DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Redução da base de cálculo: um caso de isenção parcial.

Velocino Pacheco Filho
  
          O ICMS é um imposto plurifásico não-cumulativo, ou seja: (i) incide em todas as fases do ciclo de comercialização e (ii) o imposto devido em uma fase pode ser compensado com o imposto que onerou a(s) fase(s) anterior(es). Este é o chamado “crédito” fiscal do ICMS. Trata-se de um “crédito” especialmente vocacionado à liquidação do débito tributário.

          Ora, dispõe o art. 155, § 2º, II, “b” da Constituição Federal que “a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”. Se o “crédito” existe exclusivamente para compensar o imposto devido, então, se não houver imposto devido (por causa da isenção ou da não incidência), o “crédito” perde sua razão de existir, razão por que deve ser estornado.

          No mesmo sentido, o art. 23 da Lei 10.297/1996, de Santa Catarina, dispõe que “o crédito será apropriado proporcionalmente, nos casos em que a operação ou prestação subsequente for beneficiada por redução de base de cálculo”. Nesses casos, o tributo incide apenas parcialmente, considerando que a base de cálculo é a expressão financeira do fato gerador (a sua “perspectiva dimensível”, como dizia Geraldo Ataliba).

          Com efeito, ensina Souto Maior Borges que a s isenções podem ser totais e parciais. “As isenções totais excluem o nascimento da obrigação tributária, enquanto que, nas isenções parciais, surge o fato gerador da tributação, constituindo-se, portanto, a obrigação tributária, embora o ‘quantum’ do débito seja inferior ao que seria devido se não tivesse sido estabelecido preceito isentivo”.

          Esse entendimento mereceu acolhida junto ao Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 174.478, relator para o acórdão o Min. Cezar Paluzo, em 17 de março de 2005, que entendeu tratar-se de “favor fiscal que, mutilando o aspecto quantitativo da base de cálculo, corresponderia à figura da isenção parcial, sendo aplicável, dessa forma, o art. 155, § 2º, II, b, da CF/88, que determina a anulação do crédito relativo às operações anteriores de isenção ou não incidência nas subsequentes".

          Mais recentemente, a Segunda Turma do STF, no AgRg no RE 471.511, rel. Min. Joaquim Barbosa (RDDT 200, p. 209, 2012) reafirmou que:

          “1. Segundo orientação firmada pelo Supremo Tribunal Fedeal, as figuras da redução da base de cálculo e da isenção parcial se equiparam. Portanto, ausente autorização específica, pode a autoridade fiscal proibir o registro de crédito de ICMS proporcional ao valor exonerado (art. 155, § 2º, II, b, da Constituição”.

          Em sede de doutrina, leciona Paulo de Barros Carvalho (Teoria da Norma Tributária) que o legislador, na busca do dimensionamento do fato que irá desencadear o vínculo jurídico, constitui uma grandeza para medir a intensidade do comportamento do contribuinte e que, juntamente com a alíquota vai constituir o critério quantitativo da respectiva regra-matriz:

          “Por base de cálculo entendemos aquela grandeza instituída na consequência das endonormas tributárias e que se destina, primordialmente, a dimensionar a intensidade do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico e, como função paralela, confirmar o critério material da hipóteses endonormativa”.

          Assim, o legislador define “uma grandeza para medir a materialidade do evento e um fator que lhe será aplicado para a devida apuração do montante que satisfaz a pretensão do credor”. Essa grandeza permite que se possa saber “a intensidade do comportamento humano que a ela se relaciona”.

          Conforme o mesmo autor (Curso de Direito Tributário), as isenções estão contidas em regras de estrutura e não em regras de comportamento, eis que não estão voltadas para o comportamento das pessoas, nas suas relações de intersubjetividade, mas prescrevem o relacionamento que as normas de conduta devem manter entre si.

          Assim, “a regra de isenção investe contra um ou mais critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os parcialmente”, ou seja, subtraindo parcela do campo de abrangência do critério do antecedente ou do consequente. O fenômeno da incidência tributária resulta, pois, do encontro da regra-matriz de incidência tributária com a regra de isenção, “com seu caráter supressor da área de abrangência de qualquer dos critérios da hipótese ou da consequência da primeira (regra-matriz)”.

          Relembrando os conceitos, o antecedente da norma de incidência tributária (regra-matriz) contém a descrição do fato gerador (na acepção de hipótese de incidência) com seus três critérios (material, espacial e temporal). Já o consequente abriga a obrigação tributária, com seus critérios subjetivo (sujeitos ativo e passivo da obrigação) e quantitativo (base de cálculo e alíquota). A base de cálculo dimensiona a intensidade do fato tributável, enquanto a alíquota determina a intensidade com que a tributação incide sobre esse mesmo dimensionamento. A alíquota representa a parcela do fato gerador, em sua perspectiva dimensível, que constitui a incidência tributária.

          Porém, quando o legislador faz incidir a alíquota sobre apenas uma parte da base de cálculo, o tributo está atingindo apenas uma parte do dimensionamento do fato gerador. A regra-matriz está sendo mutilada apenas em parte do critério quantitativo, mais precisamente, atinge apenas parte da base de cálculo. Isso permite conceituar que a redução da base de cálculo do tributo implica dizer que a incidência do tributo é parcial ou, o que é equivalente, que a isenção é parcial.

          Redução de base de cálculo não se confunde com alíquota. A alíquota (que mede a intensidade com que a tributação atinge o fato gerador no seu aspecto dimensível) tem limitações, como, por exemplo, a prevista no art. 155, § 2º, VI, da CF: as alíquotas internas não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais, cuja competência, para fixar essas últimas é do Senado Federal.

                Assim, no caso de redução de base de cálculo, o crédito somente pode ser apropriado proporcionalmente, enquanto o mesmo não sucede tratando-se de alíquota.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

ICMS municipal e valor de transferência

Velocino Pacheco Filho

          Dispõe o art. 158, IV, da Constituição Federal que pertencem aos Municípios 25% do produto da arrecadação do ICMS. Acrescenta o parágrafo único do mesmo artigo que a participação de cada município será de, no mínimo ¾ (75%), na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços realizadas em seu território. Já a definição de valor adicionado, para essa finalidade, conforme art. 161, I, cabe a lei complementar.

