DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Repetição do indébito e moralidade administrativa

Velocino Pacheco Filho

O art. 165 do CTN assegura ao sujeito passivo da relação jurídico-tributária a restituição total ou parcial do tributo indevido pago ou pago a maior que o devido. No entanto, o art. 166 condiciona a restituição, no caso de impostos indiretos (“que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”), à prova de não ter repassado o ônus do tributo ao adquirente ou, tendo repassado, estar por este autorizado a pedir a restituição. O dispositivo leva em conta a distinção entre contribuinte “de direito” (aquele que recolhe o tributo) e contribuinte “de fato” (quem sofre a repercussão financeira do tributo).

Em outras palavras, o legislador presume que o tributo repercute sobre o contribuinte “de fato”. Mas, essa é uma presunção “juris tantum”, ou seja, admite prova em contrário. Cabe ao contribuinte “de direito” provar que suportou o ônus tributário e que não o repassou ao contribuinte “de fato”.

Ora, isso deixa o Fisco em posição muito cômoda para recusar a restituição: se é pleiteada pelo contribuinte “de fato”, o Fisco dirá que não tem legitimidade para fazê-lo; se pelo contribuinte “de direito”, o Fisco exigirá a prova da não repercussão do tributo sobre o contribuinte “de fato”. Essa é uma prova nada fácil de obter.

Resta ainda, dirá o leitor, o recurso de estar autorizado pelo contribuinte “de fato” a pleitear a restituição. No caso de venda a varejo, também não é fácil de obter.

Porém, para além da obtenção de provas ou do direito à restituição – se o tributo pago é indevido, deve haver alguma restituição a alguém – o Fisco beneficia-se do dilema criado pela própria legislação, descurando de buscar alguma solução.

O art. 37 da vigente Constituição diz que a administração pública, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios obedecerá ao princípio, entre outros, da moralidade administrativa. Pergunta-se: o comportamento do Fisco, neste caso, é moral?

Devemos pesquisar qual o conteúdo da moralidade administrativa. O que dizem os doutos? Para Diva Malerbi, “a moralidade administrativa é princípio desdobrado da confiança que o povo depositou no poder e na legitimidade da atividade administrativa em relação à gestão da coisa pública”.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, “a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”. O que encontra eco em Antônio da Silva Cabral para quem “entre o fisco e o contribuinte deve existir uma relação de mútua confiança e colaboração”. Para Gilmar Ferreira Mendes, “em determinados setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve, antes, ser também eticamente inatacável”. 

Tércio Sampaio Ferraz Jr., a seu turno, ensina que “a obediência à moralidade é princípio constitucional. Não se trata de regra difusa ou de regra sobre regras, mas de regra imanente aos atos administrativos. Ou seja, configura o ato, não a norma que o autoriza. Nesse sentido, não se confunda legalidade com moralidade. Legalidade é requisito da norma, não do ato que a emana. Assim, uma norma pode ser legal, sem ser moral o ato que a estabelece. Ao que arremata Celso Ribeiro Bastos, para quem o ato administrativo “ofende a moralidade na medida em que, apesar da atuação ser prevista em lei, prejudicar os particulares”. 

Na mesma senda anda José Afonso da Silva para quem “a lei pode ser cumprida moralmente ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar ou de favorecer alguém deliberadamente, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente ofensivo à moralidade administrativa”.

Por fim, aproximando-se da concepção de Lavinas, conclui Marco Aurélio Greco que a “conduta imoral não é a que ‘desobedece’ um padrão prévio, mas sim a que causa ‘injustiça’ a alguém. Moralidade, pois, é conceito que só pode ser aferido em relação ao Outro que é destinatário da conduta”. Prossegue esse autor dizendo que o princípio da moralidade “não olha para o interior do Ser Humano, mas sim para o seu exterior, onde se encontram os destinatários da sua ação, ou seja, aqueles que poderão sofrer as injustiças da sua conduta”.

Então, o que caracteriza a imoralidade administrativa? Klaus Tipke distingue entre a moralidade tributária do Estado e a da Administração Pública. A primeira ele faz derivar do princípio da capacidade contributiva. Essa é a moralidade da lei. Mas nos interessa no momento a moralidade da Administração. Essa moralidade reside nos atos administrativos e não na regra jurídica que lhes serve de fundamento.

Então estamos falando de imoralidade dos atos administrativos, ou seja, atos praticados com astúcia e eivados de malícia e que representem uma violação da confiança depositada pelo povo no poder público e na gestão da coisa pública. A Administração, que existe para bem servir ao cidadão e garantir-lhe o exercício de seus direitos constitucionais, não procede com base na confiança mútua e na colaboração. Pelo contrário, age de modo a deliberadamente prejudicar ou favorecer alguém.

A imoralidade, nesse caso, não é subjetiva; não se trata de foro íntimo ou de consciência própria. A imoralidade administrativa é objetiva, devendo ser identificada nos destinatários do ato, aptos a sofrer a injustiça dele decorrente.

Voltando à restituição do indébito tributário, a posição cômoda do Fisco caracteriza, com efeito, imoralidade administrativa, na medida em que representa a apropriação, pela Fazenda Pública, de valores recebidos que não correspondem a tributo devido – enriquecimento sem causa do Erário. A má fé é evidenciada pela recusa fácil de devolver, a qualquer um, os valores recolhidos a título de tributo e que foi demonstrado serem indevidos.

Além disso, a não devolução dos valores indevidamente pagos, seja ao contribuinte de “direito”, seja ao contribuinte de “fato”, corresponde a um prejuízo, não reparado, de quem pagou o tributo ou de quem o suportou. Assim, o indeferimento do pedido pela Administração, apesar de legal, é imoral, sendo incompatível com o conceito de justiça (alterum nom laedare).

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