DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 30 de março de 2015

O ordenamento jurídico e os Teoremas de Gödel

Velocino Pacheco Filho

Desde a edição do Código Napoleônico, em 1804, que a aplicação do direito, seguindo o paradigma teórico das ciências em geral, tem sido entendida como um procedimento lógico-formal. Em face de um caso concreto, o aplicador do direito deve construir um silogismo em que a norma constitui a premissa maior, a descrição do fato concreto, a premissa menor e a decisão, a sua conclusão. Esse procedimento de aplicação mecânica do direito é conhecido como “subsunção” do fato à norma. O direito seria, portanto, construído a partir de normas vinculadas logicamente, de modo que haveria um encadeamento racional de normas, inferidas racionalmente desde a mais geral e abstrata até a mais individual e concreta que seria aplicada diretamente ao caso concreto. 

Desse modo, o ordenamento jurídico é concebido como um sistema lógico que tem por finalidade disciplinar as condutas humanas, no sentido de buscar a convivência harmoniosa entre os seres humanos e o estabelecimento da paz social.

Presume-se ainda que o ordenamento jurídico atenda aos pressupostos de completude e consistência. Entende-se por completude a propriedade do ordenamento de solucionar qualquer questão apresentada perante os órgãos judicantes: “dá-me o fato e te darei o direito”.  Por consistência, entende-se a propriedade do ordenamento de não conter contradições.

No entanto, Kurt Friedrich Gödel demonstra que é impossível definir um sistema de axiomas completo que seja simultaneamente consistente. Um sistema diz-se completo se dentro dele pudermos provar qualquer afirmação ou sua negação a partir de axiomas. Os axiomas são afirmações iniciais que se consideram evidentes e sem necessidade de provas. Ora, se o ordenamento jurídico é um sistema lógico, é de esperar que os teoremas de Gödel aplicam-se ao ordenamento jurídico.

Quando Gödel enunciou os teoremas da incompletude, provocou um impacto considerável sobre a logica e a ciência do seu tempo. Por exemplo, inviabilizou o programa proposto por David Hilbert de redução de toda matemática a um número limitado de axiomas consistentes, de modo que qualquer proposição pudesse ser demonstrada dentro desse sistema que seria, portanto, completo. Outra consequência, essa no campo da física teórica, foi a inviabilidade da formulação de uma Teoria de Tudo. Com efeito, os teoremas da incompletude de Gödel têm sido considerados como a maior realização do Século XX no campo da lógica. 

Uma matemática é dita consistente quando não tem contradições, ou, em outros termos, quando está livre de paradoxos. Contudo, para encontrar um sistema lógico que seja livre de paradoxos, é preciso enfrentar uma afirmação que não possa ser provada dentro do sistema. Um exemplo é o paradoxo do cretense (ou do mentiroso): Todo cretense é mentiroso, diz o cretense. Se o cretense está dizendo a verdade, não é verdadeiro que todo cretense é mentiroso. Por outro lado, se estiver mentindo, então nem todo cretense é mentiroso etc. Estamos supondo que a prova – ou a resolução do paradoxo – deve ser obtida a partir do próprio sistema. Quer dizer, não utilizar provas obtidas de fora do sistema. 

Aristóteles construiu a sua lógica partindo de três princípios: o da identidade, o da não contradição e o do terceiro excluído. O princípio do terceiro excluído diz que uma afirmação não pode ser simultaneamente verdadeira e falsa – ou que não pode ser ao mesmo tempo não falsa e não verdadeira. Os paradoxos decorrem de exceções ao princípio do terceiro excluído. Ou seja, haveria afirmações que pertencem ao sistema e que o sistema não tem condições de dizer se são falsas ou verdadeiras.