          Conforme dispõe a Lei Complementar 63/1990, art. 3º, § 1º, o valor adicionado, para cada Município, é definido como a diferença entre o valor das mercadorias saídas de seu território, acrescido do valor das prestações de serviços, e o valor das mercadorias entradas, em cada ano civil.

          Por outro lado, a Lei Complementar 87/1996, arts. 12, I, e 13, I, considera a base de cálculo nas operações com mercadorias – saída da mercadoria de estabelecimento de contribuinte – o valor da operação. O valor da operação (de circulação de mercadoria) nada mais é que o preço da mercadoria, resultado de um acordo de vontades entre comprador e vendedor. Esse é o valor da mercadoria. No magistério de Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro), “a base de cálculo será o valor da operação pela qual a mercadoria saiu do estabelecimento do contribuinte de jure. Tal operação, na imensa maioria dos casos, é a compra e venda feita pelo produtor ou comerciante, ou pelas pessoas equiparadas a um ou ao outro. Excepcionalmente poderá ser outro negócio jurídico com valor definido e incontestável”.

          Mas, qual será o valor da operação no caso das transferências entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo titular? Nesse caso, não há um “preço” pactuado entre comprador e vendedor. O valor da mercadoria será atribuído pela empresa, apenas para contabilizar a transferência.

          Mas, como desse valor da mercadoria depende o cálculo do valor adicionado e, por conseguinte, a participação do Município na arrecadação do ICMS, sua fixação não pode ficar ao inteiro alvedrio do contribuinte. É necessário que o Estado imponha regras para evitar que algum Município seja prejudicado.

          A regra existente é a do art. 15 da Lei Complementar 87/1996, a qual dispõe que na falta do valor a que se refere o art. 13 (preço), a base de cálculo do imposto será:

          (i) o preço corrente da mercadoria no mercado atacadista do local da operação ou, na sua falta, no mercado atacadista regional, caso o remetente seja produtor, extrator ou gerador, inclusive de energia elétrica;

          (ii) o preço FOB estabelecimento industrial à vista, caso o remetente seja industrial;
         
          (iii) o preço FOB estabelecimento comercial à vista, na venda a outros comerciantes ou industriais, caso o remetente seja comerciante.

          Ou seja, o valor da mercadoria é o preço pelo qual foi comercializada, mas se este não existir, será adotado o preço de mercado – i.e. o preço pelo qual aquela mercadoria seria normalmente comercializada no mercado. Uma hipótese de falta de valor da operação é a transferência entre estabelecimentos de mesma titularidade. Podemos então dizer que, nas transferências, deverá ser adotado o preço de mercado, conforme art. 15 da LC 87/96.

          No entanto, quando a transferência for entre estabelecimentos localizados em Estados diferentes, dispõe o § 4º do art. 13 da Lei Complementar 87/96 que a base de cálculo do imposto é:

          (i) o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria;

          (ii) o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento;

          (iii) tratando-se de mercadorias não industrializadas, o seu preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente.

          Então, nas transferências interestaduais, como há regra própria, não se aplica a regra do art. 15. As mercadorias, nesse caso, devem ser transferidas pelo preço de custo (entrada mais recente, no caso de empresa mercantil, ou o custo de produção, no caso de empresa industrial). Tratando-se de regra da Lei Complementar 87/96, que trata de normas gerais em matéria de ICMS, o Estado não tem competência para legislar de modo contrário.

          Esse entendimento é também o defendido por Ives Gandra da Silva Martins e Fátima Fernandes Rodrigues de Souza em recente artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário:

              “Esse conceito ‘valor da operação’ não oferece dificuldades, quando a saída ocorre em decorrência de um negócio jurídico, de uma operação implicando a transferência jurídica da titularidade da mercadoria de um para outro sujeito, pois, nessas hipóteses, ela equivale ao preço, critério apto a mensurar o negócio jurídico celebrado, que representa o pressuposto de fato da incidência do ICMS, em toda a sua complexidade e dimensão econômica”.

          “Se, entretanto, a transferência se dá entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica situados em diferentes Estados da Federação, em que ocorre a incidência do imposto como forma de atribuir a cada um deles o montante do imposto gerado pela circulação ocorrida em seu território, inexiste o critério preço, a partir do qual normalmente se estrutura o valor da operação”.

          Nesse mesmo sentido, decidiu a Segunda Turma do STJ, no julgamento do REsp. 347,477 MG (DJ 28-3-2003, p. 255). Do voto da relatora, Min. Eliana Calmon, extraímos o seguinte trecho: “a transferência da mercadoria deu-se de um estabelecimento para outro, da mesma empresa, mas localizado em outro Estado da Federação, hipótese que tem regra própria específica, prevista no § 4º, III, do art. 13, da LC 87/96, para o qual o custo da mercadoria é a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento. Daí a necessidade de se fazer o custo contábil, sem nenhuma eiva de ilegalidade”.

                É que as operações interestaduais tem outra lógica, diferente da das operações internas, qual seja, visa a distribuição da receita tributária entre o Estado de origem da mercadoria e o de destino. Eis porque a transferência, nesse caso, deve ser feita a preço de custo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O que justifica a autonomia da Administração Tributária?

Velocino Pacheco Filho
         
           O inciso XXII do art. 37 da Constituição da República dispõe que “as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma de lei ou convênio”.

          Por sua vez, o inciso IV do art. 167 da Lei Maior excetua da vedação à vinculação de receitas de impostos precisamente a destinação de recursos para a realização de atividades da administração tributária, como determinado pelo art. 37, XXII.

          Agora, discute-se a própria autonomia administrativa e orçamentária do Fisco.
         
          A quem serve essa autonomia?

          Se for para instituir privilégios e vantagens pessoais para os membros da classe dos auditores fiscais, estaremos trilhando o caminho da iniquidade. Estaremos criando uma nova “nomenclatura”.

          A autonomia somente se justifica em benefício da cidadania, para que os funcionários fiscais possam exercer suas atividades de acordo com o ordenamento jurídico-tributário, independentemente das preferências e da vontade do governante (quando estas colidirem com a lei e com o interesse público).

