DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

TRIBUTO DECLARADO E NÃO RECOLHIDO - MULTA DO ART. 51, I, DA LEI N° 10.297/96 - NATUREZA CONFISCATÓRIA


FABIANO RAMALHO

 
Vamos imaginar a hipótese em que o contribuinte tenha apurado corretamente o tributo devido e declarado em DIME, na forma prescrita em Lei, deixando, apenas, de recolhe-lo no tempo devido, motivado, por exemplo, por dificuldades de caixa. Ou seja, não estamos falando de nenhuma situação de fraude ou ilícito tributário, pois esse contribuinte observou corretamente a legislação de regência para a constituição do crédito tributário.

Para esse caso, a legislação tributária do Estado de Santa Catarina prevê a aplicação da multa de 0,3% ao dia, até o limite de 25%, prevista no art. 53, da Lei 10.297/96, in verbis:
 
“Art. 53. Submeter tardiamente operação ou prestação tributável à incidência do imposto ou recolher o imposto apurado, pelo próprio contribuinte, ou o devido por estimativa fiscal, após o prazo previsto na legislação, antes de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização:
MULTA de 0,3% (três décimos por cento) ao dia, até o limite de 25% (vinte e cinco por cento).”

Assim, a ausência de pagamento do tributo, previamente declarado em DIME, atrai a incidência da referida multa, e possibilita ao Fisco, desde logo, inscrever o débito em dívida ativa, uma vez que constituído o crédito tributário pelo lançamento por homologação. Nenhum outro ato é necessário para que o Fisco constitua o crédito tributário, entendimento esse já pacificado na jurisprudência do STJ, como ilustra o seguinte aresto:

“RECURSO REPETITIVO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. SÓCIO. DCTF. GIA. CRÉDITO TRIBUTÁRIO. No recurso submetido ao regime do art. 543-C do CPC e art. 6º da Res. n. 8/2008-STJ, a Seção assentou que a simples falta de pagamento de tributo não acarreta, por si só, a responsabilidade subsidiária do sócio (art. 135 do CTN), se inexistir prova de ele ter agido com excesso de poderes em infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da sociedade empresarial. Outrossim, a apresentação da declaração de débitos e créditos tributários fiscais (DCTF), de guia de informação e apuração de ICMS (GIA), ou de outra declaração dessa natureza com previsão legal constitui o crédito tributário, não havendo necessidade de outra providência por parte do Fisco. Precedentes citados: EREsp 374.139-RS, DJ 28/2/2005; REsp 1.030.176-SP, DJe 17/11/2008; REsp 801.659-MG, DJ 20/4/2007; REsp 962.379-RS, DJe 28/10/2008; AgRg nos EREsp 332.322-SC, DJ 21/11/2005; AgRg nos EREsp 638.069-SC, DJ 13/6/2005;  REsp 510.802-SP, DJ 14/6/2004, e REsp 437.363-SP, DJ 19/4/2004. REsp 1.101.728-SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 11/3/2009 (veiculado no Informativo do STJ nº 0386, de 09-13/03/2009). (grifamos)
 
 
              Dada a natureza do tributo lançado por homologação, ainda que o contribuinte pague espontaneamente o débito em atraso, não há que se falar em redução da multa, que deverá ser exigida na forma do citado art. 53.

A interpretação a respeito da aplicação dessa penalidade parece simples e clara, não havendo margem para equívocos. No entanto, não é assim que a Administração Tributária Estadual vem agindo no caso concreto, pois vem se utilizado do Termo de Constituição do Crédito Tributário para lançar o crédito tributário em tais casos. Esse procedimento fiscal extraordinário acaba se sobrepondo ao lançamento por homologação, como uma forma bizarra de lançamento de ofício, fazendo incidir a partir daí a multa de 50% sobre o imposto devido, prevista pelo art. 51, I, da Lei n° 10.297/96, cuja redação é a seguinte:

“Art. 51. Deixar de recolher, total ou parcialmente, o imposto:
I – apurado pelo próprio sujeito passivo;
II – devido por responsabilidade ou por substituição tributária;
III – devido por estimativa fiscal:
MULTA de 50% (cinqüenta por cento) do valor do imposto.”