Temos então duas possibilidades: se admitirmos que o sistema contenha afirmações simultaneamente falsas e verdadeiras, mas não as que sejam não falsas e simultaneamente não verdadeiras (o sistema pode conter contradições), teremos uma lógica que pode ser chamada de “paraconsistente” (R.S. Kubrusky).  Pelo contrário, se o sistema contiver simultaneamente afirmações não falsas e não verdadeiras, mas não as que forem falsas e verdadeiras, estaremos diante de uma lógica “paracompleta”. Nesse caso, não haveria contradições, mas também o sistema não seria completo: haveria afirmações que não podem ser provadas a partir do sistema (indecidíveis).

No caso de uma lógica paracompleta, a presença de indecidíveis é inevitável. Em outras palavras, se queremos manter a consistência do sistema, teremos de conviver com os indecidíveis. Por outro lado, o sistema será completo apenas se estiver livre de indecidíveis: é possível provar ou refutar qualquer de suas afirmações. 

Então, se, no campo da matemática, não for possível desistir da consistência, deve-se estar preparado para conviver com os indecidíveis, pois a consistência exclui a completude. Já no campo do direito, o que é preferível, a inconsistência ou a incompletude? Trata-se de um problema de escolha: se a matemática não pode tolerar a inconsistência, o direito não pode tolerar o indecidível. 

Se o ordenamento jurídico é um sistema lógico, é de supor que está sujeito aos teoremas de Gödel. Então, deve-se optar entre eliminar ou a incompletude ou a inconsistência do sistema, já que não pode ser simultaneamente completo e consistente. Se admitirmos a existência de afirmações verdadeiras que não podem ser demonstradas a partir de elementos do sistema – a demonstração dependeria de elementos externos ao sistema – então também não é possível  um direito “puro”, como pretendido por Kelsem. 

Uma dificuldade a ser enfrentada é que o direito não trabalha com axiomas, mas com dogmas. A propósito, qual a diferença entre axiomas, postulados e dogmas? Um dogma é uma proposição que deve ser aceita sem contestação, constituindo os fundamentos de uma doutrina ou de um sistema. Fala-se em dogmática jurídica porque não cabe discussão sobre as normas e regras que compõe o ordenamento jurídico. Elas devem ser simplesmente aceitas porque foram produzidas conforme o próprio ordenamento. A dogmática constitui o método próprio de atuar dos juristas, baseada em premissas que decorrem de experiências concretas, ocorridas em momento pretérito, ou de valores fundamentais não sujeitos à discussão. O pensar dogmático confere segurança à aplicação do direito.

Um axioma, por sua vez, é uma proposição aceita consensualmente, sem comprovação, e que serve de fundamento para uma teoria construída logicamente. Por constituírem os fundamentos da teoria, os axiomas são indemonstráveis. Já os postulados também são indemonstráveis, mas, ao contrário dos axiomas, possuem plausibilidade empírica, sendo verificáveis experimentalmente. As demais proposições (teoremas) que constituem a teoria são inferidas a partir dos axiomas e postulados.

Vamos admitir que, por serem indemonstráveis, dogmas, axiomas e postulados exercem o mesmo papel na fundamentação de sistemas lógicos. Por outro lado, há alguma aproximação entre dogmas e postulados, na medida que ambos apresentam plausibilidade empírica. A completude do ordenamento jurídico decorre de condições pragmáticas de aplicação do direito.

Outra peculiaridade que deve ser lavada em conta é que a lógica jurídica combina proposições deônticas (dever ser) com proposições categóricas, descritivas da realidade. Ressalte-se que apenas no primeiro caso são possíveis os juízos sintéticos a priori.

Por fim, não podemos olvidar o trabalho de Claus-Wilhelm Canaris para quem o ordenamento jurídico não pode ser reduzido a um sistema meramente lógico-formal (concepção restrita) o que, por consequência conduz á recusa do ordenamento como sistema axiomático-dedutivo. Em outras palavras, o conceito positivista de ciência não se aplica corretamente ao direito. Pelo contrário, sem deixar de ser, por ser derivado da ideia de justiça, o ordenamento deve ser um sitema axiológico e teleológico. Diz esse autor que “o sistema deve fazer claramente a adequação valorativa e a unidade interior do direito”. 