          Conforme determina o art. 3º do Código Tributário Nacional, o tributo é cobrado mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Como a atividade administrativa é vinculada, o Fisco somente pode agir em estrita conformidade com a lei, sem qualquer margem para discricionariedade. O Fisco não pode exigir do contribuinte nada a menos que o devido, nem além do devido.

          Ainda como parte da Administração Pública, o Fisco está sujeito aos princípios relacionados no art. 37 da Constituição: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O Fisco somente pode agir estritamente de acordo com a lei; tratar a todos os contribuintes da mesma forma, sem favoritismos ou preferências; segundo os ditames da moral, sem engodos, trapaça ou má-fé; dando publicidade aos seus atos, respeitado o que estiver protegido por sigilo (como, por exemplo, informações sobre os negócios do contribuinte); e com eficiência, dando o melhor uso aos recursos disponíveis, mas sem prejuízo dos demais princípios mencionados.

          Assim, as exonerações tributárias (as exceções ao princípio de que todos devem contribuir para o custeio do setor público) somente podem ser aceitas se puderem ser justificadas com base no princípio da isonomia (tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais) ou com propósitos extrafiscais (quando a dispensa do tributo colabora mais para a consecução dos objetivos fundamentais – art. 3º da CF – do que a sua cobrança).

          A autonomia do Fisco somente se justifica para fazer a justiça fiscal: combater as políticas de exoneração tributária que somente beneficiam os “amigos do rei”; resistir às leis inconstitucionais; pugnar pelo bom cumprimento da lei, no interesse da população; preservar o interesse público; realizar o bem comum e defender a indisponibilidade da coisa pública.

          A constituição do crédito tributário, conforme parágrafo único do art. 142 do CTN é atividade administrativa vinculada e obrigatória o que deve ser entendido no duplo sentido de não poder ser cobrado tributo não previsto em lei e nada a menos do que o previsto em lei, sem prejuízo do direito do contribuinte ao contraditório, à  ampla defesa e ao devido processo legal tributário.

          A autonomia do Fisco deve significar proteção ao contribuinte contra leis inconstitucionais e a tratamento tributário discriminatório.      Pois, como alerta Poulantzas: “Frequentemente o Estado age transgredindo a lei-regra que edita, desviando-se da lei ou agindo contra a própria lei”. O autor acrescenta que isso não resulta da mera ignorância, mas que o governante tem plena consciência do que está fazendo.


          Enfim, a autonomia do Fisco justifica-se porque os governos são transitórios, mas o Fisco é permanente.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A tributação e os objetivos fundamentais da República


                
Velocino Pacheco Filho
          O constituinte de 1988 relacionou, no art. 3º da Carta, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e (iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

          A palavra “objetivo”, utilizada pelo constituinte, tem o sentido de “meta a ser alcançada”, enquanto “fundamental” significa que está no fundamento, na base, no alicerce, ou ainda, que constitui o fundamento, a base ou o alicerce. José Afonso da Silva, em seu Comentário Contextual à Constituição, assevera que “só na aparência é que as disposições do art. 3º têm sentido programático. São, em verdade, normas dirigentes ou teleológicas, porque apontam fins positivos a serem alcançados pela aplicação de preceitos concretos definidos em outras partes da Constituição”.

          Esse mesmo autor ressalta que “não se trata de objetivos de governo, mas do Estado Brasileiro”, pois cada governo pode definir seus próprios objetivos e metas a alcançar, mas “elas têm de se harmonizar com os objetivos fundamentais”, sob pena de incorrerem em inconstitucionalidade.

          A norma constitucional é dita programática quando define objetivo cuja concretização depende de providências situadas fora ou além do texto constitucional. De modo geral, um preceito constitucional é taxado maliciosamente de “programático” quando se quer negar-lhe eficácia.

          Por outro lado, o art. 1º da Constituição adota como fundamentos (base, alicerces) da República, (i) a soberania; (ii) a cidadania; (iii) a dignidade da pessoa humana; (iv) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e (v) o pluralismo político.

          No próprio preâmbulo da Carta, os constituintes invocam a proteção de Deus para “instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. Sobre o Preâmbulo da Constituição, comenta Inocêncio M. Coelho (in Curso ...):

          “Como vetor hermenêutico, são indiscutíveis, se não mesmo imprescindíveis, os préstimos do preâmbulo, na medida em que nele se expressam o ethos e o telos da Sociedade e da sua Lei Fundamental, dados materiais de partida que funcionam para o intérprete como verdadeira condição de possibilidade do compreender constitucional”.

          Por sua vez, Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional, 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 398) leciona: “A revolução constitucional que deu origem ao segundo Estado de Direito principiou a partir do momento em que as declarações de direitos, ao invés de ‘declarações político-filosóficas’, se tornaram ‘atos de legislação vinculantes’ ....”

          Os objetivos fundamentais da República, referidos no art. 3º, bem como os fundamentos do art. 1º e o conteúdo ético do Preâmbulo da Constituição, não são palavras vazias, meras frases de efeito do discurso político-demagógico, mas, pelo contrário, constituem critérios de interpretação ou, como diz Inocêncio Coêlho, verdadeiros “vetores hermenêuticos”, a direcionar o trabalho do intérprete. É justamente o preâmbulo, juntamente com os fundamentos e os objetivos fundamentais da República, que direcionam a interpretação das leis: a interpretação será tanto mais acertada quanto mais se aproximar da realização desses valores. Se o Estado tem por finalidade a consecução do bem comum, é no preâmbulo e nos objetivos fundamentais da República que podemos apreender o seu conteúdo.

          Não é diferente a interpretação da legislação tributária. Vejamos o caso da progressividade das alíquotas do ITCMD, matéria a que o Supremo Tribunal Federal, recentemente, reconheceu repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário 562.045 RS.

          O ITCMD rege-se em Santa Catarina pela Lei 13.136, de 25 de novembro de 2004, que, em seu artigo 2º, define o fato gerador do imposto como a transmissão causa mortis ou a doação a qualquer título (i) da propriedade ou domínio útil de bem imóvel, (ii) de direitos reais sobre bens móveis e imóveis e (iii) de bens móveis, inclusive semoventes, direitos, títulos e créditos. A base de cálculo do imposto, conforme dispõe o art. 7º, é o valor venal do bem ou direito, ou o valor do título ou crédito transmitido.

