DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A denúncia espontânea da infração e seus efeitos

Velocino Pacheco Filho
      O art. 138 do Código Tributário Nacional exclui a responsabilidade pela infração, no caso do infrator a denunciar espontaneamente, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos respectivos juros de mora. Mas, a denúncia espontânea, esclarece o parágrafo único, somente poderá ser aceita antes do início de qualquer procedimento fiscal relacionado com a infração.

     Ensinava o Min. Luiz Fux, quando ainda no STJ, que a denúncia espontânea configura arrependimento fiscal, “porquanto o agente infrator, desistindo do proveito econômico que a infração poderia carrear-lhe, adverte a mesma à entidade fazendária, sem que ela tenha iniciado qualquer procedimento para a apuração desses fundos líquidos” (AgRg no AgIn 692.219 SC).

     “O objetivo da norma”, leciona Leandro Paulsen, “é estimular o contribuinte infrator a colocar-se em situação de regularidade, resgatando as pendências deixadas e ainda desconhecidas por parte do Fisco, com o que este recebe o que lhe deveria ter sido pago e cuja satisfação, não fosse a iniciativa do contribuinte, talvez jamais ocorresse”.

     O efeito por excelência da denúncia espontânea é afastar a punibilidade. A esse propósito, a lei não distingue entre multa moratória e punitiva, afastando a imposição de ambas.

     Entretanto, a denúncia espontânea somente se aperfeiçoa com o pagamento do tributo devido e dos juros de mora. A referência a “se for o caso” do art. 138, justifica-se porque no caso das infrações acessórias não há tributo a ser reclamado.

     Os juros de mora são devidos a partir da impontualidade no pagamento - momento em que o sujeito passivo se constitui em mora. Devemos ainda acrescentar a correção monetária, que recompõe o poder aquisitivo da moeda. A cobrança da Selic supre ambos os acréscimos, já que compreende tanto taxa de juros quanto correção monetária.

     A denúncia espontânea somente pode ser aceita e, portanto, reconhecidos os seus efeitos, quando acompanhada do pagamento do valor integral do crédito denunciado. Assim, a denúncia não surte efeito se vier acompanhada de pedido de parcelamento, mesmo se acompanhada do pagamento, no ato, da primeira parcela. Este já era o entendimento do antigo Tribunal Federal de Recursos, conforme Súmula 208 daquele sodalício: “A simples confissão da dívida, acompanhada do seu pedido de parcelamento, não configura denúncia espontânea”. No mesmo sentido tem decidido o Superior Tribunal de Justiça.

     Conforme dispõe o parágrafo único do art. 138, a denúncia espontânea somente afasta a exigibilidade da multa se for anterior a qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração. Por conseguinte, o início de uma fiscalização geral não impede a espontaneidade da denúncia. O procedimento administrativo deve ser relacionado com a infração. Já ensinava Aliomar Baleeiro que “a contrario sensu, prevalece a exoneração se houver procedimento ou medida no processo sem conexão com a infração: benigna amplianda.”

     Nos impostos sujeitos a lançamento por homologação (CTN, art. 150), em que cabe ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, somente cabe denúncia espontânea em relação ao imposto não submetido voluntariamente e tempestivamente à tributação. Não se considera espontâneo o recolhimento a destempo de imposto declarado às autoridades fazendárias. Nessa hipótese, o imposto declarado e não recolhido poderá ser inscrito em dívida ativa, nos termos do art. 62, § 1°, da Lei catarinense 5.983/81.

     Em síntese, a denúncia espontânea afasta a punibilidade, tornando indevida a exigência de multa, moratória ou punitiva. Mas, para ser considerada denúncia espontânea, deve ser acompanhada (i) do pagamento integral do tributo denunciado e (ii) dos juros de mora e da correção monetária correspondentes.
    