O sistema jurídico, como concebido por Canaris, estaria ainda sujeito aos teoremas de Gödel? Vamos presumir que sim.

Superado esse ponto, passemos à questão da completude. Porque, no direito, devemos escolher a completude e não a consistência? Porque o direito, entre outras finalidades, objetiva a solução pacífica dos conflitos e a promoção da paz social. Para isso, os órgãos judicantes não podem omitir-se de dar solução para as questões a eles submetidas. O aplicador do direito, ao se defrontar com o caso concreto, deve encontrar uma solução no ordenamento jurídico. Ora, não é realista esperar que o ordenamento tenha uma regra para todas as situações concretas possíveis. O legislador não teria semelhante capacidade de previsão. Contudo, o cidadão, ao invocar a tutela jurisdicional do Estado, espera por uma solução. O aplicador do direito não pode alegar que não existe regra no ordenamento para aquela situação concreta (non liquet).

Se o aplicador do direito não pode omitir-se e necessariamente deve encontrar uma solução para o caso concreto (jura novit curia), então devemos forçosamente admitir a completude do ordenamento. Caso não exista uma regra expressa para o caso concreto, o aplicador do direito deve extrair do ordenamento a regra necessária. Assim, a completude deve ser entendida, não como o ordenamento ter uma regra expressa para todos os casos, mas como a possibilidade do ordenamento ser completado pelo aplicador da lei. Se não é completo em ato, é completo em potência. Esse o sentido do antigo aforisma, “dá-me o fato e te darei o direito”.

O aplicador do direito, não encontrando regra expressa aplicável ao caso, deve buscar a regra, mediante o uso de técnicas de integração do direito posto. Contudo, nem sempre a inexistência de regra expressa significa que não há regra. A omissão do legislador pode significar uma regra: “o que a lei quis disse, o que não quis, guardou silêncio”. Portanto, somente se integra o direito, se houver uma lacuna que, conforme Karl Engish, consiste em uma incompletude insatisfatória do ordenamento. Ou seja, quando a falta de regra expressa impossibilitaria dar solução para o caso concreto. Na falta de regra expressa, o aplicador da lei deve procurar no ordenamento regra que trate de situação semelhante (analogia). Por semelhante entende-se a semelhança significativa que constitui a razão de ser da regra (ratio legis). Não sendo possível o uso da analogia, o aplicador deve construir uma regra para o caso concreto, a partir dos princípios gerais de direito ou mesmo com base na equidade. 

O direito brasileiro prevê a integração no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.675/1942): “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os e os costumes princípios gerais de direito”. Especificamente no caso do direito tributário, a integração da legislação está disciplinada pelo art. 108 do CTN (Lei 5.172/1966).

E como fica a consistência? Conforme Gödel, um sistema não pode ser, ao mesmo tempo, completo e consistente. Então, se quisermos que o ordenamento seja completo, devemos admitir sua inconsistência, ou seja, a presença de contradições. 

Com efeito, K. Engish identifica alguns tipos de contradições no direito com as quais convivemos: Em primeiro lugar, temos as contradições valorativas em que o legislador contradiz seus próprios valores, ou seja, produz normas cujos valores estão em conflito uns com os outros. Trata-se de contradições imanentes ou com origem no próprio sistema. Temos ainda as contradições teleológicas em que o fim visado pelo legislador em uma norma é frustrado por outras normas que impedem que esse fim seja atingido. Por fim, temos as contradições de princípios quando diferentes ideias fundamentais convivem no mesmo ordenamento, como por exemplo: liberalismo e totalitarismo, livre-concorrência e controle estatal ou justiça e segurança jurídica. 