          As alíquotas do imposto, nos termos do art. 9º, variam de 1% a 7%, em função do valor do bem transmitido e passam para 8% no caso do sucessor ser parente colateral, herdeiro testamentário ou legatário que não tiver relação de parentesco com o de cujus ou quando o donatário ou cessionário for parente colateral ou não tiver relação de parentesco com o doador ou cedente. Além disso, o art. 10, III, isenta do pagamento do imposto quando a transmissão causa mortis se referir a um único imóvel que se destine à moradia do próprio beneficiário e que este não possua qualquer outro imóvel.

          Observe-se que se trata de acréscimo ao patrimônio do beneficiário que não teve qualquer contrapartida e que não resultou de esforço próprio. Além do mais, a lei distingue entre o sucessor direto (filhos, netos etc.) e a sucessão em linha colateral ou quando não há relação de parentesco. No primeiro caso, as alíquotas são bem menores e variam com o valor do bem transmitido. As manifestações favoráveis à progressividade, em sede de Supremo Tribunal Federal tem tomado como fundamento o princípio da capacidade econômica do contribuinte. O objetivo, pois, é “estabelecer uma graduação que leve à justiça tributária, ou seja, onerando aqueles com maior capacidade para o pagamento do imposto” (do voto do M. Marco Aurélio no julgamento do RE 562.045 RS).

          Interpretando o dispositivo que adota a progressividade das alíquotas do ITCMD, da perspectiva do conteúdo axiológico da Constituição, contido em seus objetivos fundamentais, podemos dizer que ele contribui para a redução das desigualdades sociais (CF, art. 3º, III) e, por conseguinte, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidaria.

          Os grandes desníveis de rendimentos entre as classes sociais constitui um dos principais problemas que afligem a sociedade brasileira e estão na origem da crescente violência e criminalidade e na banalização do sofrimento humano. O que agrava a miséria é a indiferença com que se encara o sofrimento alheio. A transmissão de grandes patrimônios, via sucessão hereditária ou testamentária, representa fator de manutenção das diferenças e é o que legitima o Estado a instituir a tributação progressiva. O efeito será tanto mais eficiente quanto mais progressiva for a incidência do imposto.


          A indiferença dos que têm em relação aos que não têm é o principal obstáculo à construção de uma sociedade que se quer livre, justa e solidária (art. 3º, I). A liberdade como valor deve ser temperada pela solidariedade e equilibrada pela justiça. Somente assim poderá ser assegurada a igualdade e a justiça como valores supremos, como quer o preâmbulo da Constituição.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

ICMS, ISS e suas respectivas incidências

Velocino Pacheco Filho

Frequentemente, a incidência do ICMS ou do ISS torna-se objeto de amargas disputas entre Estados e Municípios. Entretanto, essas disputas situam-se na estreita faixa em que ocorre simultaneamente prestação de serviços e fornecimento de mercadorias. A questão é saber qual a atividade predominante: o dar sobre o fazer ou o fazer sobre o dar.

A Constituição Federal atribuiu aos Estados (art. 155, II) competência para tributar (i) operações de circulação de mercadorias, (ii) prestação de serviços de transporte interestaduais e intermunicipais e (iii) prestação de serviço de comunicação. Ficou assim ressalvada a tributação pelos Municípios do serviço de transporte estritamente municipal. Tal ressalva não foi feita no caso da prestação de serviço de comunicação: incide o ICMS mesmo quando a comunicação ocorrer estritamente dentro do território do Município.

No tocante às operações de circulação de mercadorias, o imposto estadual incide tanto sobre as mercadorias adquiridas e revendidas – mercadoria, por definição, é o bem móvel adquirido para revenda – como o que é fabricado ou produzido para ser vendido. A operação é de circulação de mercadorias, portanto, quando impulsiona o bem no sentido da sua produção em direção ao consumo.

Já a competência dos Municípios compreende a tributação da prestação de serviços de qualquer natureza (CF, art. 156, III). Contudo, nem todas as prestações de serviços são tributáveis pelos Municípios. Primeiro temos a tributação das prestações de serviço de competência dos Estados – transporte e comunicação. Em segundo lugar, os Municípios somente podem tributar as prestações de serviço realizadas em caráter negocial – não são tributáveis os serviços prestados em decorrência de contrato de trabalho. Finalmente, somente os serviços expressamente nominados em lista de serviços podem ser tributados pelo ISS – em vigor a lista anexa à Lei Complementar 116/2003.  

O conflito de competência vai ocorrer nas atividades que envolvem simultaneamente prestação de serviço (fazer) e fornecimento de mercadorias (dar). Podemos distinguir três hipóteses:

(i) incidem os dois impostos: a lista de serviços ressalva expressamente a incidência do ICMS sobre as mercadorias fornecidas com a prestação de serviços: e.g. item 7.05 – reparação, conservação e reforma de edifícios, estradas, pontes etc.

(ii) a prestação de serviço está compreendida na comercialização de mercadoria (montagem, elaboração de projeto no caso de móveis por encomenda etc.), hipótese em que incide apenas o ICMS (o “fazer” é acessório em relação ao “dar”);

(iii) o fornecimento de mercadorias está compreendido na prestação do serviço (e.g. impressos personalizados, colocação de molduras, recauchutagem de pneus etc.), caso em que incide apenas o ISS (o dar apenas viabiliza o fazer).

A jurisprudência mais recente do STF (ADI/MC 4.389 DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, julgada em 13-4-2011) admite a incidência do ICMS apenas quando a prestação de serviço estiver intercalada no ciclo de industrialização: o produto final da prestação de serviço vai ser agregado a uma mercadoria que se destina à comercialização (e.g. rótulos, embalagens etc.).


