DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

UMA NOVA ÉTICA TRIBUTÁRIA

por FABIANO RAMALHO

O mundo que conhecemos está mudando. Não apenas sob o aspecto econômico, mas também na forma como as pessoas se relacionam. A convergência de um mundo globalizado e dos avanços tecnológicos possibilitaram condições nunca antes vistas para o progresso humano. Vivemos mais, vamos mais longe e com mais saúde.

E, com o avanço de três poderosas ferramentas tecnológicas, a saber, o big data[1], a inteligência artificial e os objetos conectados (ou Internet dos objetos), essas mudanças aceleraram ainda mais. Sob a lógica da inovação constante, uma nova realidade social e econômica se impôs de forma irresistível, mudando a vida dos indivíduos. Segundo Luc Ferry[2], estamos passando para uma nova etapa da revolução industrial, chamada “economia colaborativa”, cuja principal característica é a autonomia extrema dos indivíduos no desenvolvimento de atividades econômicas.

Novas formas de exercer atividades econômicas, como aquelas decorrentes das aplicações Uber, Blablacar e AirBnB, onde os indivíduos exploram seu patrimônio pessoal para fins econômicos, provocaram a derrocada de um mundo em rápida obsolescência e fizeram com que profissões tradicionais ficassem fadadas ao desaparecimento, num inevitável processo de dumping social.

Nesse cenário turbulento, uma nova ética social reclama seu espaço, a fim de acomodar as novas relações sociais e permitir o aperfeiçoamento das instituições político-jurídicas. O Direito precisa, evidentemente, apresentar respostas a essas novas demandas sociais e, no caso do Direito Tributário, uma nova ética começa a delinear os contornos da atuação dos operadores do direito e da contabilidade.

Essa ética da alteridade em matéria tributária começa a surgir no meio jurídico por meio da positivação de normas de responsabilidade, que impõem deveres de comportamento para os profissionais da tributação, obrigando-os, e.g., a reportar atos de desconformidade à Lei, praticados por seus clientes.

É o caso, e.g., da obrigação de declarar ao COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras, qualquer suspeita de crime de lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo. A Lei n° 9.613/1998, com as alterações da Lei n° 12.683/12, obriga diversas pessoas físicas e jurídicas a promoverem essa declaração, prevendo, em seu art.1°, que constitui crime “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Nos últimos 5 anos, uma média superior a 400.000[3] comunicações de suspeita de irregularidades foram feitas ao COAF por ano, desencadeando procedimentos diversos pelas autoridades competentes, com vistas à prevenção e ao combate da lavagem de dinheiro e do financiamento ao terrorismo.

Mas talvez o mais expressivo exemplo de mudança na ética profissional esteja surgindo em alterações iminentes da atividade dos contadores e auditores. Está em fase de implantação no Brasil o NOCLAR - Non Compliance with Laws and Regulations (não conformidade com as leis e regulações), um dos módulos do International Financial Reporting Standards (IFRS), editada em julho de 2016 pela International Ethics Standards Board for Accountants - IESBA (Conselho de Normas Éticas Internacionais para os Profissionais da Contabilidade), com o intuito de combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo no mundo.

No Brasil, o NOCLAR está sendo traduzido e analisado pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC) e pelo Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (IBRACON), dentre outros órgãos. Prevista para entrar em vigor em julho de 2017, a norma exige que, não havendo outra solução, os contadores e auditores informem aos órgãos competentes atos de desconformidade à lei, praticados pelas empresas para as quais prestem serviços.

Essa norma representa uma evolução enorme em termos de ética profissional, a ponto de impor a revisão de velhos conceitos relacionados com o sigilo profissional. Em nome do interesse público, o dever de comunicar atos de desconformidade à Lei (e não apenas aqueles relacionados com lavagem de dinheiro e terrorismo, objetos do COAF), tem um forte apelo de moralização das atividades econômicas, ao mesmo tempo em que impõe uma forte disciplina legal aos seus agentes. As possibilidades em termos de combate à evasão fiscal, e.g., são imensas, o que contribuiria para o equilíbrio das contas públicas. Por isso, não é exagero admitir que, em curto prazo, normas semelhantes sejam assimiladas pela legislação pátria, alcançando diversos outros profissionais.