A presença de contradições não é de surpreender se levarmos em conta que o direito positivo não resulta de uma concepção racional de direito, mas de consenso político, ou seja, de negociação entre grupos com interesses divergentes e diversas orientações ideológicas (Poder Legislativo cujos integrantes são eleitos). Daí a coexistência de normas constitucionais e de normas inconstitucionais (que estão em vigor enquanto não declarada sua inconstitucionalidade), antinomias e aporias (postas em destaque por Derrida na desconstrução do direito). Poulantzas, a seu turno, fala do descumprimento por parte do Estado das normas que ele mesmo edita, como inerente ao próprio sistema. A própria dogmática resulta do casuísmo, da razão pragmática e do senso comum teórico dos juristas. Enfim, o ordenamento jurídico não pode ser consistente porque é o fruto de negociações políticas e de casuísmos. Já a completude é necessária para que o direito cumpra seu papel de resolver conflitos e promover a paz pública.

terça-feira, 10 de março de 2015

O conceito operacional de “bricolagem” para efeitos de incidência da substituição tributária

Velocino Pacheco Filho

A interpretação de textos normativos requer, antes de tudo, a sua compreensão do  ponto de vista linguístico, já que as normas jurídicas são pesquisadas a partir de enunciados do legislador. A análise linguística do texto permite uma primeira compreensão de seu conteúdo e a delimitação do campo possível de interpretação que o intérprete não deve ultrapassar.

A semiótica distingue três planos linguísticos, a saber: o semântico, o sintático e o pragmático. Se o plano semântico refere-se ao significado dos termos empregados pelo legislador e o plano sintático às relações entre os termos, o plano pragmático refere-se à intenção com que os termos são empregados. O plano semântico é fundamental, no sentido que sem ele os demais não serão possíveis. A análise semântica de um dispositivo legal envolve a definição das coisas (do mundo) representadas pelos termos empregados. Em outras palavras, ela delimita a parcela do mundo real a que o dispositivo se refere – qual a sua abrangência.

Para que a comunicação entre o emitente da mensagem (legislador) e o receptor (intérprete) seja possível, é preciso que ambos tenham a mesma compreensão semântica dos termos empregados, ou seja, deve haver um acordo semântico entre eles. Caso contrário, não teremos comunicação, mas mero ruído. 

Conforme Pasold, do acordo semântico deve resultar um conceito operacional dos termos utilizados em uma comunicação e que define as suas fronteiras epistêmico-jurídicas: define a extensão do seu território normativo.

Pois bem! O Protocolo ICMS 196/2009 prevê o regime de substituição tributária “para frente” nas operações com os materiais de construção, acabamento, bricolagem ou adorno que relaciona.

A substituição tributária constitui modalidade de sujeição passiva indireta em que a lei atribui “de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte” (CTN, art. 128). À evidência, a pessoa de quem o tributo é exigido (contribuinte substituto) não é a pessoa que tem “relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador” (art. 121, parágrafo único, I), identificado como contribuinte substituído.

O § 2° do art. 6° da Lei Complementar 87/96 dispõe que “a atribuição de responsabilidade dar-se-á em relação a mercadorias, bens ou serviços previstos em lei de cada Estado”. Mas, no caso de operação interestadual, em que o substituto estará em um Estado enquanto o substituído estará em outro, o art. 9° da Lei Complementar 87/96, dispôs que “a adoção do regime de substituição tributária em operações interestaduais dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados interessados”. O imposto retido pelo substituto é devido ao Estado de destino, onde deverá ocorrer o fato gerador presumido. Note-se que o acordo entre os Estados não institui o regime de substituição tributária, mas serve apenas para conferir efeito extra-territorial à legislação do Estado em que situado o substituído, nos termos do art. 102 do Código Tributário Nacional.

Ora, a correta aplicação da legislação, depende do acordo semântico ou da definição de um conceito operacional para a expressão “bricolagem”. Conforme Dicionário Houais da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2007), bricolagem significa “trabalho ou conjunto de trabalhos manuais feitos em casa, na escola etc. como distração ou por economia”. Esse conceito é extremamente vago e, portanto, imprestável para definir a responsabilidade tributária. Não se pode trabalhar com um conceito onde caiba praticamente qualquer coisa. Ninguém, em sã consciência diria que copos de vidro sejam classificados como materiais de construção, mas nada impede que alguém tenha a fantasia de fazer uma parede com copos de vidro ou utilizá-los como revestimento ou qualquer outra finalidade. Um conceito amplo de bricolagem poderia incluir copos de vidro que, assim, teriam o mesmo tratamento tributário dos materiais de construção.