Com exceção dessa situação específica – quando a prestação de serviço estiver compreendida no processo de produção da mercadoria – não cabe aos Estados pretender cobrar ICMS de mercadoria fornecida com prestação de serviço expressamente relacionada na Lista de  Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Decadência e lançamento por homologação

Velocino Pacheco Filho
O art. 150 do Código Tributário Nacional caracteriza o lançamento por homologação como aquele em que o contribuinte tenha o dever de “antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa”. O pagamento antecipado pelo sujeito passivo extingue o crédito tributário, “sob condição resolutória da ulterior homologação do lançamento” (CTN, art. 150, § 1º e art. 156, VII).

Acrescenta o § 4º do mesmo artigo que o prazo para a homologação é de cinco anos, contados da ocorrência do fato gerador. Expirado esse prazo, sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, “considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação” (homologação tácita).

A antecipação do pagamento pressupõe uma atividade do contribuinte de cálculo do tributo e apuração do que deve recolher ao Erário. Também constitui dever legal do contribuinte informar à Fazenda o valor devido. A partir desse momento, em relação ao valor declarado pelo contribuinte (e não recolhido), não há que se falar mais em prazo de decadência, pois, passa a correr prazo de prescrição para a cobrança judicial do crédito tributário. Então, não cabe constituição de ofício desse crédito (notificação fiscal), uma vez que já foi constituído pela declaração do sujeito passivo (autolançamento).

Com efeito, conforme Súmula 436 do STJ, “a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”.

A Primeira Turma do Tribunal esclarece, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 819.627 SP (DJe de 8-6-2006, p. 146), que “cuidando-se de crédito tributário originado de informações prestadas pelo próprio contribuinte através de Guia de Informação e Apuração do ICMS (GIA), a constituição definitiva do crédito tributário dá-se no exato momento em que há a apresentação desse documento”.

A legislação catarinense, Lei 5.983, de 1981, art. 62, § 1º, permite a inscrição em dívida ativa do imposto apurado e declarado pelo sujeito passivo, não recolhido no prazo regulamentar, independentemente de notificação ao devedor. Incide, na hipótese, a multa prevista no art. 51, I, da Lei 10.297, de 1996.

O lançamento de ofício do crédito tributário, com o prazo previsto para reclamação do sujeito passivo junto ao TAT e subsequente discussão administrativa pode ser surpreendido pela prescrição do direito da Fazenda de ajuizar a competente ação de execução.

Pois bem, se o imposto declarado pelo sujeito passivo não está sujeito a prazo de decadência, a fluência desse prazo ocorre em relação a que? Naturalmente ao que não foi declarado: o tributo não submetido voluntariamente à tributação ou o crédito indevidamente aproveitado ou o benefício fiscal a que não tinha direito. Está sujeito a prazo de decadência o imposto correspondente a fato gerador e que não foi declarado e, por conseguinte, não foi antecipado.

Em princípio, o prazo de decadência rege-se pelo art. I73, I, do CTN: “o direito da Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado”. Porém, no caso do lançamento por homologação, existe regra especial de decadência que é a do § 4º do art. 150: cinco anos contados da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. No entanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entende que esse prazo especial de decadência somente se aplica se houver antecipação do pagamento do imposto apurado pelo sujeito passivo. A falta de pagamento descaracterizaria o lançamento como por homologação, recaindo na regra do art. 173, I.

Temos, então, que, no caso de lançamento por homologação, conta-se o prazo de decadência pela regra do § 4º do art. 150, exceto nas seguintes situações, em que se aplica a regra do art. 173, I: (i) não houve antecipação do imposto declarado; e (ii) comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. Naturalmente, essa “comprovação” compete ao Fisco, pois não se presume a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

Portanto, havendo antecipação do imposto declarado, ainda que parcial, o prazo de decadência do direito do Fisco de constituir o crédito tributário – bem entendido, o crédito não declarado pelo contribuinte e apurado pelo Fisco, no decurso de procedimento de fiscalização – é de cinco anos contados da ocorrência do fato gerador, nos termos do § 4º do art. 150 do CTN.

Ora, nos termos da Lei catarinense 10.297, de 1996, o fato gerador do ICMS “operação relativa à circulação de mercadorias” considera-se ocorrido no momento da saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte (arts. 2º, I, e 4º, I). O imposto devido em cada operação é o resultado da aplicação da alíquota sobre a respectiva base de cálculo que, no caso, é o valor da operação de saída (art. 10, I). Contudo, o que o sujeito passivo antecipa, no lançamento por homologação, é o imposto apurado – i. e. o resultado da diferença entre o imposto debitado e o crédito correspondente (imposto que onerou a mercadoria em fases anteriores de comercialização).

O imposto apurado, no entanto, ressalvadas as hipóteses previstas em lei, não é calculado em cada operação de saída, mas, conforme art. 32 da mesma lei, “mensalmente, pelo confronto entre os débitos e os créditos escriturados durante o mês, em cada estabelecimento do sujeito passivo”.

Assim, para aplicação da regra de decadência prevista no § 4º do art. 150 do CTN, é irrelevante se a antecipação foi do (i) total do imposto declarado ou (ii) a fortiori, do total do imposto devido.

Nesse sentido, a Segunda Turma do STJ tem decidido que “nas exações cujo lançamento se faz por homologação, havendo pagamento antecipado, conta-se o prazo decadencial a partir da ocorrência do fato gerador (art. 150, § 4º, do CTN), que é de cinco anos”. E arremata: “somente quando não há pagamento antecipado, ou há prova de fraude, dolo ou simulação é que se aplica o disposto no art. 173, I, do CTN” (REsp 260.040 SP; DJ 14.12.2006 p. 330).

Mais recentemente, a mesma turma decidiu (AgRg no REsp 1.277.854 PR, rel. Min. Humberto Martins, DJe 8-6-2012):

“1. A Primeira Seção, conforme entendimento exarado por ocasião do julgamento do Recurso Especial repetitivo 973.733/SC, Rel. Min; Luiz Fux, considera, para a contagem do prazo decadencial de tributo sujeito a lançamento por homologação, a existência, ou não, de pagamento antecipado, pois é esse o ato que está sujeito à homologação pela Fazenda Pública, nos termos do art. 150 e parágrafos do CTN.
2. Havendo pagamento, ainda que não seja integral, estará ele sujeito à homologação, daí porque deve ser aplicado para o lançamento suplementar o prazo previsto no § 4º desse artigo (de cinco anos a contar do fato gerador). Todavia, não havendo pagamento algum, não há o que homologar, motivo porque deverá ser adotado o prazo previsto no art. 173, I, do CTN.”