No entanto, diante dessa tendência normativa inovadora, surgem preocupações legítimas com a preservação de direitos e garantias previstos em nosso Ordenamento Jurídico, como, e.g., a segurança jurídica, o respeito às prerrogativas profissionais e a proteção daqueles que comunicam os atos de desconformidade à Lei.

Como oferecer a devida proteção contra perseguições e represálias? Mesmo na experiência do COAF, onde há proteção por meio do sigilo, ocorrem falhas que expõem o delator a diversos riscos. Como admitir, então, a vigência imediata do NOCLAR ou norma semelhante, cujo alcance é muito maior e não tem previsão de proteção ao comunicante?

O NOCLAR advém de um conjunto de pronunciamentos contábeis padronizados globalmente, com previsão de aplicação simultânea nos diversos países signatários. Ocorre que nem todos possuem maturidade social e legislativa para recepcionar as novas normas e procedimentos. É o caso do Brasil, que possui um gap nesse sentido, acumulando uma grande defasagem no desenvolvimento social e político em relação aos países mais desenvolvidos. Essa desvantagem impõe ao país uma dificuldade extra na implementação dessa nova matriz de ética profissional para os profissionais da contabilidade.

Não é apenas a falta de uma legislação de proteção para as comunicações de atos ilegais, mas também a falta de uma cultura que permita uma consciência plena do dever de legalidade que causa preocupação. Impor essas alterações sem o devido amadurecimento legal e social implicaria em queimar etapas importantes do desenvolvimento de nossas instituições, o que colocaria em risco tanto a eficácia das novas medidas quanto a segurança jurídica dos cidadãos.

Na maioria dos países desenvolvidos, a comunicação dos atos de desconformidade à lei deriva de uma maturidade social avançada, cuja cultura jurídica reconhece tal prática como um “direito” do cidadão. De fato, quem comunica atos contrários à lei o faz para o exercício de um direito, em prol do interesse público, o que é garantido por lei. Muito antes de se pensar em NOCLAR, já existia nesses países todo um arcabouço legal que garantia o exercício do direito de relatar os atos ilegais e protegia o comunicante de qualquer consequência nociva.

Normas internacionais, ao longo do tempo, sistematizaram essa proteção em nível global por meio de tratados internacionais, como é o caso da “Convenção Civil sobre a corrupção do Conselho Europeu”, de 04/11/1999, e da “Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção”, de 31/10/2003. Esta última, da qual o Brasil é signatário, prevê, em seu art.33, a proteção de “toute personne qui signale aux autorités compétentes, de bonne foi et sur la base de soupçons raisonnables” os fatos de corrupção[4].

Nos EUA, onde o comunicante é conhecido como wistleblower, uma série de normas oferecem proteção ao exercício do direito de comunicar atos ilegais, como o  Whistleblower Protection Act (Public Law 101-12)[5], de 1989, que protege os servidores públicos federais que reportam desvios de conduta em suas agências governamentais. O mesmo ocorre na França, onde o Lanceur d´Alerte, como é chamado, é protegido por leis e regulamentos diversos, como a Loi n° 2007-1598[6], de 13/11/2007, relativa à luta contra a corrupção.

A Transparência Internacional, ONG dedicada ao combate à corrupção ao redor do mundo, editou o International Principles for Whistleblower Legislation, que é um conjunto de sugestões legislativas para a proteção de quem reporta desconformidade e para o incentivo dessa reportagem. Nesse documento, constam os princípios básicos que animam o direito de reportar, como consta do seguinte trecho:

“The right of citizens to report wrongdoing is a natural extension of the right of freedom of expression, and is linked to the principles of transparency and integrity.” [7]

No entanto, mesmo diante de tamanho suporte legislativo, a proteção ao comunicante ainda apresenta falhas. Um caso ficou famoso na Europa, conhecido como LuxLeaks[8], onde dois lanceurs d’alerte, Antoine Deltour e Raphaël Halet, colaboradores do escritório de auditoria PricewaterhouseCoopers (PwC), foram condenados[9] pela Justiça de Luxembourgo à doze meses de prisão e multa de 1.500 € e nove meses de prisão e 1 000 €, respectivamente, por terem revelado o conteúdo de várias centenas de acordos fiscais extremamente vantajosos entre o fisco de Luxemburgo e clientes da PwC, como a Apple, Amazon e Pepsi.[10]

Se mesmo lá, onde existe forte proteção jurídica para o comunicante, ocorrem represálias e perseguições, como esperar que a obrigação de contadores e de outros profissionais brasileiros de comunicar atos de desconformidade à lei, sem nenhuma proteção prévia, possa alcançar êxito no Brasil? Parece prematuro admitir a vigência do NOCLAR e de normas do mesmo gênero no país, diante desse cenário preocupante.

