DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 27 de março de 2013


A famigerada pauta de valores mínimos
          Velocino Pacheco Filho
          Auditor Fiscal/SC
         
          A doutrina, secundada pela jurisprudência, tem afirmado repetidamente que o legislador não pode definir de modo arbitrário a base de cálculo de um tributo, mas que ela deve ter uma relação lógica com a descrição do fato gerador. Todos nós aprendemos a definição lapidar de Geraldo Ataliba de fato gerador como uma “perspectiva dimensível do aspecto material da hipótese de incidência”. Em outras palavras, a base de cálculo é a expressão financeira do fato gerador.
          No caso do ICMS, o art. 13 da Lei Complementar 87/96 define a base de cálculo, conforme o caso, como o “valor da operação”, o “preço do serviço”, o “preço corrente da mercadoria” etc.
          Por outro lado, o art. 148 do Código Tributário Nacional (CTN) permite ao Fisco arbitrar esse valor ou preço, quando as declarações, esclarecimentos prestados ou os documentos emitidos: (i) forem omissos; ou (ii) não merecerem fé. Fora dessas hipóteses, é vedado à autoridade administrativa exigir o ICMS sobre base de cálculo diversa.
          Com efeito, sobre a matéria o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 431, declarando que “é ilegal a cobrança de ICMS com base no valor da mercadoria submetido ao regime de pauta fiscal”.
          No mesmo sentido, o Superior Tribunal Federal (RE 92.679-8/ES; LEX 27: 183) já decidiu que o uso de pauta fiscal “só se legitima quando, em processo regular, não ficar demonstrado o valor real da operação de que decorrer a saída da mercadoria”.
          Mais recentemente, conforme Ministro Joaquim Barbosa (despacho no Agravo de Instrumento 632.847; RDDT 182: 195), “a utilização da pauta fiscal deve ser motivada, e faz parte de tal motivação o registro da idoneidade dos meios utilizados para se chegar aos valores presumidos para compor a base de cálculo do tributo”.
          Em resumo, (i) a pauta fiscal somente pode ser utilizada nas hipóteses em que o art. 148 do CTN autoriza o arbitramento: omissão ou quando não mereçam fé as declarações e os documentos do contribuinte; (ii) incumbe ao Fisco provar que as declarações e documentos do contribuinte não merecem fé; (iii) também ao Fisco incumbe provar a idoneidade dos meios utilizados arbitrar os valores da operação (ou dos preços de pauta) e; por fim, (iv) deve ser garantido ao contribuinte o oferecimento de avaliação contraditória.
          Estamos diante de jurisprudência reiterada e uniforme dos tribunais superiores, adotada desde a década de sessenta.
          Apesar disso, a Administração Tributária catarinense expediu o Ato Diat 17/2011 que “considerando a necessidade de adequar a base de cálculo do ICMS aos preços de mercado ... aprova a Pauta de Valores Mínimos constante do Anexo Único deste Ato ....”.
          Ora, os preços de mercado são determinados pelo próprio mercado – ou seja, pelo confronto entre demanda e oferta – e não por ato normativo das autoridades administrativas.
          O próprio Regulamento do ICMS-SC, que trata da base de cálculo na Seção I do Capítulo IV, dispõe sobre arbitramento na Subseção III, cujo art. 15 trata do arbitramento nos mesmos termos do art. 148 do CTN. O art. 16 prevê que o Fisco deve elaborar um “Termo de Arbitramento” do qual deve ser dada ciência ao contribuinte que, conforme § 2º, dispõe do prazo de trinta dias para contestar. O art. 17 diz que o Termo de Arbitramento deve acompanhar a Notificação, com cópias dos documentos que embasaram o arbitramento (art. 18).
          Assim os trinta dias previstos no § 2º do art. 16 não afasta o direito do contribuinte de impugnar o arbitramento perante o Tribunal Administrativo Tributário,conforme art. 20 do RICMS.
          Ainda dentro da mesma subseção, o art. 21 autoriza a expedição de pauta fiscal (não de pauta de valores mínimos), cujos valores poderão ser utilizados nas mesmas hipóteses do arbitramento, ou seja, se as declarações e documentos do sujeito passivo forem omissos ou não merecerem fé.
          A Pauta Fiscal é uma forma simplificada de arbitramento, para uso na fiscalização de mercadorias em trânsito, principalmente, porém, nas mesmas hipóteses e com as mesmas restrições. O art. 21 do RICMS-SC não é uma autorização para o arbítrio ou para desconsiderar o valor da operação ou o preço acordado entre as partes. Tal valor somente poderá ser afastado, para aplicação da pauta, no caso de omissão (e.g. transporte de mercadorias sem documento fiscal) ou se o Fisco provar que o preço declarado não merece fé.
          Como se explica que em um Estado Democrático de Direito (seria o caso, conforme art. 1º da CF) a Administração Tributária se arrogue o direito de ignorar o ordenamento jurídico e desafiar a jurisprudência dos tribunais superiores?