Em síntese: 1. Em relação ao imposto apurado e declarado pelo sujeito passivo, não corre prazo de decadência, mas de prescrição, contado da declaração; 2. A declaração do sujeito passivo constitui o crédito tributário (autolançamento); 3. O imposto declarado e não recolhido deve ser inscrito em dívida ativa, sendo desnecessário qualquer outro ato administrativo constitutivo do crédito; 4. O imposto que não foi declarado, constatado mediante procedimento de fiscalização, deve ser constituído de ofício (lançamento suplementar); 5. O prazo para proceder ao lançamento suplementar será (a) o do § 4º do art. 150 do CTN, caso tenha havido algum recolhimento, ainda que parcial, do imposto declarado ou (b) o do art. 173, I, no caso de não ter havido qualquer recolhimento ou se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A ditadura do “sistema” e o Estado de Direito

Velocino Pacheco Filho

Devemos reconhecer que a adoção da informática pelo Fisco provocou uma verdadeira revolução nos métodos, nas técnicas e nos resultados do trabalho fiscal. Podemos até dizer que a informática tem modificado a própria maneira de pensar dos agentes do Fisco.

A não muito tempo atrás, o trabalho fiscal era, sobretudo, manual, compreendendo a conferência física de livros e documentos fiscais, muitas vezes manuscritos, e intermináveis operações de adição. O célebre “lamber nota” fazia parte da rotina diária.

A informática veio introduzir maior agilidade e rapidez no processamento dos dados brutos, permitido o manejo de grandes volumes de dados. Enquanto antes se trabalhava com amostragens relativamente reduzidas das operações do contribuinte, hoje se pode examinar a quase totalidade dessas operações, com muito maior precisão e em muito menor tempo. A integração dos bancos de dados permite conferir grandes volumes de documentos fiscais, como, por exemplo, os relativos às mercadorias e insumos recebidos de seus fornecedores, inclusive quando vindos de outros Estados. Inovações como a nota fiscal eletrônica, o emissor de cupom fiscal (ECF), o SPED fiscal, entre outras, deram ao Fisco muito mais controle sobre as atividades do contribuinte. A informática deu ao Fisco esse poder. 

Contudo, com certa frequência, o “sistema” informatizado entra em choque com o direito tributário. O “sistema” não aceita procedimentos que não estiverem previstos, mesmo que resultem de decisão judicial ou de modificações na legislação tributária. O direito, inclusive o tributário, está em contínua mudança para acompanhar a dinâmica social. Assim, ele deve se adaptar a novas modalidades de negócios, a novas necessidades e demandas sociais. O Fisco não pode, em um mundo cada vez mais competitivo, simplesmente dizer que determinado procedimento ou forma de comercialização – que pode decisivo para a sobrevivência da empresa – não pode ser implementado porque não está previsto no sistema. Ao Fisco compete obter os recursos necessários ao financiamento do setor público, na forma da lei, e não constituir entrave às atividades comerciais.

Vejamos algumas situações específicas. O espaço destinado à fundamentação do ato fiscal pode ser demasiadamente exíguo o que obriga a um laconismo que pode caracterizar cerceamento do direito de defesa. O sistema pode não prever a pluralidade de sujeitos passivos – responsáveis solidários e subsidiários – a estes não será dada oportunidade de apresentar defesa administrativa o que pode inviabilizar uma futura execução fiscal, com redirecionamento para o co-responsável.

O que acontece é que o “sistema”, abandonado à pouca imaginação de programadores e analistas, foi concebido muito rígido e não admite mudanças. O resultado é que qualquer modificação implica altos custos.

É fácil entender que os profissionais da informática projetem o “sistema” do modo que julgam ser mais eficiente, ou seja, com o mínimo de diversidade e menor custo. Qualquer desvio das rotinas básicas adotadas não deve ser permitido, em nome da segurança.

Mas isso não funciona no mundo do direito. Não podemos negar direitos fundamentais do cidadão-contribuinte porque o “sistema” não prevê determinado procedimento. Os direitos e garantias fundamentais, como os previstos no art. 5º da Constituição, não podem ser negados ao cidadão por causa das insuficiências de uma máquina mal projetada.

Com isso, estamos constantemente sendo confrontados com o dilema eficiência vs. legalidade. O “sistema”, do seu ponto de vista tacanho e limitado, é eficiente, mas à custa do sacrifício de direitos fundamentais do cidadão-contribuinte. O “sistema” e a legalidade, no atual estado das coisas, são incompatíveis. À evidência, deve prevalecer o direito sobre o “sistema”. Em um Estado Democrático de Direito, as leis, não o “sistema”, resultam da vontade soberana do povo.

Para resolver o impasse, devemos procurar uma nova abordagem. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que analistas e programadores são incompetentes em matéria jurídica. Em segundo lugar, falta o necessário diálogo entre os profissionais da informática e os juristas. Não se pode deixar a tomada de decisões a cargo dos analistas e programadores. A decisão deve ser do jurista. O profissional da informática deve desistir da sua arrogância e reconhecer a sua subordinação ao jurista: um deve tomar as decisões; o outro, as executar.


O “sistema” não deve ser concebido de forma rígida, mas possibilitar a mudança, para atender às necessidades do ordenamento jurídico. Os programas devem mais flexíveis e adaptáveis, para atender satisfatoriamente situações concretas impostas pela prática do direito no dia a dia. 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Transparência, controle social e interesse público

Velocino Pacheco Filho

          No dia onze do corrente, Florianópolis sediou o 5º Seminário Catarinense sobre Transparência Pública e Controle Social. Agora que já existe uma Lei de Transparência e portais da transparência em funcionamento, podemos perguntar: o que o cidadão está fazendo com essa informação?
         
          Um dos painéis teve como tema “o dever do Estado no fomento ao controle social”. Após a exposição dos painelistas, a palavra foi franqueada ao público presente. Uma pergunta foi feita logo de imediato: porque o Estado iria fomentar o controle social?

