DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Contradições teleológicas no direito tributário

Velocino Pacheco Filho

A arrecadação de tributos não é um fim em si mesmo, mas o meio que o Estado dispõe para atender às necessidades coletivas, financiando programas e políticas públicas. Não interessa arrecadar a qualquer custo, mas a arrecadação deve guardar coerência com os fins do Estado e com o ordenamento jurídico.

Para Karl Engisch, o ordenamento jurídico abriga contradições, entre as quais ele identifica o que chama de “contradições teleológicas”, quando o legislador adota determinados valores ou estabelece determinadas metas, mas cujo cumprimento resta inviabilizado pela legislação subsequente. Isso ocorre, por exemplo, no caso de legislação infraconstitucional que se opõe à realização de princípios, valores e metas expressos na Constituição.

É o caso do art. 170, IV, da Constituição, que adota a livre concorrência como um dos princípios que informam a ordem econômica. Livre concorrência implica a não intervenção do Estado no mercado ou nas condições de concorrência. Pelo contrário, o Estado deve zelar para que os agentes econômicos concorram em igualdade de condições. Assim, o art. 173 reserva a exploração da atividade econômica ao setor privado, admitindo a exploração direta pelo Estado, apenas quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. O § 2º desse artigo dispõe que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos ao setor privado. O § 4º, a seu turno, determina que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Ao Estado, nos termos do art. 174, fica reservado o papel de agente normativo e regulador, cabendo-lhe as funções de fiscalização incentivo e planejamento, sendo esta última apenas indicativa para o setor privado.

Na seara tributária, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, dispõe que o legislador complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.

Devemos distinguir a livre concorrência protegida pela Constituição daquela preconizada pelo liberalismo econômico, sem qualquer controle ou limitação. O mesmo art. 170, adota, com a mesma hierarquia da livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego, entre outras.

A forma de tributação (sobre o consumo) que melhor atende à livre concorrência, como princípio constitucional, é a plurifásica não cumulativa (o tributo incide em todas as fases do ciclo de comercialização da mercadoria, permitindo que o contribuinte recupere o imposto recolhido nas fases precedentes). Nessa forma de tributação, os agentes econômicos seriam indiferentes ao tributo, reagindo apenas ao mercado.

A tributação plurifásica não-cumulativa foi adotada, em nosso País, por influência do IVA europeu, no IPI e no ICMS, embora, o IPI seja concebido como tributo extrafiscal. Esse é precisamente o ponto. Em que medida, a Constituição brasileira de 1988 admite o uso extra-fiscal dos impostos não-cumulativos? A extra-fiscalidade implica a indução de determinado comportamento mediante o agravamento ou o abrandamento do tributo. Logo, o sucesso de uma política extra-fiscal representa uma interferência no sistema de preços e, por conseguinte, na livre concorrência. Os agentes econômicos não mais serão indiferentes à tributação. Assim, a extra-fiscalidade no caso de tributos sobre consumo deve ser justificada com base nos demais princípios constitucionais, como a proteção do consumidor, do meio ambiente, do pleno emprego etc.

Questão mais inquietante é o uso pelos Estados de isenções, incentivos e benefícios fiscais, relativamente ao ICMS, para atrair investimentos. A Lei Complementar 24/1975, com a sua mal compreendida exigência de unanimidade nas votações, seria um instrumento para coibir a chamada “guerra fiscal” entre os Estados, se fosse dotada de sanções realisticamente aplicáveis contra os Estados infratores. O resultado é a ineficácia do art. 170, IV, da Constituição da República. Livre concorrência, entre nós, tornou-se simples figura de retórica.

Finalmente, temos a curiosa figura da substituição tributária “para frente”, introduzida pelo Poder Constituinte Derivado (§ 7º do art. 150, acrescido pela EC 3/1993). Ao se substituir ao mercado, determinando a margem de valor adicionado e arbitrando preços de varejo, termina por frustrar os fins visados pelo Poder Constituinte Originário, de estabelecer uma economia de mercado, com base no princípio da livre concorrência.

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