DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A CÂMARA DE ÉTICA TRIBUTÁRIA

Fabiano Ramalho
 
Nos últimos anos, temos visto o surgimento por todo o país de uma nova entidade no universo do Direito Tributário. Trata-se das Câmaras de Ética Tributária, criadas por Lei, com atribuições específicas em matéria de direitos e deveres dos contribuintes.
Desde então, muita confusão se faz sobre a natureza dessa entidade, resultando, muitas vezes, em perda de efetividade e baixo índice de maturidade do órgão, provocando um lamentável prejuízo ao sistema tributário como um todo, que poderia ter na Câmara de Ética uma ferramenta para o seu desenvolvimento contínuo.
No geral, nos diversos Estados da Federação, os modelos adotados pelas Câmaras de Ética pouco diferem, mantendo sua essência de modo mais ou menos uniforme. Por isso, para esse estudo, vamos tomar como paradigma o modelo adotado pelo legislador catarinense.
Criada pela Lei Complementar n° 313/2005, a Câmara de Ética Tributária do Estado de Santa Catarina veio para compor o assim chamado “Sistema Estadual de Ética Tributária”, para a “defesa das relações tributárias”. Atualmente, a Câmara catarinense é composta por 14 entidades, que representam os mais diversos setores da sociedade, como comércio, indústria, serviços, entidades de classe e setor público.
Dentre as diversas atribuições legais previstas, consta que compete à Câmara de Ética:
I - planejar, elaborar, propor, coordenar e executar a política estadual de proteção ao contribuinte;
II - receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por contribuintes ou entidades representativas dos contribuintes;
[omissis]
IV - sugerir à Administração Tributária procedimentos e ações tendentes a coibir práticas evasivas.
 
Malgrado o fato de carecer da melhor técnica legislativa, o texto legal aponta com razoável clareza a que se destina a Câmara de Ética, dando os contornos daquilo que se espera seja sua função prática. E aqui destaco o primeiro corte metodológico da nossa análise: a Câmara de Ética nasceu para tratar de questões macro-tributárias e não micro.
Ou seja, não interessa à Câmara advogar em defesa de determinado contribuinte ou de determinado órgão fazendário, mas sim em prol das relações tributárias como um todo. Não lhe interessa o singular, mas sim o plural. Não lhe interessa o litígio individual, mas o coletivo.
Isso já responde a muitos questionamentos que frequentemente são feitos sobre a necessidade (ou desnecessidade) de uma Câmara de Ética para “receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por contribuintes ou entidades representativas dos contribuintes” (art. 50, II), como diz a Lei, se, para isso, já existe o processo administrativo fiscal, com suas instâncias recursais aptas a cumprir esse mister.
Ou ainda, para que a existência de tal instituição com a função de “planejar, elaborar, propor, coordenar e executar a política estadual de proteção ao contribuinte” (art. 50, I), se já existem os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que cumprem esse papel com mais força do que qualquer outro ente público?
Percebam que existem ainda outros questionamentos que, cada qual, fulminam a idéia de uma Câmara de Ética voltada para os interesses individuais dos sujeitos da relação jurídico tributária. Eis, aqui o principal obstáculo a ser superado pelas Câmaras de Ética espalhadas pelo país, encontrar seu diferencial, segundo a dicção legal, e poder, assim, coexistir com eficácia com os diversos instrumentos e formas de controle fiscal existentes.
Numa visão metafórica, poderíamos dizer que a Câmara de Ética Tributária tangencia cada um desses instrumentos e formas de controle, emprestando-lhes substância na medida em que se propõe ao seu aperfeiçoamento constante.
Donde surge o nosso segundo corte metodológico: a Câmara de Ética não é uma instância de julgamento administrativo das relações tributárias, mas sim de construção e desenvolvimento de procedimentos e princípios aplicáveis às mesmas. É, por assim dizer, um ambiente amplo e representativo de debate, para que possamos encontrar hoje soluções melhores que as de ontem para os nossos problemas em matéria de relações tributárias.
Essa é a função essencial da Câmara de Ética e foi nesse contexto que foi criada. Sem essa correta compreensão de seus operadores e representantes, jamais alcançará seus objetivos, tornando-se inoperante e ineficaz.
A partir de sua larga representatividade, a Câmara reúne as condições necessárias para encontrar novos caminhos para o desenvolvimento e a evolução das relações tributárias, por meio de um amálgama de saberes distintos que são próprios das experiências individuais de cada setor da economia e da sociedade.
E é assim que, quando a lei atribui a competência de “receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por contribuintes ou entidades representativas dos contribuintes”, está, na verdade, autorizando a Câmara de Ética a promover um debate geral sobre o conjunto dessas consultas, denúncias ou sugestões, a fim de investigar e encontrar o ponto convergente comum entre todas elas, como uma forma de conferir-lhe repercussão geral e, a partir daí, formular soluções, nos termos do art.50, I, da LC. 313/2005. Isso é do que se ocupa a Ética Tributária.
Talvez alguém me pergunte: “É possível encontrar uma boa ética tributária?” A resposta, por óbvio, é não. A ética, em si mesma, não é boa nem má. Ela é apenas um caminho, dentro do qual nós pretendemos dar valor ao sistema. Por isso, trago aqui o terceiro e último corte metodológico: Já existe uma ética tributária em nosso sistema, e já existia mesmo antes de qualquer Câmara de Ética ter sido criada. Mas, então, qual a necessidade de se instituir tal Câmara?
A resposta está nas linhas que vimos acima, ou seja, na necessidade de colocar a ética tributária em evidência com o momento presente, de confrontá-la com os valores vigentes, de aferir a sua eficácia diante das necessidades jurídicas atuais, de submetê-la constantemente a um amplo ambiente de debate. É, em suma, afastar-lhe do rigor do tempo e do peso da inércia.
É um trabalho muito mais principiológico do que jurisdicional, revestido de uma espécie de sociologia jurídica que investiga qual o ponto de mutação necessário para a melhoria do sistema tributário; qual a melhor solução para caminharmos rumo a um sistema tributário coeso, justo e eficaz, que seja a justa medida entre a necessidade do Estado em arrecadar e a disposição do contribuinte em pagar.
Assim, estabelecidas as premissas de um correto funcionamento das Câmaras de Ética Tributária, espero ter contribuído para uma melhor compreensão dessa importante instituição jurídica, que veio no contexto de um sistema de proteção das relações tributárias que parece estar muito além do nosso tempo, daí porque a necessidade de um esforço maior para alcançarmos sua real utilidade prática.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