Conforme empresa que opera no ramo, em material de propaganda divulgado na internet, “bricolagem” é palavra de origem francesa que quer dizer “faça-você-mesmo”. A mesma propaganda anuncia “nova linha para garantir a excelência em colagem em madeira, metal, plástico, borracha, porcelana, vidro e outros materiais”, que teriam a qualidade de “fácil utilização, em embalagens inteligentes, de simples manuseio e com manuais explicativos”. O anúncio refere-se a kits comercializados expressamente para bricolagem. Então, apesar de qualquer mercadoria poder ser utilizada para fins de bricolagem (é possível fazer móveis com jornais prensados ou com palitos de fósforos), quando estamos falando de tratamento tributário é preciso um conceito mais restrito e preciso. 

O uso amplo da expressão pode levar a situações ridículas como querer aplicar o regime de substituição tributária a itens como “fita adesiva” – normalmente utilizada para confeccionar embalagens e outros usos semelhantes – ou à saída de cravos utilizados para fixar ferraduras nos cascos dos cavalos. Repugna à lógica e à boa razão pretender que seja dado à fita adesiva e aos cravos para ferraduras o mesmo tratamento tributário dos materiais de construção.

Em suma, o alcance do termo “bricolagem” deve ficar restrito às mercadorias oferecidas no mercado expressamente para essa finalidade. Caso contrário, o aplicador do direito estará sendo investido do poder discricionário de exigir o imposto de terceiros, a revelia do legislador, sobre qualquer mercadoria que entenda poder servir para trabalhos de bricolagem. 

A sujeição passiva tributária, no entanto, é matéria reservada à lei. Do mesmo modo que o emprego da analogia (em hipótese de integração do direito) não pode resultar “na exigência de tributo não previsto em lei” (CTN, art.108, § 1º), também não compete ao intérprete e aplicador da lei ampliar o seu alcance para incluir outras situações não previstas pelo legislador. 

Com efeito, dispõe o art. 97, III, do CTN que somente a lei pode estabelecer a definição do fato gerador da obrigação tributária principal e do seu sujeito passivo.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Os precedentes judiciais e o efeito de inércia sobre a interpretação do direito tributário

Velocino Pacheco Filho

Julgar com base em precedentes judiciais é procedimento característico dos países que adotam a common law. Mas isso não quer dizer que os precedentes não tenha importância também nos países que adotam a civil law. Afinal, espera-se que casos iguais sejam julgados da mesma forma, por uma questão de segurança jurídica. A jurisprudência é considerada fonte do direito em qualquer dos dois sistemas, apenas ela tem maior relevância no âmbito da common law. 

Mas o que é um precedente? É a decisão judicial que, tomada em um caso concreto, servirá de referência para o julgamento de casos semelhantes. O precedente é a decisão que inaugura determinada solução adotada pelo tribunal. Para tanto, o precedente tem de ser tal que possa servir de orientação nos casos futuros e que tenham semelhança com o caso concreto que o provocou. Porém, não se trata de uma semelhança qualquer, mas deve ser relativa à razão de decidir (ratio decidendi) ou seja, aos motivos que determinaram a decisão. Os aspectos da decisão que não se relacionam com a ratio decidendi não são relevantes para o balizamento de decisões futuras (obter dictum). Os precedentes jurisprudenciais contribuem para a previsibilidade das decisões e, por conseguinte, para a segurança jurídica: casos iguais devem ser decididos da mesma forma.

No entanto, os precedentes não devem engessar as decisões judiciais – principalmente, não devem ser empregados mecanicamente, sem identificar com precisão qual foi a ratio decidendi e se ela tem aplicação ao caso em julgamento. Desse modo, a aplicação dos precedentes pode ser afastada (a) porque a situação que lhe deu origem já foi superada (overruling) pela legislação superveniente ou outra causa ou (b) porque existe uma diferença significativa entre o caso que deu origem ao precedente e o caso examinado pelo tribunal (distinguish).

