DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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segunda-feira, 13 de julho de 2015

Livre concorrência e unanimidade das decisões do Confaz

Velocino Pacheco Filho

Dispõe o art. 155, § 2º, XII, da Constituição da República que compete à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. A matéria foi regulada pela Lei Complementar 24/1975 cujo art. 1º condicionou esses tratamentos excepcionais a convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal. Conforme § 2º do art. 2º, a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados. 

Essa disposição tem recebido inúmeras críticas. “Se nem as emendas constitucionais”, alegam, “exige unanimidade, porque seria ela exigida para a concessão de isenções”? Ora, o Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), órgão onde são discutidas as propostas de convênios, não é um corpo legislativo, mas apenas um colegiado de secretários de fazenda dos Estados. Os convênios em si mesmos não concedem isenções, mas constituem uma condição para que os Estados o façam. 

Outro argumento baseia-se no art. 151, I, da CF/88 que veda a instituição de tributo que não seja uniforme em todo território nacional, ressalvada a concessão de incentivos fiscais “destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País”. Então, concluem, a concessão de incentivos fiscais é permitida para estimular o desenvolvimento das regiões mais pobres. Embora a afirmativa seja verdadeira, essa disposição, no entanto, é dirigida expressamente à União e ao tratamento dos impostos federais. Poderia ser estendida ao ICMS?

O argumento mais forte apela para os princípios constitucionais: entre os objetivos fundamentais da República, conforme dispõe o art. 3º, III, da CF/88, está a redução das desigualdades regionais. Assim, a exigência de unanimidade no Confaz estaria contrariando a realização desse objetivo fundamental. 

No entanto, os princípios constitucionais – principalmente os que encerram valores – devem ser interpretados em harmonia com outros princípios. É o caso da livre concorrência que, entre outros princípios, informa a ordem econômica, a teor do disposto no art. 170, IV: a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, deve observar, entre outros, o princípio da livre concorrência. A relevância desse princípio é demonstrada pelos instrumentos constitucionais postos à disposição do legislador para a defesa da livre concorrência. Desse modo, o § 4º do art. 173 determina que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Por outro lado, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, faculta à lei complementar “estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”.

Livre concorrência significa dar condições para que as empresas concorram no mercado em igualdade de condições, de modo a favorecer a mais eficiente. Isto requer, por parte do Estado, uma tributação neutra sobre o consumo, de modo a que a tributação não interfira na tomada de decisões pelos agentes econômicos. As empresas em concorrência devem ser indiferentes à tributação. Em outras palavras, para cumprir a Constituição – de construir uma economia baseada na livre concorrência – não deve haver tratamentos tributários favorecidos. Uma tributação plurifásica não-cumulativa, como é o caso do IVA ou do ICMS, atende ao princípio da neutralidade, na medida que cada um deve recolher na proporção do valor que adiciona em cada fase do ciclo de comercialização. 

Conforme lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr., o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, não pode desigualar concorrentes em condições de igualdade, criando situações de privilégio de uns sobre outros. Isto por que um mercado, regido pelo princípio da livre concorrência, significa um mercado que se autorregula, pois, é no mercado que se formam os preços conforme as suas próprias regras e é no mercado que se dá a boa alocação dos recursos.

Livre concorrência, acrescenta o mesmo autor, implica a neutralidade do Estado, no sentido de atuação imparcial em face dos agentes concorrentes com seus interesses privados em um mercado livre, ou pela não-interferência estatal, no sentido de que ela não deve ser criadora de privilégios. O Estado, como agente normativo e regulador, atua em nome do interesse comum, nunca em nome de interesses privados e, ao atuar, deve guardar a imparcialidade própria do interesse comum. “A neutralidade concorrencial garante, pois, a igualdade de chances para os agentes econômicos”.

Então o princípio da neutralidade concorrencial deve impedir a criação de privilégios (i.e. de vantagens desigualadoras). Se a atuação estatal, pondera o mesmo jurista, interfere na relação entre concorrentes, mesmo argüindo motivos relevantes (outros princípios, como proteção ao meio ambiente, ao consumidor etc.), ela não pode vir a privilegiar certos concorrentes contra outros, afastando-os do mercado ou retirando-lhes a possibilidade de competir.

A neutralidade dos tributos decorre ainda da proibição de tratamento desigual a contribuintes que estão em situação equivalente (CF, art. 150, II), pois, livre mercado significa que os concorrentes competem, em princípio, dentro de um quadro tributário que marca a estratégia concorrencial de cada um. De outro, porém, e por isso mesmo, esse quadro não pode ser discriminatório, nem criar condições competitivas diferentes entre eles. Assim, o princípio da isonomia, garantido pela neutralidade dos tributos diante da concorrência, será vulnerado na medida em que a relação concorrencial entre empresas for afetada pela tributação, de tal modo que esta favoreça umas e desfavoreça outras.

Não discrepa dessa doutrina, Gilmar Ferreira Mendes para quem a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos cogentes da autoridade administrativa, mas sim do livre jogo das forças de mercado em disputa da clientela na economia de mercado. Pois, o modelo de economia de mercado, adotado pelos constituintes de 88, só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de qualquer interferência, seja do Estado ou do capital monopolista. 

José Afonso da Silva, a seu turno, vê no princípio da livre concorrência, prestigiada no inciso IV do art. 170 da Constituição uma manifestação da liberdade de iniciativa. O art. 170, IV e o § 4º do art. 173, no entendimento do prestigiado professor, “complementam-se no mesmo objetivo”, ou seja, tutelar o sistema de mercado e proteger a livre concorrência “contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista”.

Por fim, segundo Fernando L. Weiss, “a tributação do século XX tem a solidariedade como fundamento, uma vez que todos são igualmente titulares do Estado e devem custeá-lo na medida de suas possibilidades, e representam a retribuição à sociedade em razão do sucesso em obter, fazer circular ou acumular riquezas. A capacidade contributiva é a medida desse sucesso”. Conforme esse autor, é “inaceitável que a tributação oprima a atividade econômica, salvo se houver uma finalidade pública não tributária a ser atendida”.

Desse modo, a concordância unânime dos Estados por meio de convênio, exigida pela Lei Complementar 24/1975, para que um Estado crie incentivos em matéria de ICMS, é mecanismo para evitar a transferência ou repartição dos ônus financeiros deles decorrentes. Em homenagem ao princípio da Federação, nenhum Estado deve ser obrigado a suportar ônus resultante de benefícios fiscais concedidos por outro. O convênio garante validade à lei local, conclui Weiss, mas não acarreta renúncia de receita por parte dos demais Estados.

Podemos concluir, pois, que a exigência de unanimidade na aprovação dos convênios pelo Confaz, vem atender (i) ao princípio da livre concorrência, (ii) ao tratamento isonômico entre contribuintes e (iii) a garantia de que nenhum Estado deva suportar o ônus de benefício fiscal concedido por outro. A redução das desigualdades regionais não é um valor absoluto que se sobreponha a outros princípios constitucionais como a livre concorrência, a isonomia ou a federação. 

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