Ninguém, em sã consciência, seria contra o desenvolvimento de novas regras de ética profissional, sobretudo quando voltadas ao combate à corrupção, à fraude e à evasão fiscal. No entanto, aderir a tais regras sem a devida proteção seria um verdadeiro suicídio, com graves consequências sociais para o denunciante. É condição sine qua non, para o amadurecimento da ética tributária no Brasil, o desenvolvimento sustentável de condições sociais, políticas e econômicas, voltadas para a formação de uma cultura social e jurídica que permitam a implementação segura de normas com essa finalidade. E só conseguiremos isso através de um amplo debate público e da formação de uma adequada consciência sobre o justo em matéria tributária.


(Obs.: Artigo publicado originalmente em 22/02/2017, na Coluna da ASSET/SC, junto ao site Empório do Direito.)



[1] Todo tipo de rastro que deixamos na Internet e que são coletados, tratados e comercializados.
[2] Disponível em https://goo.gl/HjXi8a
[7] Disponível em www.transparency.org
[9] Atualmente em fase de recurso na Corte de Luxemburgo.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A exigibilidade do ICMS diferido

Velocino Pacheco Filho

Entende-se por diferimento a postergação da exigibilidade do imposto para etapa posterior de circulação da mercadoria. Segundo Sacha Calmon Navarro Coelho, o diferimento do ICMS ocorre quando “o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria é transferido para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro”. Assim, conforme julgamento da Primeira Turma do STF, no RE 112.354-6, “do diferimento não resulta eliminação ou redução do ICM; o recolhimento do tributo é que fica transferido para momento subsequente”.

O diferimento pode envolver outros institutos, como é o caso da substituição tributária relativa a operações antecedentes ou “para traz”. Entende-se por substituição tributária a translação da sujeição passiva para pessoa diversa do contribuinte. Conforme define o art. 121, parágrafo único, I, do CTN contribuinte é a pessoa que tem relação pessoal e direta com a situação fática que constite o respectivo fato gerador. 

Já a substituição tributária está prevista no art. 128 do Código Tributário Nacional: “a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação”.

O contribuinte do imposto está definido implicitamente na norma de incidência tributária. Isto é, se o contribuinte é aquele que “tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato gerador”, basta determinar o fato gerador que teremos identificado o contribuinte – e.g. se o fato gerador do imposto é a propriedade, a auferição de renda ou a circulação de mercadoria, o contribuinte não pode ser outro senão o proprietário, quem aufere a renda ou quem promove operações de circulação de mercadorias. Porém, a lei pode atribuir a responsabilidade pelo recolhimento do imposto a terceiro diverso do contribuinte, embora vinculado ao fato gerador (fonte pagadora, adquirente da mercadoria etc.).

De modo geral, o diferimento do imposto para operação subsequente implica substituição tributária, na medida em que a pessoa obrigada ao recolhimento (adquirente da mercadoria) é pessoa diversa do contribuinte (pessoa que procede à saída da mercadoria de seu estabelecimento). No caso do adquirente promover nova saída tributada, por valor igual ou superior ao da entrada, o imposto que foi diferido estará incluso no imposto devido na operação subsequente ou – na linguagem utilizada pelo legislador – o imposto diferido subsume-se no imposto devido na operação subsequente.

Por outro lado, a exoneração tributária é matéria submetida à reserva absoluta de lei. O financiamento do Estado é obrigação de todos, na medida de suas respectivas capacidades contributivas. Logo, somente a lei (em sentido estrito) pode dispensar a obrigação tributária. Jamais decreto ou decisão de autoridade administrativa poderia fazê-lo. No caso do ICMS, o constituinte impôs ainda a disciplina dos convênios para o exercício da competência exonerativa. A regra encontra-se insculpida no § 6° do art. 150 da Lei Maior:

“§ 6° Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2°, XII, g”.