Na verdade, tem havido recentemente uma aproximação entre common law e civil law na medida que o julgamento com o uso de precedentes jurisprudenciais vem se tornando mais comum, inclusive no direito tributário brasileiro, a partir do direito constitucional espalhando-se aos outros ramos do direito. Nesse sentido, Saul Tourinho Leal (A Técnica do Distinguish em Matéria Tributária, RDDT 192, p. 132) comenta que os precedentes do STF, na sistemática da repercussão geral, passam a ser mais impositivos que a própria legislação, pois não pode ser declarada sua inconstitucionalidade, restando ao judiciário apenas aplica-lo na integra ou comprovar a inadequação de sua aplicação no caso concreto. Conforme o mesmo autor:

Logo, para provar a inadequação do precedente ao caso concreto posteriormente apreciado pelas demais instâncias judiciais, o julgador pode se valer da praxe norte-americana de afastar o precedente firmado pela Suprema Corte no caso levado a julgamento, pelo fato deste ser diverso – fática ou juridicamente – daquele. Essa distinção é chamada de distinguish e goza hoje de força digna dos grandes institutos do processo constitucional da common law.  

Entretanto, podemos identificar um efeito de inércia que leva os tribunais e a própria Administração Pública a aplicar mecanicamente e sem qualquer crítica os precedentes dos tribunais superiores (STF e STJ). Vamos examinar três casos em que o precedente dos tribunais superiores não pode ser aplicado da forma como vem sendo feito.

O primeiro se refere ao tratamento tributário da argamassa. A Segunda Turma do STJ, no Recurso Especial 453.173, Relator o Min. João Otávio de Noronha (DJ de 4-8-2006, p. 296), decidiu:

TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE ARGAMASSA PARA A CONSTRUÇÃO CIVIL. ICMS. NÃO INCIDÊNCIA. SÚMULA N. 167 DO STJ.
1. Não incide ICMS sobre o preparo e fornecimento de argamassa para construção civil, serviço o qual, à similaridade da elaboração de concreto, enseja a incidência apenas de ISS. Inteligência da Súmula n. 167 do STJ.
2. Recurso especial provido.
 
A Súmula 167 do STJ, citada no acórdão, é do seguinte teor: 

O fornecimento de concreto, por empreitada, por construção civil, preparado no trajeto até a obra em betoneiras acopladas a caminhões, é prestação de serviço, sujeitando-se apenas à incidência do ISS.

O tribunal apenas equiparou a argamassa ao concreto (assumindo terem o mesmo uso), aplicando ao primeiro, jurisprudência relativa ao segundo. Pesquisando os precedentes originários que deram origem à Súmula 167, vemos que se reportam ao julgamento pela Segunda Turma do STF do Recurso Extraordinário 82.501 SP (DJ de 12-3-1976, p. 1516; RTJ vol. 77-3, p. 959), em que foi relator o Min. Moreira Alves:

ICM. A ELE NÃO ESTÁ SUJEITO O FORNECIMENTO DE CONCRETO PARA CONSTRUÇÃO CIVIL QUE VAI SENDO PREPARADO, EM BETONEIRAS ACOPLADAS A CAMINHÕES, NO TRAJETO ATÉ A OBRA. INEXISTÊNCIA, NO CASO, DE COISA JULGADA, POR FALTA DE IDENTIDADE DA CAUSA PETENDI. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDOS.