quarta-feira, 20 de março de 2013


O art. 43 da lei catarinense
Velocino Pacheco Filho
          Auditor Fiscal/SC

          A Constituição Federal, art. 155, § 2º, XII, “g”, procurou evitar a “guerra fiscal” entre os Estados, dispondo que a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais do ICMS dependesse da concordância dos demais Estados-membros e do Distrito Federal, mediante convênios, celebrados nos termos da Lei Complementar 24/1975.
          Apesar disso, a guerra fiscal constitui um dos mais deploráveis espetáculos que os Estados oferecem à população brasileira. Basicamente, cada Estados-membro procura atrair investimentos para o seu território, oferecendo benefícios fiscais, ainda que não autorizados por convênio e em total desrespeito pela Constituição.
          Contudo, a guerra fiscal é uma guerra suicida, pois, como todos os Estados detêm a mesma competência tributária, as vantagens oferecidas por um Estado-membro também pode ser concedida pelos demais. Assim, o investidor decide onde investir, por outros motivos (economias de escala, proximidade dos mercados consumidores ou das matérias-primas, disponibilidade de mão de obra qualificada, facilidades de transporte etc.) que não as vantagens fiscais oferecidas. Para o Estado-membro, fica apenas a renúncia de receita.
          Independentemente de tais considerações, temos que a desenvoltura com que os Estados desobedecem a norma constitucional explica-se pela falta de sanção, no caso de um Estado-membro conceder benefício não autorizado por convênio.
          É verdade que o art. 8º da Lei Complementar 24 prevê sanções, a saber: (i) nulidade do ato e ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria e (ii) exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda a remissão do débito correspondente. O parágrafo único do mesmo artigo prevê ainda presunção de irregularidade das contas correspondentes ao exercício e a suspensão das quotas do Fundo de Participação e de outras participações em tributos federais.
          Mas, quem teria competência para aplicar essas sanções? O STJ tem entendido que os Estados-membros não teriam competência para declarar a ineficácia do crédito relativo a benefício não autorizado por convênio, dado por outro Estado-membro (LC 24, art. 8º, I), pois, “a inconstitucionalidade deve ser previamente declarada em ADI específica, relativa à lei do Estado de origem” (RMS 31.714 MT). Com isso, perde-se a agilidade na aplicação da sanção, além de retirar dos Estados uma arma para o combate à guerra fiscal.
          A grande falha da sanção prevista no art. 8º, I, é que penaliza, não o Estado infrator, mas o contribuinte que adquire a mercadoria do Estado que concedeu irregularmente o benefício fiscal. Os Estados são detentores do poder de tributar e do poder de exonerar. O contribuinte, por sua vez, está obrigado à obediência da lei. O que fazer? Simplesmente aceitar o ônus adicional da proibição do crédito? Outra hipótese seria não adquirir mercadoria de Estado que conceda benefício fiscal não autorizado por convênio. Nesse caso, entendo que poderia ser alegada ofensa ao o disposto no art. 152 da Constituição que proíbe estabelecer diferença tributária, em razão da procedência da mercadoria.
          Para tornar as sanções do art. 8º efetivas, seria preciso definir quem tem a competência para aplicá-las, qual o procedimento ou rito adotado, a quem caberia oferecer a denúncia e, desse modo, desencadear a prestação jurisdicional, qual o agravamento da pena no caso de reincidência do Estado-membro infrator e outras questões.
          De qualquer modo, diante da ausência de sanção ou de definição do procedimento para aplicar as sanções previstas no art. 8º da LV 24, o Estado de Santa Catarina, como medida preventiva, dispôs no art. 43 da Lei 10.297, de 26 de dezembro de 1996, que trata do ICMS nesse Estado, que o Executivo fica autorizado a “tomar as medidas necessárias para a proteção dos interesses da economia catarinense”, quando outro Estado-membro ou o Distrito Federal conceder benefícios fiscais ou financeiros de que resulte redução ou eliminação, direta ou indireta de tributo, não autorizado por convênio celebrado no âmbito do Confaz.
          O dispositivo citado tem sido utilizado para fundamentar medida similar à adotada pelo outro Estado, ou seja, a concessão de benefício fiscal não autorizado por convênio.
          Contudo, a aplicação do art. 43 depende de demonstração do prejuízo para a economia catarinense, devida à medida adotada pelo outro Estado.
          Além disso, a medida para a proteção da economia catarinense, a que se refere o dispositivo, não significa necessariamente concessão de benefício fiscal não autorizado por convênio. A celebração de convênio é condição necessária para a concessão de benefício fiscal que não pode ser suprida pela legislação interna do Estado e que não admite exceções.
          A inconstitucionalidade cometida por um Estado-membro não justifica nem valida idêntica inconstitucionalidade cometida por outro.