Por conseguinte, o imposto que foi diferido deve tornar-se exigível em algum momento. Caso contrário, o diferimento transmutar-se-ia em isenção, o que não é possível. Somente convênio celebrado entre os Estados e o Distrito Federal, nos termos da Lei Complementar 24/75, poderia autorizar a dispensa do tributo. Assim, o ICMS diferido deve ser exigível em algum momento. Caso o imposto diferido não tenha sido recolhido em algum momento no futuro, ele deve ser cobrado de ofício, com os acréscimos legais, sem prejuízo do competente inquérito administrativo para apurar a responsabilidade do funcionário que autorizou a dispensa do pagamento.

Mas, quando é devido o ICMS diferido?

O ICMS, por força do disposto no art. 155, § 2°, I, da Constituição Federal, é um imposto plurifásico não-cumulativo. Isto significa que incide em todas as etapas de comercialização da mercadoria, mas o imposto a recolher, em cada etapa, corresponde à diferença entre o imposto devido e o que foi pago nas etapas anteriores.

Então, o imposto que foi diferido em uma etapa da comercialização não gera crédito para a operação subsequente. A legislação diz que se subsume na operação seguinte, no sentido de que parte do ICMS então recolhido nada mais é senão o ICMS diferido.

Dispõe o RICMS-SC que “o imposto devido por substituição tributária subsumir-se-á na operação tributada subsequente promovida pelo substituto”. Se não houver operação tributada subsequente, o destinatário (substituto tributário) deve recolher o imposto que foi diferido, salvo se a operação subsequente for isenta ou não tributada ou se ocorrer qualquer evento que impossibilite a ocorrência do fato gerador do imposto.

Mas, o que ocorre se o imposto devido pela operação subsequente não for suficiente para cobrir o ICMS que foi diferido? Seria, por exemplo, o efeito de uma redução da base de cálculo. Como diferimento e isenção não se confundem, o imposto diferido (=postergado) deve ser satisfeito.
  
“Subsumir”, conforme Dicionário Aurélio, vem de sub- + lat. sumere (tomar, colher, aceitar). Significa conceber um indivíduo como compreendido numa espécie ou uma espécie como compreendida em um gênero. Por conseguinte, “subsumir” refere-se à absorção da parte no todo ou do menor no maior.

Ora, se o imposto devido não for suficiente para cobrir o imposto diferido, então não há absorção do diferido pelo imposto devido na operação. Em outras palavras, não há subsunção. Como – segundo o STF – do diferimento não resulta eliminação ou redução do imposto, infere-se que a parcela do imposto diferido que não se subsumiu na operação subsequente deve ser recolhida.

Com efeito, a dispensa de recolhimento do imposto diferido – quando este não se subsumir completamente na operação subsequente – caracterizaria, de fato, uma isenção a qual somente poderia ter sido instituída por lei e mediante prévia autorização pelo Confaz.

Em síntese, como diferimento não se confunde com isenção, ele deve ser recolhido em algum momento posterior, subsumindo-se no imposto devido ou, se for o caso, recolhido separadamente pelo substituto tributário.

À evidência, quando o RICMS-SC dispõe que o imposto diferido deve ser pago juntamente com o imposto relativo à operação subsequente, fica implícito que a “subsunção” do imposto pressupõe que o imposto devido na operação subsequente seja maior que o diferido (ou seja, se o imposto não tivesse sido diferido, seria deduzido como “crédito”). Caso contrário – o imposto diferido ser maior que o imposto relativo à operação subsequente – a parcela do imposto diferido que exceder o imposto próprio da operação deverá ser recolhida, sob pena de exonerar parcela do imposto devido, sem lei ou convênio que o autorize.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Critérios para identificação das mercadorias sujeitas ao ICMS-ST

Velocino Pacheco Filho

Uma dúvida recorrente é saber se determinada mercadoria está inclusa no regime de substituição tributária “para frente” ou não. Mais exatamente, se o sujeito passivo está obrigado a recolher antecipadamente o tributo devido nas etapas subsequentes de comercialização até o consumidor final ou não.

Para definir critérios objetivos de enquadramento, vamos nos basear em duas regras de interpretação: a) interpretação restritiva do direito excepcional e b) o conceito de reserva legal.