Do voto do relator, destacamos a seguinte passagem que revela com clareza a ratio decidendi da decisão (grifos no original):

A preparação de concreto, seja feita na obra – como ainda se faz nas pequenas construções – seja, feita em betoneiras acopladas a caminhões, é prestação de serviços técnicos, que consiste na mistura, em proporções que variam para cada obra, de cimento, areia, pedra britada e água, e mistura que, segundo a Lei Federal 5.194/65. Só pode ser executada, para fins profissionais, por quem for registrado no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, pois demanda cálculos especializados e técnica para a sua correta aplicação. O preparo do concreto e a sua aplicação na obra é uma fase da construção civil, e, quando os materiais a ser misturados são fornecidos pela própria empresa que prepara a massa para a concretagem, se configura hipótese de empreitada com fornecimento de materiais e não – como pode ocorrer com a colocação de placas de cimento pré-fabricadas – venda de mercadoria produzida por quem igualmente se obriga a instalá-las na obra. Para a concretagem há duas fases de prestação de serviços: a da preparação da massa, e a da sua utilização na obra.

Depreende-se da leitura do acórdão – especialmente do voto do relator – que o tribunal entendeu sujeitar-se ao ISS, e não ao ICM(S), o fornecimento de concreto, porque (a) as proporções da mistura são específicas para cada obra, (b) a mistura é executada por profissional com registro no CREA, (c) e a mistura demanda cálculos especializados e técnica para a sua correta aplicação.

O fornecimento de argamassa atende a todos esses requisitos? Ora, em qualquer estabelecimento de comércio de materiais de construção pode ser adquirida argamassa pronta, embalada em sacos de tamanho padronizado, para ser utilizada em qualquer obra, independentemente de suas especificações. Nesse caso, as proporções da mistura não são específicas para cada obra, ela não é executada por profissional com registro no CREA, tampouco demanda cálculos especializados nem requer técnica para sua correta aplicação. Pelo contrario, essa argamassa pode ser aplicada por qualquer pedreiro. Então, qual a justificativa para simplesmente estender para a argamassa a jurisprudência construída em função do concreto, sem verificar se os fatos são os mesmos, ou seja, se tem a mesma ratio decidendi.

O segundo caso se refere à definição do termo inicial do prazo de decadência para a constituição do crédito tributário no caso do IPVA. Ilustrativo do entendimento do STJ é o Agravo Regimental no Recurso Especial 1.477.734 SC, da Segunda Turma, Relator o Min. Mauro Campbell Marques (DJe de 18-11-2014):
TRIBUTÁRIO. IPVA. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. LANÇAMENTO DE OFÍCIO. TERMO INICIAL DA PRESCRIÇÃO. CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. DATA DA NOTIFICAÇÃO DO CONTRIBUINTE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. O Superior Tribunal de Justiça possui o entendimento firme de que nos tributos sujeitos a lançamento de ofício, tal como o IPVA e o IPTU, a própria remessa, pelo Fisco, da notificação para pagamento ou carnê constitui o crédito tributário, momento em que se inicia o prazo prescricional quinquenal para sua cobrança judicial, nos termos do art. 174 do CTN.

Nesse caso, a remessa ao sujeito passivo do carnê para pagamento do imposto caracteriza a notificação de lançamento do tributo. Por conseguinte, a partir do recebimento do carnê passa a correr prazo de prescrição e não mais de decadência, a teor o art. 174 do CTN: “A ação para cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco) anos, contados da data de sua constituição definitiva”.

Mas, porque o lançamento do IPVA deve ser necessariamente de ofício? Não existe, desde que foi introduzido no ordenamento jurídico tributário brasileiro, lei complementar de normas gerais disciplinando esse imposto em nível nacional. Nesse caso, prevalece o disposto no § 3º do art. 24 da Constituição Federal: “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”.

Se o Estado não remete ao sujeito passivo carnê para pagamento do IPVA, não há lançamento do imposto, que somente se aperfeiçoa com a notificação ao sujeito passivo. Por conseguinte, o prazo de prescrição ainda não começou a correr. O cálculo do imposto devido (mediante consulta a tabelas disponibilizadas pelo Fisco e aplicação da alíquota cabível) pelo sujeito passivo e seu recolhimento nas datas previstas na legislação nada mais é que o cumprimento de dever legal.

Poderíamos falar de notificação presumida (hipótese ainda não prevista no direito tributário brasileiro)? Tratando-se de simples cumprimento de dever legal, o prazo seria então de decadência e não de prescrição. Essa é a diferença que torna o precedente inaplicável ao caso concreto.