quarta-feira, 13 de março de 2013


Distinção entre diferimento e substituição tributária “para trás”
Velocino Pacheco Filho
          Auditor Fiscal/SC
         
          O art. 6º da Lei Complementar 87/1996, que trata de normas gerais em matéria de ICMS, prevê a substituição tributária como modalidade de sujeição passiva.
          O substituto tributário distingue-se do contribuinte por não ter relação pessoal e direta com a situação descrita em lei como fato gerador da respectiva obrigação. Também se distingue do responsável tributário porque a obrigação tributária já nasce originalmente em relação ao substituto, com exclusão da responsabilidade do substituído.
          O § 1º do mesmo artigo dispõe que a substituição tributária pode se dar em relação a operações ou prestações antecedentes (ou para trás), subseqüentes (ou para frente) ou concomitantes (ocorrem ao mesmo tempo). Conforme dispõe o § 2º, a substituição tributária somente pode ser instituída por lei – a definição do sujeito passivo é elemento essencial da obrigação tributária e, portanto, está sob reserva absoluta da lei. Já no caso do contribuinte substituto estar estabelecido em outro Estado, a substituição tributária depende de celebração de convênio entre os Estados interessados, para dar efeito extraterritorial à legislação do Estado ao qual é devido o imposto por substituição tributária (CTN, art. 102).
          O diferimento, por sua vez, consiste no adiamento ou postergação do pagamento para fase subseqüente da comercialização da mercadoria. Ordinariamente, o diferimento implica a atribuição da responsabilidade pelo pagamento do imposto ao destinatário da mercadoria, o que caracteriza a substituição tributária (obrigação própria relativa a fato gerador alheio). O destinatário, ao revender a mercadoria, recolhe o imposto relativo à operação realizada por ele e, por responsabilidade, o imposto relativo á operação praticada pelo fornecedor (diferida). Isto ocorre porque não houve recolhimento do ICMS na operação anterior e, portanto, não haverá crédito para compensar na operação subseqüente.
          Mas, nem sempre o diferimento implica substituição tributária. Basta que o sujeito passivo seja o mesmo na operação antecedente e na subseqüente (não há contribuinte substituto que recolha o imposto relativo ao fato gerador praticado pelo substituído). É o caso do diferimento do imposto devido no desembaraço aduaneiro de mercadoria importada. O imposto é diferido para a operação subseqüente de revenda no mercado interno, hipótese em que a mesma pessoa (o importador) ocupa a posição de sujeito passivo tributário. Nesse caso, há diferimento, mas não há substituição tributária. O diferimento não passa, nesse caso, de mera ampliação do prazo de recolhimento.
          Assim, deve-se evitar afirmar de modo simplista que o diferimento é modalidade de substituição tributária. De fato, na maioria dos casos de diferimento estaremos lidando com substituição tributária, mas nem sempre. Ao menos no caso da importação o diferimento não é um caso de substituição tributária.
          O diferimento, considerado em si mesmo, é uma postergação do pagamento do imposto, ou seja, está relacionado com prazo de pagamento. Não há dispensa ou redução do valor a recolher. “Do diferimento não resulta eliminação ou redução do ICM; o recolhimento do tributo e que fica transferido para momento subseqüente” (STF, RE 112.354-6). Por isso mesmo, o diferimento pode ser instituído por decreto ou regulamento, não sendo exigida lei para sua instituição nem autorização por convênio celebrado entre os Estados, na forma da LC 24/75. Também, por não se tratar de isenção ou não-incidência, não há que se falar em anulação do crédito relativo às operações anteriores, conforme art. 155, § 2º, II, “b” da Constituição Federal.

