DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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segunda-feira, 9 de maio de 2016

O diferimento, as limitações dos decretos em matéria tributária e a indisponibilidade do crédito tributário

Velocino Pacheco Filho
Conforme Sacha Calmon Navarro Coelho (Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 199), “ocorre diferimento do imposto quando o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria – estamos falando de ICMS – é transferido para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro”.
Por sua vez, a Primeira Turma do STF, no julgamento do RE 112.354-6 (DJ 14-2-92, p. 1167) distinguiu o diferimento da isenção nos seguintes termos: “do diferimento não resulta eliminação ou redução do ICM; o recolhimento do tributo é que fica transferido para momento subsequente”.
Ora, no mesmo sentido, o art. 1º do Anexo 3 do Regulamento do ICMS de Santa Catarina dispõe que “nas operações abrangidas por diferimento, fica atribuído ao destinatário da mercadoria a responsabilidade pelo recolhimento do imposto na condição de substituto tributário”.
Conforme o § 1º desse artigo, “o imposto devido por substituição tributária subsumir-se-á na operação tributada subseqüente promovida pelo substituto”. Contudo, dispõe o § 2º, o destinatário deverá recolher o imposto diferido, entre outras hipóteses, (i) quando não promover nova operação tributada; (ii) a promover sob regime de isenção ou não-incidência; ou (iii) se ocorrer qualquer evento que impossibilite a ocorrência do fato gerador do imposto. O imposto diferido, entretanto, deverá ser recolhido proporcionalmente à parcela não-tributada, no caso de operação subsequente beneficiada por redução da base de cálculo do imposto.
Somente não será devido o recolhimento do imposto diferido (i) no caso de operações que destinem mercadorias diretamente para o exterior do país; ou (ii) nas operações beneficiadas por isenção ou redução de base de cálculo, com expressa manutenção de créditos.
A lógica dessa regra é exatamente o direito a não estornar o crédito nessas hipóteses. O imposto diferido gera um direito de crédito, apesar da operação subsequente não estar sujeita à incidência do imposto, por expressa disposição legal (exceção à regra do inciso II, b, do § 2º do art. 155 da CF).
Então, o diferimento do imposto não representa sua dispensa. Pelo contrário, o imposto diferido subsume-se na operação tributada subsequente. Mas, se a operação não for tributada, o destinatário deve recolher o imposto que foi diferido.
Suponhamos agora que o imposto devido na operação subsequente seja inferior ao que foi diferido. Ainda podemos dizer que, nesse caso, o imposto diferido subsumiu-se na operação tributada subsequente?
Conforme Dicionário Aurélio, “subsumir” vem de sub- + lat. sumere (tomar, colher, aceitar) e tem os seguintes significados: Conceber (um indivíduo) como compreendido numa espécie. 2. Conceber (uma espécie) como compreendida em um gênero. 3. Considerar (um fato) como aplicação de uma lei. Como “subsumir” é empregado, no nosso caso, como elemento integrante da própria norma, podemos, de plano, afastar o terceiro significado. Dos outros dois, podemos extrair que “subsumir” refere-se à operação de absorção (ou compreensão) da parte no todo ou do menor pelo maior.
Em síntese, se o imposto devido na operação subsequente for inferior ao imposto diferido, a subsunção ocorre apenas parcialmente. Como, conforme acórdão colacionado do Supremo Tribunal Federal, do diferimento não resulta eliminação ou redução do imposto, infere-se que a parcela do imposto diferido que não se subsumiu na operação subsequente deve ser recolhida.  
Pois bem, o Decreto 909, de 2 de abril de 2012, acresceu o § 6º ao art. 1 º do Anexo 3 do RICMS-SC, dispensando “o recolhimento do imposto diferido por ocasião da entrada de matéria-prima e insumos industriais, quando empregados na fabricação de produto cuja saída seja beneficiada por crédito presumido em substituição aos créditos efetivos”.