 Ora, já que é desnecessária a expedição do referido Termo, já que, nesse caso específico, o lançamento é feito por homologação, a aplicação da multa de 50% sobre o valor do tributo devido adquire a feição de mero meio coercitivo para obrigar o contribuinte ao recolhimento do crédito tributário em questão, sob a ameaça velada de majoração da multa (de 25% para 50%). Isso porque, expedida a notificação de Constituição do Crédito Tributário, é oferecida ao contribuinte uma redução de 50% no valor da multa, caso o pagamento seja efetuado dentro do prazo previsto para a defesa administrativa, como consta expressamente da referida notificação.

Tal prática fere o Código de Direitos e Deveres do Contribuinte de Santa Catarina, que prevê, em seu art. 11, que:

Art. 11. É vedada, para fins de cobrança extrajudicial de tributos, a adoção de meios coercitivos contra o contribuinte, tais como a interdição de estabelecimento, a proibição de transacionar com órgãos e entidades públicas e instituições oficiais de crédito, a imposição de sanções administrativas ou a instituição de barreiras fiscais.


Por outro lado, também fere a garantia trazida pelo art. 150, IV, da Constituição Federal, que proíbe o confisco em matéria tributária:

"Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;”

 A prática adotada pela Administração Tributária Estadual, ainda que vise arrecadar o tributo devido aos cofres públicos, não outra coisa caracteriza senão o puro confisco de bens do contribuinte, posto que atingirá de forma desproporcional aquele contribuinte que foi estritamente diligente no cumprimento de suas obrigações tributárias acessórias, e que deixou de recolher o tributo no seu vencimento devido a dificuldades econômicas.

Na prática, esse contribuinte será onerado com uma multa duas vezes maior do que a prevista para a situação hipotética, já que dificilmente poderá pagar o débito no prazo estabelecido pela Notificação Fiscal, não se beneficiando da redução da multa ofertada.

Não se pode admitir que o direito do Estado de fiscalizar o contribuinte perturbe o cidadão de bem, de tal modo a lhe tolher o livre exercício da atividade econômica. Esse direito à fiscalização e à arrecadação deve ser limitado pelos direitos individuais dos contribuintes, que têm sua matriz na Constituição Federal e é replicado na esfera Estadual pela LC 313/2005.

Além do mais, esse procedimento fiscal iguala o “bom” contribuinte, qual seja aquele que apurou corretamente e declarou todos os fatos geradores e as respectivas bases de cálculo em DIME, com o “mal” contribuinte, que, de alguma forma, sonegou informações com o intuito de desonerar-se ilicitamente do pagamento do tributo.

Nesse sentido, além dos dispositivos legal e constitucional acima elencados, as práticas adotadas pela Fazenda Estadual ferem também os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, já consagrados na Carta Magna e incorporados nos artigos 34 e 39 da Lei Complementar n° 313/2005 (Código de Direitos e Deveres do Contribuinte do Estado de Santa Catarina), que possui hierarquia superior à Lei n° 10.297/96, in verbis:

“Art. 34. A Administração Tributária, no desempenho de suas atribuições, pautará sua atuação de forma a gerar o menor ônus possível aos contribuintes, tanto no procedimento e no processo administrativo, como no processo judicial.
[...]
Art. 39. A Administração Tributária obedecerá, dentre outros, aos princípios da justiça, legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.”

 

Como se observa, sob diversos ângulos de análise, não há como justificar a adoção do procedimento fiscal de Constituição do Crédito Tributário para a hipótese em tela, sendo descabido o lançamento por ofício por ela operado. A multa aplicada por intermédio desse procedimento fiscal, majorada de 25% (art. 53) para 50% (art. 51, I), é arbitrária e inconstitucional, pois, na medida em que se reveste de mero instrumento de coerção para exigir o pagamento do tributo devido, caracteriza o confisco vedado pela Constituição Federal.