O art. 155, II, da Constituição Federal atribuiu aos Estados competência para instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e à prestação dos serviços que menciona. O § 2º, I, do mesmo artigo diz que o imposto será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.

Então, o caso normal é o imposto incidir em cada etapa de circulação da mercadoria (ou da prestação de serviço), compensando-se o imposto devido em cada etapa com o imposto que incidiu nas etapas anteriores (não-cumulatividade). O regime de substituição tributária “para frente”, que concentra toda a arrecadação em uma única etapa, ao exigir que o fabricante ou importador recolha antecipadamente todo o imposto devido nas etapas futuras, constitui exceção à não cumulatividade. 

Por conseguinte, as normas que instituem a substituição tributária, por serem normas de direito excepcional, devem ser interpretadas restritivamente, ou seja, apenas nos estritos termos da legislação. Em primeiro lugar, temos a descrição da mercadoria na lei. A mercadoria estará sujeita ao regime de substituição tributária apenas se corresponder exatamente à descrição contida na lei. A classificação da mercadoria na NCM/SH desempenha um papel subsidiário. Vejamos as seguintes hipóteses:

a) dentro de cada posição, subposição ou código da NCM/SH, estarão sujeitos à ST apenas as mercadorias que corresponderem à descrição na lei; 

b) as mercadorias abrangidas na posição, subposição ou código da NCM/SH que não corresponderem às mercadorias descritas na lei não estão submetidas à ST; e

c) no caso de conflito entre a descrição da mercadoria na lei e na NCM/SH, prevalece a descrição contida na lei.

Eventualmente, a legislação pode condicionar a inclusão da mercadoria no regime de substituição tributária à sua destinação. Nesse caso, apenas as mercadorias que tiverem essa destinação estariam sujeitas ao regime. A pergunta óbvia é: como o substituto tributário poderia saber qual a destinação que será dada à mercadoria pelo consumidor? No caso, a destinação deve ser a prevista pelo fabricante, mesmo que o consumidor lhe dê outra destinação. 

Por fim, tratando-se de norma de direito excepcional, é inviável a utilização da analogia para incluir no regime, mercadorias não descritas expressamente na lei. Isso porque, o direito excepcional afasta a possibilidade de lacuna o que inviabiliza a integração da legislação tributária, nos termos do art. 108. Ainda que fosse o caso de lacuna, o emprego da analogia é vedado pelo § 1º desse artigo.

O substituto tributário deve recolher (i) o ICMS relativo à operação própria e (ii) a antecipação, como responsável, do ICMS relativo ao fato gerador presumido. Então, no caso de inclusão por analogia de outras mercadorias no regime, estaria sendo exigido tributo não previsto em lei.

A substituição tributária nada mais é que a atribuição de responsabilidade pelo recolhimento do ICMS a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador, mas diversa do contribuinte – aquele que tem relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador (CTN, art. 121, p. único, I). Assim, a norma que institui a substituição tributária modifica o critério subjetivo, situado no consequente da norma de incidência tributária – ou regra matriz de incidência. 

Ora, segundo o art. 150, § 7º da Carta da República, somente a lei – em sentido formal – poderá atribuir a condição de responsável pelo pagamento de imposto cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente. Em outras palavras, somente a lei pode instituir a substituição tributária “para a frente” que, portanto, está abrangida pelo princípio da reserva legal. Conforme Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª e. São Paulo: Atlas, 2003, p. 199), se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente os campos materiais especificados pela Constituição estão submetidos ao da reserva da lei.

Roque Antonio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 223), por sua vez, esclarece que a lei deve conter todos os elementos e supostos da norma jurídica tributária, inclusive o sujeito passivo, elementos estes que, portanto, somente podem ser definidos por lei (em sentido estrito) e não podem ser objeto de delegação ao Poder Executivo.
Nesse sentido, manifestou-se o Supremo Tribunal Federal (ADI 1.296 PE): “o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado – como o Poder Executivo – produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar”.