A não-cumulatividade do ICMS, conforme art. 155, § 2º, I, da Constituição da República, consiste na compensação do imposto devido com o que foi cobrado (crédito) nas etapas anteriores de comercialização pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Chegamos assim ao conceito de imposto apurado como o resultado da diferença entre o débito e o crédito em cada período de apuração.
O crédito presumido é um valor determinado em lei, de acordo com critérios previamente definidos, que também vai compensar o imposto devido (débito). Pode ser benefício fiscal – caso em que alguns Estados chamam de crédito outorgado – ou uma forma simplificada de apuração. A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no AgRg no RE 551.155, relator Min. Joaquim Barbosa (RDDT 202: 223, 2012) fez a seguinte apreciação sobre a matéria:
2. Situação peculiar. Regime alternativo e opcional para apuração do tributo. Concessão de benefício condicionada ao não registro de créditos. Pretensão voltada à permanência do benefício, cumulado ao direito de registro de créditos proporcionais ao valor cobrado. Impossibilidade. Tratando-se de regime alternativo e facultativo de apuração do valor devido, não é possível manter o benefício sem a contrapartida esperada pelas autoridades fiscais, sob pena de extensão indevida do incentivo.
Mais uma vez, estamos diante de norma supostamente simplificadora: o § 6º do art. 1º do Anexo 3  dispensa o recolhimento do imposto diferido por ocasião da entrada de matéria-prima e insumos industriais, quando empregados na fabricação de produto cuja saída seja beneficiada por crédito presumido em substituição aos créditos efetivos. 
A primeira dúvida sobre a sua aplicação é a quais créditos efetivos se refere: Será o imposto diferido? Pela regra do § 4º desse artigo, “é vedado o destaque do imposto em documento fiscal correspondente à operação abrangida por diferimento”. Ademais, a regra dispensa o recolhimento do imposto diferido. Em que situação? Se a operação de saída do produto industrializado for tributada, o imposto diferido subsume-se no imposto devido pela saída. Então, o que fica dispensado?
Mas, pelo contrário, se a saída não for tributada – hipótese em que o imposto diferido deveria ser recolhido – o crédito presumido estaria compensando qual imposto? 
Por outro lado, se a intenção do legislador era dispensar, de alguma forma, a tributação, estaremos diante de benefício fiscal concedido sem a necessária autorização por convênio, celebrado pelo Confaz, conforme rito previsto na Lei Complementar 24/1975. A dispensa de recolhimento faz o diferimento transmudar-se em isenção.
Ora, decreto não é o veículo adequado para dispensar o recolhimento de tributo, matéria sob reserva absoluta de lei.  O inciso III do art. 71 da Constituição do Estado de Santa Catarina (disposição semelhante ao do inciso IV do art. 84 da Constituição Federal) restringe o papel dos decretos e regulamentos à fiel execução das leis.
Nesse sentido, a Primeira Turma do STJ, no R em MS 21.942 MS (RDDT 189: 225, 2011), decidiu que “4. ... a validade dos atos normativos secundários (entre os quais figura o decreto regulamentador) pressupõe a estrita observância dos limites impostos pelos atos normativos primários a que se subordinam (leis, tratados, convenções internacionais etc.)”.
Como atos do Poder Executivo, os decretos e regulamentos estão limitados em sua abrangência às leis que regulamentam. Em matéria tributária, explica-se a restrição porque o crédito tributário é indisponível: segundo magistério de Diógenes Gasparini (Direito Administrativo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 17-18):
Não se acham, segundo esse princípio, os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. Aqueles e este não são seus senhores ou donos, cabendo-lhes por isso tão-só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa finalidade é o Estado.
Concluindo, a dispensa de recolhimento do imposto diferido – quando este não se subsume completamente na operação subsequente – caracteriza, de fato, uma isenção que somente pode ser instituída por lei (não por decreto) e, no caso do ICMS, mediante prévia autorização pelo Confaz. 
Uma última indagação: semelhante decreto caracterizaria crime de responsabilidade, dada a natureza indisponível do crédito tributário?