimento total ou parcial da referida obrigação. A redação do art. 3º, § 1º, III, da Lei 7.543/1988 não esclarece esse ponto. Não há fundamento legal para afirmar que o tributo deve ser exigido apenas do arrendatário, com exclusão do arrendante que é o verdadeiro contribuinte do imposto.

Agora vejamos, qual o vínculo com o fato gerador da obrigação principal que permitiria ao arrendatário (responsável) recuperar o imposto pago do arrendante (contribuinte)? Ao que parece não há vínculo o que importa em dizer que o responsável iria arcar indevidamente com o ônus do tributo. Então, atribuir simplesmente a responsabilidade pelo pagamento ao arrendatário, com exclusão da responsabilidade do arrendante, não parece ser a interpretação correta.

Qual seria, então, o sentido que pode ser atribuído à redação dada pela Lei 15.242/2010 ao dispositivo enfocado? Podemos dizer que estamos diante de uma responsabilidade subsidiária, ou seja, de uma garantia do crédito tributário. Podemos, por outro lado, pensar em uma responsabilidade solidária: com efeito, diz o art. 124, I, do CTN, que “são solidariamente obrigadas as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”. Pois bem, o arrendante detém a propriedade (não plena) do veículo, porém, o arrendatário tem a posse direta, com opção de compra ao final do contrato. Podemos entender que a solidariedade resta caracterizada.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Isonomia vs. Isenção

Velocino Pacheco Filho

Dispõe o art. 5º, caput, da Constituição que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Por sua vez, o art. 150, II, da Lei Maior, proíbe a “instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”. Trata-se do já conhecido princípio da isonomia (ou da igualdade) que obedece à velha formula: “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”.

Essa igualdade é a igualdade formal, já que materialmente os homens não são iguais, mas diferem quanto à fortuna, inteligência, cultura, competência etc. Mas para o direito, nada disso importa: perante a lei, todos são iguais; todos tem os mesmos direitos. A aplicação do princípio exige a consideração das desigualdades (materiais) entre os seres humanos. Não se pode exigir a mesma capacidade de compreensão do analfabeto e do detentor de diploma universitário. A lei deve ser aplicada levando em conta as desigualdades, pois “tratar desigualmente os desiguais é criar uma desigualdade”. Assim, o princípio da igualdade deve ser aplicado levando em conta as desigualdades existentes.

Na seara tributária, a contribuição de cada um deve ser graduada conforme a capacidade contributiva de cada um, ou seja, na medida das suas desigualdades. Esse precisamente o critério que vem sendo adotado para identificar o ordenamento tributário justo. Klaus Tipke adota esse mesmo critério para aferir a moralidade da tributação.

Considerando o princípio da isonomia, como entender o tratamento tributário desuniforme? Se todos devem contribuir para o financiamento do Estado, como um dever inerente à cidadania, porque alguns gozam de tratamento tributário favorecido, não estendido aos demais contribuintes?

No magistério de José Souto Maior Borges (Isenções Tributárias), “podem ser estabelecidas em lei apenas isenções compatíveis com o sistema constitucional de tributação, isto é, não violatórias  do princípio da isonomia ou igualdade de todos perante o fisco”.

Todo tratamento tributário diferenciado – isenções, reduções de base de cálculo, créditos presumidos e quais quer outros benefícios fiscais – deve ser justificado, por constituir exceção ao princípio da igualdade na tributação.

O tratamento tributário mais favorecido pode ser devido (i) à aplicação pura e simples do princípio da isonomia que veda a instituição de tratamento diferenciado a contribuintes que se encontrem em situação equivalente – a contrario sensu, deve ser dado tratamento diferenciado a contribuintes que não se encontrem em situação equivalente; (ii) a considerações de extrafiscalidade, quando o legislador visa produzir efeitos nos campos sociais ou econômicos; e (iii) a um privilégio fiscal instituído em benefício de alguns (privilégio odioso).

O tributo tem características extrafiscais quando a receita tributária obtida não é o efeito mais importante visado pelo legislador. Todo tributo pode, em tese, ser utilizado de modo extrafiscal, mas alguns tributos foram considerados expressamente como extrafiscais pelo constituinte. É o caso dos impostos sobre o comércio exterior, do IPI e do IOF. Essa a razão porque a alteração de suas alíquotas não obedece ao princípio da legalidade nem ao da anterioridade, podendo ser cobrados no mesmo exercício em que publicada a lei que os aumentou.

Mas quais os critérios que nos permitem identificar a extrafiscalidade? Quando uma isenção ou outro benefício fiscal se caracteriza como extrafiscal ou como privilégio odioso?

A diretriz, vamos encontrar ainda em Souto Maior Borges (op. cit.): “O ordenamento tributário prescinde, nesses casos, dos seus fins estritamente fiscais para assegurar o bem-estar geral”. A isenção extrafiscal constitui efetivamente uma exceção à igualdade de todos perante o fisco. No entanto, essa exceção deve ser justificada em termos de bem comum e do interesse público. A extrafiscalidade somente é admissível se dela resultar um bem para a sociedade maior que os serviços públicos que deixarem de ser oferecidos à população, em razão da renúncia de receita que acompanha a isenção.