O procedimento de cobrança do IPVA padece de sérios defeitos. Contudo, isso não justifica a ficção de um lançamento que não houve, porque não foi cientificado ao sujeito passivo a exigência do tributo.

O terceiro caso refere-se à tributação da confecção de banners “por encomenda”, fabricado segundo especificações do encomendante para seu próprio uso. Não se trata de banners fabricados em escala e destinados à revenda – o que caracterizaria operação de circulação de mercadorias. 

A Egrégia Primeira Seção do STJ, no julgamento da Ação Recisória 1.084 SP, Relator o Min. Mauro Campbell Marques (DJe de 15-3-2010), decidiu o seguinte:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA PROPOSTA COM AMPARO NO ART. 485, INCISOS V E IX, DO CPC. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO À LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI. INTERPRETAÇÃO DO TEXTO LEGAL EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA SEDIMENTADA DO STJ. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 343/STF. ERRO DE FATO. NÃO COMPROVAÇÃO. SERVIÇOS DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA. CONFECÇÃO DE PLACAS, LETREIROS, LUMINOSOS E AFINS. INCIDÊNCIA DE ICMS. EXCEÇÃO PREVISTA NA PARTE FINAL DO ITEM 85 DA LEI COMPLEMENTAR 56/87.
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11. Conforme o entendimento dominante nesta Corte, essas atividades consistentes na confecção de placas, letreiros, luminosos e afins, destinados à comunicação visual, não se enquadram na descrição da hipótese de incidência prevista no mencionado item 85 da Lei Complementar 56/87. Isto porque predomina nessas atividades a operação de fornecimento de mercadorias, que as inclui na exceção posta na parte final do referido dispositivo legal, atinente à impressão, reprodução ou fabricação de material publicitário, o que faz incidir o ICMS e não o ISS, na forma prevista no art. 2º, IV, da Lei Complementar 87/96.

A questão é saber que imposto incide sobre a confecção de banners, feitos conforme especificações do encomendante. Trata-se de prestação de serviço, sujeita ao ISS? Ou se trata de comercialização de mercadoria fabricada por encomenda?

Vejamos: aos Municípios foi deferida competência para tributar serviços de qualquer natureza (a) não compreendidos na competência dos Estados e (b) definidos em lei complementar. Os serviços compreendidos na competência tributária dos Estados são os de comunicação e transporte interestadual e intermunicipal. Além disso, o serviço para estar sujeito ao ISS deve estar expressamente relacionado (definido) em lei complementar. Se o serviço, para sua execução, compreender fornecimento de mercadorias, temos as seguintes possibilidades: (a) está relacionado na lista de serviço, caso em que está sujeito apenas à incidência do ISS, (b) não está relacionado na lista de serviço, caso em que incide apenas o ICMS e (c) está relacionado na lista de serviço, mas com ressalva da mercadoria fornecida, caso em que incidem ambos os impostos.

A situação fática examinada pelo STJ, na AR 1.084 SP, ocorreu na vigência da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 56/1987, na qual não havia previsão do fornecimento de banners, entre as hipóteses de incidência do ISS. Logo, incidiria exclusivamente o ICMS.

Contudo, a Lei Complementar 56/1987 foi substituída pela Lei Complementar 116/2003, cuja Lista de Serviços prevê taxativamente, no item 24.01: “Serviços de chaveiro, confecção de carimbos, placas, sinalização visual, banners, adesivos e congêneres”.

Assim, a confecção de banners passou a ser tributada pelo ISS, com exclusão do ICMS, a partir da entrada em vigor da Lei Complementar 116/2003. Até então, incidia exclusivamente o ICMS. O que mudou? Mudou a legislação: não podemos, na vigência da lei nova, decidir com base em jurisprudência que se refere a lei já revogada.

A Administração Tributária deve ter o máximo cuidado com a tendência inercial de decidir com fundamento em precedentes, sem levar em conta a existência de diferenças relevantes que tornam inaplicável o precedente ao caso concreto.