A sujeição da substituição tributária ao princípio da reserva legal foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (R. Esp 1.370.908 SC, rel. Min. Humberto Martins, DJe de 4-12-2014), ao decidir que a fixação do regime de substituição tributária por decreto afronta o princípio da reserva legal.
Por conseguinte, o ICMS-ST somente pode ser exigido em relação às mercadorias expressamente previstas em lei como sujeitas ao regime – mais precisamente, no caso catarinense, somente estão sujeitas ao regime de substituição tributária as mercadorias descritas na Seção V do Anexo 1 da Lei 10.297/1996. Assim, se determinada mercadoria estiver prevista em convênio – e.g. Convênio ICMS 92/2015 – mas não estiver prevista na lei estadual, não é possível cobrar o ICMS-ST. Afinal, é necessária lei em sentido formal e convênio não é lei, mas um acordo firmado pelos Poderes Executivos dos Estados, sem o concurso dos respectivos Poderes Legislativos.

O regime de substituição tributária deve ser instituído pela lei de cada Estado. Os convênios apenas dão vigência extraterritorial à legislação estadual, de modo a obrigar o contribuinte estabelecido em outro Estado a recolher o ICMS-ST nas operações interestaduais para o Estado de destino. Claro que essa possibilidade depende da mercadoria estar prevista na lei que instituiu a substituição tributária no Estado de destino. Se determinada mercadoria estiver prevista em convênio, mas não estiver prevista na lei do Estado de destino, a substituição tributária não poderá ser exigida.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

As incertezas da técnica legislativa

Velocino Pacheco Filho

O parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal determina que “lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”. Em cumprimento ao comando constitucional, foi editada a Lei Complementar 95/1998. A providência deveria uniformizar a redação das leis (e outros diplomas normativos) em todo território nacional.

Contudo, o art. 48 da Constituição do Estado de Santa Catarina foi acrescido de parágrafo único que reproduz o disposto na Constituição Federal. Com isso, foi editada a Lei Complementar estadual 208/2001 – depois substituída pela Lei Complementar 589/2013 – que passou a disciplinar a técnica legislativa no âmbito estadual. Está aberto o caminho para o caos!

Se o constituinte nacional pretendia uniformizar as regras de como devem ser escritas as leis, o surgimento de leis de técnica legislativa em cada Estado frustra esse objetivo. Se a lei estadual simplesmente reproduzir a lei federal, será inútil; se dela divergir – como é o caso da lei catarinense – estará instaurada a balbúrdia em que as leis de cada Estado obedecerão a diferentes regras, de acordo com a fantasia dos respectivos legisladores. 

Parece tão obvio que o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal prevê uma única lei, vigente em todo território nacional, dispondo sobre como fazer leis, aplicável à União e a todos os Estados da Federação. No entanto, o constituinte estadual cismou que Santa Catarina deveria ter suas próprias regras de como redigir leis. 

Apesar dessa abundância legislativa, o legislador ordinário nem sempre observa as regras quer da lei nacional, quer da estadual. 

Vejamos o seguinte exemplo: o art. 12, III, “b” da Lei Complementar 95/1998 dispõe que é vedada a renumeração de artigo ou de unidade superior a artigo. No caso de necessitar de intercalar outro artigo, sem romper com a sequência lógica da distribuição da matéria, manda o dispositivo utilizar o mesmo número do artigo anterior, seguido de letra maiúscula em ordem alfabética.

Mas isso somente pode ser feito com artigos ou unidade superior a artigo (i. e. seção capítulo, título etc.). Porém, não é raro encontramos na legislação parágrafos (que é uma divisão do artigo) cuja numeração é seguida de letras maiúsculas. É de admirar que o legislativo, seja a Assembleia Legislativa ou o Congresso Nacional, não disponha de revisores  que zelem para que as leis saiam de acordo com a técnica legislativa aprovada pelo próprio Poder Legislativo.   

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A criminalização da falta de recolhimento do ICMS

Velocino Pacheco Filho
A conduta delituosa prevista no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990 não é apenas deixar de recolher tributo no prazo legal, mas deixar de recolher tributo descontado ou cobrado. Incorre nesse crime o responsável tributário, conforme definido no inciso II do parágrafo único do art. 121 do CTN, os seja aquele a quem a lei atribui o dever de recolher o tributo no lugar do contribuinte. O exemplo perfeito é a retenção de Imposto de Renda pela fonte pagadora.