As peculiaridades do diferimento

Velocino Pacheco Filho

Diz-se que o imposto relativo a determinada operação é diferido quando a sua exigibilidade transfere-se para etapa ou etapas posteriores do ciclo de comercialização. O recolhimento do tributo fica a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro (Sacha C. N. Coelho). Nessa última hipótese, o diferimento caracteriza substituição tributária relativa a operações antecedente ou “para trás”.

Porém, se a operação subsequente for promovida pelo mesmo contribuinte (e.g. o contribuinte importa a mercadoria e, em seguida dá saída para o mercado interno) ocorre apenas diferimento, sem caracterizar substituição tributária.

Importante observar que o diferimento não pode resultar em eliminação ou redução do ICMS devido. Apenas o recolhimento do tributo que fica transferido para momento futuro. Trata-se, pois, de “mero adiamento do recolhimento do valor devido, não implicando qualquer dispensa do pagamento do tributo ou outra forma de benefício fiscal” (ADI 2.056/MS, Tribunal Pleno, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe de 17/8/07).

Por não representar exoneração tributária, o diferimento pode ser instituído por decreto (regulamento) e não por lei. Pelo mesmo motivo, não necessita de prévia autorização por convênio.

Contudo, por não ter havido recolhimento de tributo, a mercadoria recebida com diferimento do ICMS não permite apropriação de crédito do imposto. “Não tendo sido pago o tributo quando da aquisição da sucata, o qual foi diferido para incidir sobre o produto já industrializado, não tem o industrial direito ao crédito referente à compra” (STF, RE 94.807-4/SP, 2ª T, j. 19/03/82, LEX 43: 158).

Com efeito, nos termos do art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal, o crédito do ICMS nada mais é senão o imposto que onerou a mesma mercadoria em etapas anteriores do ciclo de comercialização (princípio da não-cumulatividade). Então, na operação subsequente, promovida por quem recebeu a mercadoria com imposto diferido, não há crédito para deduzir do imposto devido. Desse modo, o imposto a recolher resulta simplesmente da aplicação da alíquota sobre o valor da operação, compreendendo tanto o imposto correspondente àquela operação, como o que foi diferido da antecedente. Diz-se que o imposto diferido subsome-se na operação subsequente.
Se a operação subsequente for tributada – não ocorre a subsunção – o contribuinte deve recolher o ICMS que foi diferido.

Ora, suponhamos que o imposto a recolher naquela operação (= aplicação da alíquota sobre o valor respectivo) foi inferior ao imposto diferido na operação anterior. Nesse caso, deve ser recolhida a diferença, sob pena de dispensar parte do tributo correspondente à operação anterior (diferida). Nesse caso, o diferimento transmuda-se em benefício fiscal, sem previsão em lei e sem autorização por convênio.