quarta-feira, 6 de março de 2013


Reflexão sobre a não-cumulatividade do ICMS
          Velocino Pacheco Filho
          Auditor Fiscal/SC
          O ICMS tem por fato gerador operações relativas à circulação de mercadorias e a prestação de serviços de transporte e comunicação (CF, art. 155, II). Mas, ele é não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação ou prestação com o montante cobrado nas anteriores (§ 2º, I). O assim chamado “crédito” do ICMS, portanto, não passa do imposto que onerou a mercadoria em etapas anteriores de circulação. Feita a compensação, o contribuinte recolhe aos cofres públicos a diferença entre o que é devido pelas suas operações próprias e o “crédito”, considerado determinado período de tempo (apuração do imposto).
          Então, o “crédito” tem uma vocação específica, qual seja, compensar o imposto devido. Se os créditos forem maiores que os débitos, o saldo é transferido para o período seguinte. Disso podemos inferir que na falta de “débito”, não há que se falar em “crédito”. É o que determina o inciso II, “b” do já referido § 2º do art. 155 da CF: “a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”. Nesse caso, a determinação em contrário da legislação (i. e. a manutenção do “crédito”) representa um benefício ou favor fiscal (salvo em relação às exportações, que obedece a outro critério – a desoneração das mercadorias exportadas).
          Até aqui, as disposições são perfeitamente razoáveis e baseadas no bom senso. Mas não podemos dizer o mesmo do disposto no inciso II, “a” do mesmo parágrafo: “a isenção ou não incidência ... não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes”. Trata-se de disposição introduzida pela Emenda Constitucional 23, de 1983 (Emenda Passos Porto) que deu nova redação ao art. 23, II, da Constituição de 1969, dispositivo preservado pela Constituição de 1988.
          Esse dispositivo é o responsável por tornar o ICMS cumulativo sempre que ocorrer uma isenção no meio do ciclo de comercialização, já que o imposto dispensado será recuperado mais adiante. Desse modo, o que era para ser um benefício fiscal, resulta em aumento da arrecadação.
          Observe-se que a Constituição, ao tratar do IPI, também imposto não-cumulativo, no art. 153, § 3º, não contempla dispositivo semelhante. A Emenda Passos Porto foi conseqüência da pressão dos Estados.
          Um exercício numérico simples servirá para ilustrar o problema:       suponhamos um ciclo de comercialização com apenas três componentes. Para facilitar as contas, vamos supor uma alíquota uniforme de 8%.
          Vejamos primeiro a tributação normal, sem isenção.
Contribuinte
Valor da operação
Imposto debitado
Crédito
Imposto a recolher
A
1000,00
80,00
- 0 -
80,00
B
1200,00
96,00
80,00
16,00
C
1500,00
120,00
96,00
24,00
          O total recolhido ao Erário, nesse caso, teria sido de 120,00 (igual a aplicação da alíquota sobre a última operação).
          Vamos supor agora que a operação de B para C é isenta. Então, calculando de acordo com o inciso II do § 2º, temos:
Contribuinte
Valor da operação
Imposto debitado
Crédito
Imposto a recolher
A
1000,00
80,00
- 0 -
80,00
B
1200,00
0,00
- 0 -
0,00
C
1500,00
120,00
- 0 -
120,00
          O total recolhido ao Erário não corresponde mais a aplicação da alíquota sobre a última operação. O valor recebido pelo Estado passa a ser de 200,00.
          Vamos agora supor também que a operação de B para C é isenta, mas vamos ignorar a regra da alínea “a” do inciso II.
Contribuinte
Valor da operação
Imposto debitado
Crédito
Imposto a recolher
A
1000,00
80,00
- 0 -
80,00
B
1200,00
0,00
- 0 -
0,00
C
1500,00
120,00
96,00
24,00
          O total recolhido ao Erário nesse caso é de 104,00. A perda de arrecadação (de 120,00 para 104,00) corresponde exatamente ao valor da renúncia fiscal, devida à isenção (16,00).
            Assim, o que distorce o mecanismo da não-cumulatividade é exatamente a regra contida no art. 155, § 2º, II, “a” da Constituição Federal. A isenção, nesse caso, deixa de ser isenção, pois a receita aparentemente renunciada pelo Erário é por ele recuperada na operação subseqüente. A isenção passa a equivaler ao diferimento do pagamento do tributo ou, como diz Sacha Calmon Navarro Coelho, “o diferimento do pagamento do imposto mais não seria que o efeito da isenção tópica ou da alíquota zero quando atuantes sobre uma operação apenas da cadeia de circulação”.