Mas, incorreria também nesse crime o contribuinte do ICMS que deixasse de recolher aos cofres públicos o ICMS declarado, relativo a operações próprias? Em outras palavras, o contribuinte de direito seria um mero agente arrecadador, descontando ou cobrando o ICMS devido na operação do comprador da mercadoria – contribuinte de fato? Nesse caso, apenas o dever de recolher teria sido atribuído a um terceiro, na forma do art. 128 do CTN. Conforme José Alves Paulino (Crimes contra a Ordem Tributária: comentários à Lei 8.137/90, Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 68):

... esse substituto tributário, na verdade, tem a natureza jurídica de depositário fiel das importâncias retidas de terceiros para, no prazo legal, fixado pela lei, fazer o recolhimento delas aos cofres públicos.
É a lei formal que prevê a obrigação de retenção e, igualmente por definição legal transformou as empresas em fonte arrecadadora de tributos e contribuições devidas por terceiros.

O ICMS declarado e não pago, nos termos da legislação vigente, caracteriza evidentemente infração tributária. Como tal deve ser inscrito em dívida ativa e levado à execução, acrescido da multa respectiva. Mas, além disso, constituiria também crime, punível com pena privativa de liberdade – detenção de seis meses a dois anos?

A descrição da conduta delitiva deve ser exata. Cesare Beccaria enunciou o princípio da legalidade no direito penal nos seguintes termos: nullum crimen, nulla poena sine praevia lege. O princípio foi consagrado no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição da República – portanto, entre os direitos fundamentais: “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Em outros termos, somente lei em sentido estrito pode definir qual conduta deve ser considerada criminosa. Não se admitem lacunas na configuração dos tipos criminais ou nas condutas que os caracterizam. Nem mesmo as chamadas “normas penais em branco” admitem lacunas, pois o conteúdo ausente deve ser preenchido por outra norma pertencente ao sistema. Se a previsão legal for inexistente ou incompleta, não fica caracterizado o crime e, sem crime, não há punição. O direito penal é, portanto, completo. Não se admite que a analogia, os costumes ou os princípios gerais de direito criminalizem condutas quando a lei não o fez expressamente. A analogia, no direito penal, somente é admissível em favor do acusado (in bonam partem). 

Assim, a conduta para ser tida como criminosa deve ser descrita de modo pormenorizado. Caso contrário, não pode ser punida. Conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt (Tratado de Direito Penal. Vol. 1: Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2008, p.11):

... pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras  é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida.

Ainda segundo esse autor, a descrição da conduta proibida não pode ter o seu sentido completado pelo juízo valorativo do magistrado, o que representaria grave violação à segurança jurídica e ao princípio da reserva legal.

Assim, para a caracterização do crime previsto no inciso II do art. 2º é imprescindível que o ICMS repercuta integralmente sobre o contribuinte de fato que arcaria com todo o ônus tributário. Apenas em tal hipótese o contribuinte de direito se caracterizaria como mero agente arrecadador.

Então, a falta de recolhimento do ICMS declarado pelo contribuinte de direito caracteriza o crime capitulado no inciso II do art. 2º da Lei dos crimes contra a ordem tributária?

Decidiu afirmativamente a esta questão a Quinta Turma do STJ, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 44465 SC, relator o Min. Leopoldo de Arruda Raposo, publicado no DJe 25-6-2015:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS DECLARADO PELO PRÓPRIO CONTRIBUINTE. FATO QUE SE AMOLDA, EM TESE, AO CRIME PREVISTO NO ARTIGO 2º, INCISO II, DA LEI 8.137/1990. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. DESPROVIMENTO DO RECURSO.

O relator, em seu voto, deixa claro que o contribuinte deixou de recolher aos cofres públicos os valores apurados e declarados em Declarações de Informações do ICMS e Movimento Econômico - DIMEs à Secretaria da Fazenda do Estado de Santa Catarina, nos períodos de fevereiro a outubro de 2009, e dezembro de 2009 a fevereiro de 2010. Entendeu a Turma que pratica o ilícito aquele que não pagou, no prazo legal, ICMS que foi incluído em serviços ou mercadorias colocadas em circulação, mas não recolhido ao Fisco.