          Com efeito, o senso comum nos sugere que não faz sentido o Estado estimular o surgimento de entidades na sociedade civil com o objetivo manifesto de controle e fiscalização das ações e políticas do Estado. Seria criar empecilhos a si mesmo. Esse raciocínio seria válido se encararmos o Estado como uma entidade particular, voltada para a defesa de seus interesses particulares.

          Mas não é esse o caso do Estado. Pelo contrário, quando dizemos que o interesse público prevalece sobre os interesses particulares estamos nos referindo a um interesse que não é o interesse do Estado como particular. Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo):

“... independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesse públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extra jurídico), aos interesse de qualquer outro sujeito”.

          Os doutrinadores distinguem entre interesse público primário e secundário. O interesse público primário – interesse público em sentido estrito – é o cumprimento do ordenamento jurídico, principalmente no que se refere à realização do bem comum e os valores adotados pela Constituição Federal. Este é o interesse público contra o qual não prevalecem os interesses particulares. O interesse público secundário, por sua vez, é o interesse que o Estado tem na preservação de seu patrimônio, como toda e qualquer pessoa privada. Sobre essa matéria, comenta Marçal Justem Filho (Curso ...):

“... não é casual que a tese da supremacia e indisponibilidade do interesse público tenha de ser acompanhada da diferenciação entre interesse público primário e secundário. Tal deriva do permanente e inafastável risco de que o governante escolha fundado em sua conveniência política pessoal ou partidária, antes do que por homenagem a um ‘Bem Comum’ indeterminado”.

           No Antigo Regime, Luiz XIV podia dizer, com razão: “o Estado sou eu”. De fato, o Estado (o Leviatã hobbesiano) decorria do poder do soberano; as leis expressavam a vontade do príncipe; o setor público era financiado pelas rendas privadas da coroa. Porém, no moderno Estado Democrático de Direito o fundamento do Estado é o Povo, as leis expressam a vontade do povo, por meio de seus representantes eleitos; o setor público é financiado pela contribuição de todos, na medida da capacidade contributiva de cada um.

          Se o interesse do Estado, enquanto pessoa privada, devesse prevalecer sobre o interesse das outras pessoas privadas (o cidadão), então não seria possível acionar o Estado para obter reparação de um dano por ele causado. Mas, não é isso que acontece: a responsabilidade do Estado é objetiva. Se causar dano ao particular, este deve ser indenizado.

          Com fina percepção, Raquel Cavalcanti Ramos Machado (Interesse Público e Direitos do Contribuinte) comenta que “tendo o Estado, em última análise, surgido para fazer valer as normas de conduta e assim tornar viável a subsistência de grupos sociais cada vez mais complexos, não faz sentido que o Estado invoque um outro propósito, seja ele qual for, para descumprir essas normas, tornando-as ineficazes”.

          Porém, nem sempre o administrador público tem a percepção de que o interesse público (em sentido estrito ou interesse público primário) não é o mesmo que o interesse do Estado como pessoa particular (ou interesse público secundário). Nisso reside o erro de querer administrar o Estado como se fosse uma empresa. O Estado tem outro interesse, além da preservação do seu patrimônio: o interesse primordial do Estado é a realização do bem comum, a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, o cumprimento dos valores albergados na Constituição, a realização do ordenamento jurídico, enfim.

          Assim, é do interesse do Estado fomentar o controle dos seus atos pela sociedade civil e do fiel cumprimento da lei. Se o diretor de uma empresa deve satisfações aos seus acionistas, também o administrador público deve satisfações aos cidadãos que constituem a verdadeira fonte do poder. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO

Velocino Pacheco Filho

          Dispõe o art. 5º, LVII, da Constituição da República que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Ou seja, presume-se a inocência; a culpa deve ser provada.

          A presunção de inocência, formulada originalmente na Magna Carta (Runnymed, 1215), constitui um dos pilares em que se assenta o direito penal moderno.  Da presunção de inocência decorre a vedação à auto-incriminação (ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo), o direito de ser ouvido, o direito ao silêncio (CF, art. 5°, LXIII) etc.

          A presunção de inocência está estreitamente relacionada a outros princípios processuais como o do contraditório e da ampla defesa, do direito ao silêncio, do duplo grau de jurisdição, da produção de provas etc. Em síntese, a presunção de inocência assegura ao réu a condição de sujeito de direitos dentro da relação processual.

          Tecidas essas considerações, pergunta-se: a presunção de inocência restringe-se à esfera do direito penal ou tem aplicação em outras províncias do direito? Mais especificamente, aplica-se ao contencioso administrativo tributário?

          O art. 5°, LV, assegura expressamente a aplicação do contraditório e a ampla defesa, “com os meios e os recursos a ela inerentes”, ao processo administrativo. Por qual razão não se aplicaria também a presunção de inocência com a qual guardam tão estreita relação?

          O Supremo Tribunal Federal (Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 450.971 DF, 2011) já aplicou o princípio da presunção de inocência para afastar outras conseqüências do delito enquanto não houver sentença condenatória transitada em julgado (caso de exclusão de candidato em concurso público).

          O Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, tem reconhecido a aplicação do princípio ao processo administrativo disciplinar. Assim, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 24.584 SP (DJe 8/3/2010) decidiu que “a imposição de sanção disciplinar está sujeita a garantias muito severas, entre as quais avulta de importância a observância da regra in dubio pro reu, expressão jurídica do princípio da presunção de inocência, intimamente ligado ao princípio da legalidade”. A regra invocada encontra seu correspondente na seara tributária (in dubio pro contribuinte), conforme art. 112 do Código Tributário Nacional.

          O mesmo tribunal (RMS 11.336 PE; DJ 19/2/2001, p. 188) invocou o princípio da presunção de inocência para assegurar ingresso em concurso público por não ter o candidato sofrido qualquer penalidade disciplinar.

          Então, a presunção de inocência, expressamente assegurada no direito penal e processual penal, é aplicável também à esfera disciplinar, bem como a todos os processos estatais que imponham sanções. Ninguém poderá ser considerado culpado antes que seja proferida decisão que aplique penalidade, como resultado do devido processo legal. Podemos concluir que a presunção de inocência deve ser garantida a todas as pessoas naturais ou jurídicas em suas relações com a Administração Pública.