Sobre a utilização da multa como instrumento de coerção, o TRF da 4ª Região tem importante precedente, onde, julgando caso sobre Contribuição Previdenciária, assim decidiu:

“TRIBUTÁRIO. MULTA MORATÓRIA X MULTA DE OFÍCIO.. ART. 35 DA LEI 8.212/91. GRADUAÇÃO DA MULTA DE OFÍCIO CONFORME O TEMPO E A PRÁTICA DE ATOS ADMINISTRATIVOS. SOBREPOSIÇÃO AOS JUROS. RAZOABILIDADE. VEDAÇÃO DO CONFISCO. INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADA. Pode haver distinção entre o percentual de multa simplesmente moratória, quando o contribuinte não paga tempestivamente por falta de recursos mas o faz antes de qualquer atividade do Fisco contra ele, e de multa de ofício, quando o contribuinte oculta ou simplesmente não leva ao conhecimento do Fisco a ocorrência de fatos geradores ou o montante total das suas bases de cálculo, hipótese em que apenas a ação fiscal desenvolvida pela Fiscalização é que acaba por identificar a existência do débito e constitui o respectivo crédito por lançamento. A multa prevista no art. 35 para o caso de NFLD é de 24%. Daí para mais, há variações conforme a postura do contribuinte ou a prática de atos administrativos ao longo do tempo (tamanho da mora, pagamento integral ou parcelado, inscrição em dívida, ajuizamento da execução). Ocorre que, havendo débito, são os juros moratórios que restam previstos no art. 161 do CTN como compensação pela mora do contribuinte. Não se pode admitir que a multa acabe por assumir, também ela, uma função de compensação progressiva pela mora, em sobreposição aos juros que não se justifica. A variação da multa em função da mora ofende a razoabilidade no que diz com os critérios da adequação e da congruência. A multa deve ter relação com o ilícito cometido, qual seja, no caso, a falta de apuração e declaração, pelo próprio contribuinte, dos tributos devidos. Também o princípio da proibição do excesso, decorrente do próprio princípio do Estado de Direito, impede que se tenha multas demasiadamente altas, cumprindo, para as multas, o papel da vedação do confisco direcionada aos tributos. O STF tem admitido a censura constitucional de multas excessivas/confiscatórias, inclusive mediante invocação do art. 150, inciso IV, da CF. A multa do lançamento de ofício, no art. 35 da Lei 8.212/91, varia de 24% a 100% sem que nenhum novo ilícito tenha sido praticado, apenas pelo decurso de tempo em que o credor realiza atos tendentes à satisfação do seu crédito. Suscitado Incidente de Argüição de Inconstitucionalidade do art. 35, inciso II, alíneas “b” a “d”, e III, alíneas “a” a “d”, com a redação das Leis 90.528/97 e 9.876/99, por violação ao art. 150, IV, da CF e aos princípios constitucionais implícitos da razoabilidade e da proibição do excesso.”

Em conclusão, na ausência de qualquer ato do contribuinte que possa ser considerado ilegal ou fraudulento, posto que, no mais, esse contribuinte seguiu estritamente os critérios legais, apenas deixando de recolher o tributo no seu vencimento, não é lícito à Fazenda Estadual lançar de ofício o crédito tributário, valendo-se do procedimento fiscal de Constituição do Crédito Tributário, notificando esse mesmo contribuinte para o pagamento do tributo, sob a ameaça de aplicação da multa prevista no art. 51, I, da Lei n° 10.297/96.

Tal prática é censurável, na medida em que carece de razoabilidade e proporcionalidade, caracteriza o efeito do confisco, tão combatido em nosso ordenamento jurídico, bem como distancia-se do elevado senso de Justiça e equidade com os quais a Administração Tributária Estadual costuma pautar suas ações.

Portanto, sob a ótima de uma ética tributária que se harmonize com os princípios que regem a matéria, entendemos que o procedimento fiscal de expedição de Termo de Constituição do Crédito Tributário para os casos de tributo declarado e não recolhido não se reveste do melhor Direito, devendo ser afaastado, especialmente no que se refere à incidência da multa de 50%, prevista no art. 51, I, da Lei n° 10.297/96.