     Contudo, não será considerada denúncia espontânea (i) se for acompanhada de pedido de parcelamento do crédito tributário denunciado, (ii) se for posterior ao início de procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionada à infração e (iii) no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, o imposto denunciado tiver sido declarado pelo próprio contribuinte.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A incompletude do sistema tributário e o emprego da analogia

Velocino Pacheco Filho

                Consiste a analogia na aplicação de uma norma a situação diversa, porém semelhante, daquela que ela se refere.

Norberto Bobbio conceitua completude como “a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente ‘lacuna’ (num dos sentidos do termo ‘lacuna’), ‘completude’ significa ‘falta de lacunas’. Em outras palavras, um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema”.
            
             Mas, para o emprego da analogia, é preciso que haja uma lacuna, ou seja, uma incompletude, no ordenamento jurídico. Isto por que presume-se a completude do ordenamento. Já ensinava Kelsen (Teoria Pura ...) que se o direito vigente não é aplicável a um caso concreto, o tribunal, para decidir o caso, precisa colmatar a lacuna pela criação de norma jurídica correspondente. Isto é, se não é possível a aplicação de norma jurídica singular, sempre é possível aplicar a ordem jurídica e, acrescenta esse autor, isso também é aplicação do direito.

             Segundo Miguel Reale (Filosofia do Direito), é o ordenamento jurídico no seu todo que é pleno. Assim, nenhum juiz pode deixar de proferir sentença sob o pretexto de lacuna ou obscuridade da lei (CPC, art. 126). O próprio ordenamento (LICC, art. 49) autoriza o juiz, no caso da lei ser omissa, a decidir pelo emprego da analogia, dos costumes ou dos princípios gerais de direito (integração do sistema legal).

             “Uma regra jurídica não pode nem deve ser tomada de per si, como se fosse uma proposição lógica em si mesma inteiramente válida e conclusa, pois o seu significado e a sua eficácia dependem de sua funcionalidade e de sua correlação com as demais normas do sistema, assim como do conjunto de princípios que a informam”.

             Marco Aurélio Greco fala em “momentos de incompletude” na relação entre norma e fato, mas que o próprio ordenamento, “porque não pode conviver com fatos não previstos”, tende à completude. Se o ordenamento não é completo, com certeza é completável.

             O mesmo autor alerta que a lacuna não se confunde com o silencia eloquente da lei que é uma previsão, mediante uma não previsão. “O legislador ao não editar a norma específica prevê que não está incluído”.

             “O que a lei quis, disse; o que não quis, guardou silêncio”.

             Em suma, não devemos sair aplicando analogia sempre que não encontrarmos solução para um caso nos textos legais; é preciso que fique caracterizada a existência da lacuna.

             Conclui Bobbio que a completude é uma condição necessária, nos ordenamentos em que (i) o juiz é obrigado a julgar todas as controvérsias que se apresentem ao seu exame, (ii) deve julgá-las aplicando uma norma pertencente ao sistema. Aqui entra o emprego da analogia.

             Se não houver no ordenamento uma norma que se refira ao caso em questão, deve ser procurada uma norma que se refira a caso semelhante.  A palavra chave agora é “semelhança”. Entre o caso regrado e o caso não regrado deve haver uma semelhança que seja reconhecida como essencial, “aquela da qual dependem todas as consequências merecedoras de apreço na questão discutida”, lecionava Carlos Maximiliano. “É a causa principal de todos os efeitos”.

             Conforme Limongi França, para a analogia ser aplicada, (i) o caso deve ser absolutamente não previsto em lei, (ii) deve existir ao menos um elemento de identidade entre o caso previsto e aquele não previsto, e (iii) a identidade entre os dois casos deve atender ao elemento em vista do qual o legislador formulou a regra que disciplina o caso previsto, constituindo-lhe a ratio legis”.

             Em matéria tributária (CTN, art. 108, § 1º), o emprego da analogia não pode resultar em exigência de tributo não previsto em lei. Isto por que a instituição de tributos não está apenas sujeita ao princípio da legalidade, mas está sob reserva absoluta de lei. Se a competência para institui tributos não pode ser delegada ao Executivo, muito menos pode ser instituído pelo emprego da analogia.