As isenções extrafiscais, portanto, constituem tema constante de reflexão sobre a realização de valores constitucionais como a igualdade entre os contribuintes. O que pensar sobre o tratamento tributário favorecido dado a uma empresa ou a um setor econômico? Valeria apenas o argumento de que estaria sendo promovido o aumento do emprego e da renda? Ora, nem sempre o crescimento de uma empresa é acompanhado do aumento do emprego. Ao se modernizar e adotar novas tecnologias (informática etc.), é frequente que as empresas demitam funcionários (redução do emprego). Da mesma forma, os ganhos de produtividade são apropriados, na sua maior parte, pela empresa e não são distribuídos aos seus empregados. O crescimento da empresa pode não significar, necessariamente, aumento do emprego ou da renda. Nesse caso, o único beneficiado é a empresa e seus sócios ou acionistas, o que vem a caracterizar o privilégio odioso.

Os benefícios fiscais devem ser melhor pensados, para não se tornarem instrumentos de concentração de renda, do privilégio dado a alguns, em prejuízo da maioria, da instauração da injustiça fiscal (se é que já não está instaurada).


terça-feira, 1 de julho de 2014

Fornecimento de mercadorias ao setor público

Velocino Pacheco Filho

Como sabido, os Estados não têm autonomia para conceder unilateralmente exoneração, total ou parcial, do ICMS. Com efeito, dispõe o art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal, que as isenções, incentivos e benefícios fiscais, em matéria de ICMS, devem ser concedidos e revogados mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, ou seja, mediante convênio celebrado na forma da Lei Complementar 24/1975.

Nesse sentido, o Convênio ICMS 26/2003 autoriza os Estados e o Distrito Federal a conceder isenção do ICMS nas operações ou prestações “internas” destinadas a órgãos da Administração Estadual Direta e suas Fundações e Autarquias. O § 1º da Cláusula Primeira esclarece que a isenção fica condicionada (i) ao desconto no preço, de valor equivalente ao imposto dispensado e (ii) à indicação, no respectivo documento fiscal, do valor do desconto.

O benefício foi incorporado à legislação catarinense no art. 1º, XI, do Anexo 2 do RICMS-SC, aprovado pelo Decreto 2.870/2001.

O § 5º, IV, a, do mesmo artigo, dispõe que o benefício não se aplica na hipótese de dispensa de licitação, nos termos do art. 24, II, da Lei Federal 8.666/1993.

De fato, o art. 37, XXI, da Constituição determina que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública “que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”. Leciona José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição), a licitação “constitui um princípio instrumental de realização dos princípios da moralidade administrativa e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes com o Poder Público”.

É exatamente no processo licitatório que o referido benefício cria um problema insolúvel para o administrador público. Como o benefício aplica-se apenas às operações internas, os concorrentes catarinenses contam com uma vantagem decisiva sobre os concorrentes de outros Estados: a dispensa do ICMS. Como as empresas catarinenses não sofrem o ônus do imposto, podem oferecer preços mais baixos que os fornecedores de outros Estados.

Nesse caso, não é assegurada a igualdade de condições a todos os participantes da licitação, como manda o art. 37, XXI, da Constituição, pois as empresas catarinenses contam com a dispensa do imposto, o que não sucede com os concorrentes de outros Estados. Além disso, o benefício opera contra a Federação, isentando do imposto apenas os concorrentes catarinenses, no que contraria o art. 152 da Constituição Federal que veda aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino.

Em consonância com o citado art. 152, o Tribunal de Contas do Estado determinou à Secretaria da Saúde (Decisão 388/2007) que procedesse à previsão no edital, da realização de equalização de propostas visando tratamento isonômico entre empresas sediadas em território catarinense e aquelas sediadas em território de outras unidades da Federação, quando o objeto da licitação for passível de benefício fiscal referente ao ICMS concedido pelo Estado de Santa Catarina etc. O Tribunal também determina à Secretaria da Administração que, nesse sentido, revise o modelo de redação dos editais a ser observado pelas unidades da administração estadual.

O que deveria ser um benefício tornou-se um problema! Como solucioná-lo? Podemos pensar nas seguintes alternativas:

1) fazer a licitação pelo valor líquido (sem o ICMS), o que se aproxima da recomendação do TCE, pagando a diferença relativa ao imposto, no caso de concorrente de outro Estado se revelar o vencedor – o que prejudica a transparência do certame, pois o preço vencedor pode não ser o mesmo que será desembolsado pelo Poder Público (diferença relativa ao imposto devido pelo fornecedor de outro Estado e dispensado no caso do fornecedor catarinense);

2) entender o benefício como facultativo – o que implica poder o órgão licitante renunciar a um benefício fiscal em que ele próprio seria o beneficiário o que contraria o interesse público;

3) denunciar o Convênio ICMS 26/2003, o que parece ser a solução mais sensata, tendo em vista que a incompatibilidade com o sub-ordenamento jurídico tributário nacional decorre dos termos do próprio convênio.

A solução ideal seria o benefício abranger as operações interestaduais o que, contudo, dependeria da concordância dos demais membros da Federação.