          Conforme acórdão da Egrégia Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 471.894 SP (2006):

          “1. A responsabilidade pela prática de infração tributária, malgrado o disposto  no art. 136 do CTN, deve ser analisada com temperamentos, sobretudo quando não resta comprovado  que  a  conduta  do  vendedor  encontrava-se  inquinada  de  má-fé.  Em hipótese  como  tais,  tem  emprego  o  disposto  no  art.  137  do  CTN,  que  consagra  a responsabilidade subjetiva. Precedentes”.


          A constituição do crédito tributário, bem como sua impugnação junto aos órgãos judicantes administrativos, são modalidades de processo administrativo, de caráter contencioso e sancionatório (pois pune a prática de ilícitos fiscais). Portanto, deve ter aplicação a tais processos o princípio da presunção de inocência, enquanto não for declarada a culpa, em decisão da qual não caiba mais recurso na esfera administrativa. Antes disso, o sujeito passivo não deve sofrer nenhuma das conseqüências devidas à prática da infração. 

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A Administração Tributária e o princípio da eficiência

Velocino Pacheco Filho

          Entre os princípios que informam a administração pública, previstos no art. 37 da Constituição Federal, está o da eficiência. Na verdade, foi acrescido pela EC 19/1998. Celso Antônio Bandeira de Mello identifica o princípio da eficiência com aspecto do princípio da “boa administração” a que se referem os juristas italianos. Segundo esse autor, “tal princípio não pode ser concebido senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais uma suposta busca da eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência”.

          Mas, afinal, o que é eficiência? Qual o conteúdo do referido princípio?

          Os administradores costumam distinguir eficiência de eficácia. Em apertada síntese, pode-se dizer que a eficiência se refere ao melhor uso dos meios para atingir determinado resultado. A eficácia, por sua vez, é o melhor resultado possível obtido com os meios que se dispõe.
         
          Temos ainda a efetividade, entendida como a promoção dos resultados pretendidos, com o melhor emprego dos meios disponíveis (eficiência), para atingir o melhor resultado possível (eficácia). Então, a eficiência é medida pela relação custo/benefício; utilizar os recursos disponíveis com o mínimo de perdas ou desperdício. Enquanto a eficiência se preocupa com os meios, a eficácia volta-se para os resultados.

          Muito bem! Sabemos o que é eficiência no âmbito da ciência da administração. Mas, o que é eficiência no âmbito do direito? Como bem salientou Celso Antônio Bandeira de Mello, a Administração Pública está sujeita principalmente ao princípio da legalidade. Enquanto o particular pode fazer tudo que a lei não lhe proíbe, o administrador público somente pode fazer o que a lei lhe permite.

          Contudo, se o direito positivo emprega uma expressão retirada de outros domínios do conhecimento, cabe ao jurista pesquisar o seu conteúdo jurídico que, entretanto, não pode apartar-se do substrato fático a que se refere. O termo “eficiência”, utilizado pelo constituinte derivado, deve ser entendido de modo abrangente, englobando tanto a eficiência, como a eficácia. Com efeito, espera-se do administrador público que utilize os recursos disponíveis da melhor maneira possível (eficiência) para obter o melhor resultado possível (eficácia).

            Nesse sentido, José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição) conceitua: “o princípio da eficiência administrativa tem como conteúdo a relação ‘meios e resultados’”. Por conseguinte, o referido princípio “orienta a atividade administrativa no sentido de conseguir os melhores resultados com os meios escassos de que se dispõe e a menor custo”. Em síntese, “o princípio da eficiência administrativa consiste na organização racional dos meios e recursos humanos, materiais e institucionais para a prestação de serviços públicos de qualidade em condições econômicas e de igualdade dos consumidores”.

            Ora, o tributo é cobrado “mediante atividade administrativa plenamente vinculada”, como dispõe o art. 3º do Código Tributário Nacional. O art. 142 do mesmo diploma legal, por sua vez, define o lançamento tributário como “procedimento administrativo” de constituição do crédito tributário. Por conseguinte, a cobrança do tributo e a constituição do crédito tributário devem obedecer ao princípio da eficiência.

            A Administração Tributária deve ser eficiente na constituição do crédito tributário e na sua cobrança. Ou seja, os recursos materiais e humanos devem ser utilizados da melhor maneira possível para obter o melhor resultado possível. O resultado, nesse caso, é a cobrança dos tributos devidos.

            Podemos dizer que a Administração Tributária será eficiente quando todo o tributo devido ao Estado for cobrado, mas com o mínimo de restrições aos direitos do cidadão-contribuinte e com total respeito aos direitos e garantias fundamentais.

            A ineficiência tem um custo, representado pelas impugnações administrativa e judicial, pelo indébito devolvido e seus acréscimos, pela sucumbência contra a Fazenda Pública. A Administração não estará sendo eficiente ao mover todo um aparato arrecadador para cobrar créditos tributários insignificantes, que não cobrem o custo de sua cobrança.

            Para ser eficiente, a Administração deve investir em infra-estrutura, equipamentos, informática e aplicativos voltados para a cobrança de tributos. Mas, principalmente, deve investir no material humano que deve ser de altamente qualificado, remunerado de forma condizente, constantemente atualizado e dispor de um ambiente de trabalho adequado.

            A Administração Tributária não estará sendo eficiente quando remunera mal os seus servidores; quando deixa de oferecer ou facilitar a freqüência em cursos de especialização, mestrado e doutorado; quando, por uma idéia equivocada de economia, não proporciona aos seus servidores a participação em congressos, seminários e eventos similares. Para desempenhar com eficiência suas funções, é imprescindível a constante qualificação e atualização dos servidores fazendários.

            Também não estará sendo eficiente a Administração Tributária quando demora muito tempo para realizar concurso para o ingresso de novos servidores. Concursos freqüentes e com elevado grau de exigência proporciona melhor seleção de servidores, além da contínua renovação do quadro.

            Finalmente, não estará sendo eficiente a Administração Tributária se não proporcionar a seus servidores instalações adequadas e confortáveis, propícias às atividades intelectuais, inclusive pondo à disposição uma biblioteca atualizada e especializada.


            A eficiência administrativa começa com a valorização dos servidores.