A Administração Tributária Estadual, enquanto braço estatal, deve, ao lado de sua função precípua de arredar os tributos devidos, deve ser um amplo garantidor da segurança jurídica e dos direitos dos contribuintes, nos termos da Lei, repelindo práticas abusivas de seus agentes e onerando o contribuinte na justa medida do seu crédito tributário.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Contradições teleológicas no direito tributário

Velocino Pacheco Filho

A arrecadação de tributos não é um fim em si mesmo, mas o meio que o Estado dispõe para atender às necessidades coletivas, financiando programas e políticas públicas. Não interessa arrecadar a qualquer custo, mas a arrecadação deve guardar coerência com os fins do Estado e com o ordenamento jurídico.

Para Karl Engisch, o ordenamento jurídico abriga contradições, entre as quais ele identifica o que chama de “contradições teleológicas”, quando o legislador adota determinados valores ou estabelece determinadas metas, mas cujo cumprimento resta inviabilizado pela legislação subsequente. Isso ocorre, por exemplo, no caso de legislação infraconstitucional que se opõe à realização de princípios, valores e metas expressos na Constituição.

É o caso do art. 170, IV, da Constituição, que adota a livre concorrência como um dos princípios que informam a ordem econômica. Livre concorrência implica a não intervenção do Estado no mercado ou nas condições de concorrência. Pelo contrário, o Estado deve zelar para que os agentes econômicos concorram em igualdade de condições. Assim, o art. 173 reserva a exploração da atividade econômica ao setor privado, admitindo a exploração direta pelo Estado, apenas quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. O § 2º desse artigo dispõe que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos ao setor privado. O § 4º, a seu turno, determina que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Ao Estado, nos termos do art. 174, fica reservado o papel de agente normativo e regulador, cabendo-lhe as funções de fiscalização incentivo e planejamento, sendo esta última apenas indicativa para o setor privado.

Na seara tributária, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, dispõe que o legislador complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.

Devemos distinguir a livre concorrência protegida pela Constituição daquela preconizada pelo liberalismo econômico, sem qualquer controle ou limitação. O mesmo art. 170, adota, com a mesma hierarquia da livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego, entre outras.

A forma de tributação (sobre o consumo) que melhor atende à livre concorrência, como princípio constitucional, é a plurifásica não cumulativa (o tributo incide em todas as fases do ciclo de comercialização da mercadoria, permitindo que o contribuinte recupere o imposto recolhido nas fases precedentes). Nessa forma de tributação, os agentes econômicos seriam indiferentes ao tributo, reagindo apenas ao mercado.

A tributação plurifásica não-cumulativa foi adotada, em nosso País, por influência do IVA europeu, no IPI e no ICMS, embora, o IPI seja concebido como tributo extrafiscal. Esse é precisamente o ponto. Em que medida, a Constituição brasileira de 1988 admite o uso extra-fiscal dos impostos não-cumulativos? A extra-fiscalidade implica a indução de determinado comportamento mediante o agravamento ou o abrandamento do tributo. Logo, o sucesso de uma política extra-fiscal representa uma interferência no sistema de preços e, por conseguinte, na livre concorrência. Os agentes econômicos não mais serão indiferentes à tributação. Assim, a extra-fiscalidade no caso de tributos sobre consumo deve ser justificada com base nos demais princípios constitucionais, como a proteção do consumidor, do meio ambiente, do pleno emprego etc.

Questão mais inquietante é o uso pelos Estados de isenções, incentivos e benefícios fiscais, relativamente ao ICMS, para atrair investimentos. A Lei Complementar 24/1975, com a sua mal compreendida exigência de unanimidade nas votações, seria um instrumento para coibir a chamada “guerra fiscal” entre os Estados, se fosse dotada de sanções realisticamente aplicáveis contra os Estados infratores. O resultado é a ineficácia do art. 170, IV, da Constituição da República. Livre concorrência, entre nós, tornou-se simples figura de retórica.

Finalmente, temos a curiosa figura da substituição tributária “para frente”, introduzida pelo Poder Constituinte Derivado (§ 7º do art. 150, acrescido pela EC 3/1993). Ao se substituir ao mercado, determinando a margem de valor adicionado e arbitrando preços de varejo, termina por frustrar os fins visados pelo Poder Constituinte Originário, de estabelecer uma economia de mercado, com base no princípio da livre concorrência.