                Assim, juristas de plantão, antes de propor resolver um caso pelo recurso à analogia, verifiquem (i) se a falta de regramento no caso específico constitui, de fato, uma lacuna; (ii) se entre o fato regrado e o não regrado existe uma semelhança essencial, da qual decorrem todas as consequências relevantes, e que constitui sua ratio legis; e (iii) se do emprego da analogia não resulta exigência de tributo não previsto em lei.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O ITCMD pode ser progressivo?

Velocino Pacheco Filho

          Dispõe o § 1º do art. 145 da Constituição da República que “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. Ou seja, nem sempre os impostos têm caráter pessoal ou podem ser graduados segundo a capacidade econômica. Mas, uma vez sendo possível, é obrigatória a graduação pelo critério da capacidade econômica.

          Ora, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal, os impostos pessoais distinguem-se dos impostos reais porque nestes últimos não caberia a adoção de alíquotas progressivas. Assim, somente os impostos pessoais – que levam em conta as características pessoais do contribuinte – poderiam ser progressivos, pois, somente nessa hipótese poderia ser aferida a capacidade econômica. Nesse sentido, foi editada a Súmula 589/STF: “É inconstitucional a fixação de adicional progressivo do Imposto Predial e Territorial Urbano em função do número de imóveis do contribuinte”.

          No entanto, nada impede que, mesmo no caso dos impostos reais, a incidência seja graduada segundo critérios pessoais. É o que acontece, por exemplo, quando se isenta o único imóvel de uma família e que lhe serve de residência.

          A progressividade, no caso do IPTU, acabou por ser expressamente permitida pela Emenda Constitucional 29/2000 (CF, art. 156, § 1º, I): sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, II, o imposto poderá “ser progressivo em razão do valor do imóvel”. Admitida a progressividade em relação ao IPTU, abre-se o caminho para o seu reconhecimento em relação a outros impostos reais.

          À mudança do texto constitucional seguiu-se a mudança de entendimento jurisprudencial, ocorrida com o julgamento, pelo Pleno do STF, do Recurso Extraordinário 562.045 RS, relatora para o acórdão a Min. Carmen Lúcia. A Ementa tem o seguinte teor:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL: PROGRESSIVIDADE DE ALÍQUOTA DE IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS E DOAÇÃO DE BENS E DIREITOS. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 145, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DA IGUALDADE MATERIAL TRIBUTÁRIA. OBSERVÂNCIA DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO.

          O Min. Eros Grau, em seu voto, distingue na dicção do § 1º do art. 145 duas sentenças: (i) os impostos terem caráter pessoal e (ii) todos eles serem graduados, sempre que possível, segundo a capacidade econômica. A Constituição “determina como devem ser os impostos, todos eles. Não somente como devem ser alguns deles. Não apenas como devem ser os impostos dotados de caráter pessoal. Isso é nítido. Nítido como a luz solar passando através de um cristal, bem polido”.

          Não podemos perder de vista o fim último do Estado que é a realização do bem comum, cujo conteúdo devemos pesquisar na estrutura axiológica da Constituição. Assim, o art. 3º da Carta trata dos objetivos fundamentais da República, entre os quais está a redução das desigualdades sociais. Ora, a progressividade da tributação sobre as heranças é medida absolutamente necessária para a realização desse objetivo. Afinal, esse é o mecanismo pelo qual se perpetua a estratificação social. A herança é um patrimônio que o herdeiro recebe sem ter contribuído para a sua formação. Se queremos reduzir as desigualdades, nada mais justo que a tributação progressiva das heranças.

          Esse aspecto foi salientado pelo Min. Ayres Brito em seu voto quando diz que “é no âmbito de tal sistema constitucional-tributário que avulta o princípio da igualdade como fórmula ou critério da mais justa participação dos contribuintes no aporte dos recursos financeiros que o Estado precisa para se manter enquanto máquina administrativa e para combater as mais temerárias assimetrias sociais e regionais, em demanda do desenvolvimento equilibrado do País e do bem estar da nossa população”.

          Mais recentemente, a Primeira Turma do STF, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 542.485, em que foi relator o Min. Marco Aurélio, tomando como paradigma o acórdão acima citado, decidiu que “no entendimento majoritário do Supremo, surge compatível com a Carta da República a progressividade das alíquotas do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação”.

            A progressividade do ITCMD vem ao encontro de princípios constitucionais como o da capacidade contributiva – tida por Klaus Tipke como critério de moralidade tributária – e o da igualdade que veda a instituição de “tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente” (CF, art. 150, II). A alíquota única, que representa maior gravame para quem herda pouco e menor gravame para quem herda muito, institui um regime iníquo de desigualdade na incidência do tributo.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Momento da incidência do imposto sobre heranças

Velocino Pacheco Filho
             Conforme disposto no art. 35 do Código Tributário Nacional (CTN), o fato gerador do imposto sobre heranças é a transmissão a qualquer título da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis. Por sua vez, o art. 1784 do Código Civil define que aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

             A questão é saber em que momento ocorre o fato gerador do imposto. No momento da abertura da sucessão, com o falecimento? A determinação do momento é importante, pois constitui a referência para o marco inicial do prazo de decadência do direito da Fazenda Pública constituir o crédito tributário. Com efeito, dispõe o art. 173, I, do CTN que o direito da Fazenda extingue-se após cinco anos contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.

             O Superior Tribunal de Justiça – Agravo Regimental no Recurso Especial 577.899 PR – já se manifestou dizendo que “a circunstância de o fato gerador ser ou não do conhecimento da Administração Tributária não foi erigida como marco inicial do prazo decadencial”. Poderia suceder, então, que o direito da Fazenda caducasse sem que esta tivesse conhecimento da abertura da sucessão.

             É que o momento da transmissão não é esse. A transmissão da herança aos herdeiros no momento da abertura da sucessão (óbito) foi apenas o recurso utilizado pelo legislador para evitar a propriedade sem titular, ainda que por breve período de tempo.

             Assim, o art. 1.791 do Código Civil diz que a herança defere-se como um todo, ainda que vários sejam os herdeiros. Mas, seu parágrafo único ressalva que “até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quando à propriedade e posse da herança será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio”. Somente com a aceitação da herança, dispõe o art. 1.804, “torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão”.

             Eduardo de Oliveira Leite (Comentários ao Novo Código Civil, coordenado por Sálvio de Figueiredo Teixeira) esclarece que:

“Aberta a sucessão e instaurado o processo de inventário, os herdeiros passam a ser condôminos do espólio. A transitoriedade do inventário, que se encerra com a partilha, cria um período de indivisão patrimonial. Durante a fase do inventário cada herdeiro é apenas e tão somente titular de um direito indivisível, que não se pode exercer sobre nenhuma parte determinada do espólio. É a partilha que vem pôr termo a essa comunhão, determinando as cotas reais de cada proprietário”.

                Desse modo, o fato gerador do ITCMD não ocorre com a abertura da sucessão, mas com a partilha, quando os herdeiros efetivamente entram na posse do seu quinhão. A partilha individualiza os bens herdados por cada um, caracterizando a consumação da transmissão. Somente então o prazo de decadência passa a correr, a partir do primeiro dia do exercício seguinte.

                É o que conclui o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da lavra do Min. Herman Benjamin (AgRG no REsp 1.274.227 MS):

“Embora a herança seja transmitida, desde logo, com a abertura da sucessão (art. 1.784 do Código Civil), a exigibilidade do imposto sucessório fica na dependência da precisa identificação do patrimônio transferido e dos herdeiros ou legatários, para que sejam apurados os “tantos fatos geradores distintos” a que alude o citado parágrafo único do art. 35, sendo essa a lógica que inspirou a edição das Súmulas 112, 113 e 114 do STF”.

“O regime do ITCMD revela, portanto, que apenas com a prolação da sentença de homologação da partilha é possível identificar perfeitamente os aspectos material, pessoal e quantitativo da hipótese normativa, tornando possível a realização do lançamento”.