Contudo, em sentido contrário entendeu a Sexta Turma do mesmo Sodalício, no julgamento do REsp. 1.543.485 GO, Sexta Turma do STJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura (DJe 15-4-2016):

RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ARTIGO 2º, INCISO II,  DA  LEI  8.137/1990.  NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS PRÓPRIO. MERO INADIMPLEMENTO. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
1.  O delito do artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/90 exige que o sujeito passivo desconte  ou  cobre valores de terceiro e deixe de recolher o tributo aos cofres públicos.
2. O comerciante que vende mercadorias com ICMS embutido no preço e, posteriormente,  não  realiza  o  pagamento  do tributo não deixa de repassar  ao  Fisco  valor  cobrado  ou  descontado de terceiro, mas simplesmente torna-se inadimplente de obrigação tributária própria.
3. Recurso desprovido.

Quem tem razão? A matéria discutida envolve os conceitos de contribuinte de fato e de direito. Tratando-se de impostos sobre o consumo – como é o caso do ICMS – o contribuinte de direito é aquele que realiza o fato gerador, como definido no art. 121, parágrafo único, I, do CTN. O contribuinte de fato, por sua vez, é quem sofre a repercussão do tributo ou quem arca com o seu ônus financeiro – o consumidor, em última análise.

Alfredo Augusto Becker (Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 533) distingue entre a repercussão jurídica e a repercussão econômica do tributo. A “incidência jurídica do tributo significa o nascimento do dever jurídico tributário que ocorre após a incidência da regra jurídica sobre sua hipótese de incidência realizada”. O contribuinte de direito é a pessoa que sofre a incidência jurídica do tributo. Enquanto a “pessoa que suporta definitivamente o ônus econômico do tributo (total ou parcial), por não poder repercuti-lo sobre outra pessoa, é o contribuinte ‘de fato’”. 

Ora, leciona o mesmo autor que a repercussão do ônus econômico do tributo, do contribuinte de direito para outra pessoa, poderá ser total ou parcial, bem como poderá ser sobre uma só pessoa ou sobre diversas pessoas.

.... o legislador, ao criar a incidência jurídica do tributo, simultaneamente, cria regra jurídica que outorga ao contribuinte de jure do direito de repercutir o ônus econômico do tributo sobre outra determinada pessoa. Desde logo, cumpre advertir que esta repercussão jurídica do tributo, de modo algum, significa a realização da repercussão econômica do mesmo. Esta repercussão econômica pode ocorrer apenas parcialmente ou até não se realizar, embora no plano jurídico tenha se efetivado (idem, p. 534).

Contudo, “os fatores decisivos da repercussão econômica do tributo são estranhos à natureza do tributo e determinados pela conjuntura econômico-social” (idem, p. 541). Com efeito, embora o tributo seja sempre uma componente do preço, não necessariamente será suportado pelo contribuinte de fato. Ele pode ser suportado, no todo ou em parte pelo contribuinte de direito (via redução do mark up). Quando isso acontece?

Em primeiro lugar, a capacidade de transferir o tributo ao adquirente da mercadoria depende de como o mercado daquele produto se organiza. Assim, em um mercado oligopolista (poucos vendedores e muitos compradores), quem vende pode impor o preço a quem compra, inclusive repassando integralmente o imposto que onerou a mercadoria. Contudo, no caso dos monopsônios (um só comprador) ou oligopsônios (poucos compradores e muitos vendedores) o poder de monopólio atua contrariamente à repercussão do tributo. Como exemplo, temos o mercado de fumo em folha em que temos muitos produtores vendendo o seu produto e poucos compradores que determinam o preço que irão pagar pelo produto, inclusive fazendo o tributo recair sobre os vendedores. Geralmente o ICMS relativo a produtos agrícolas é diferido, de modo que o comprador desconta do produtor e recolhe ao Erário. Nesse caso, e falta de recolhimento caracterizaria o crime previsto no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990. 

Contudo, em regime de concorrência – muitos compradores e muitos vendedores – o preço é definido pela interação entre vendedores (oferta) e compradores (demanda). A empresa é uma tomadora de preços e consequentemente ela somente transfere o tributo ao adquirente se e na medida em que o mercado o permitir. A repercussão do tributo, nesse caso, depende de características do mercado do produto em questão, tais como a elasticidade-preço da demanda (i. e. como a demanda do produto reage a um aumento de preços).

Não é demais lembrar que o art. 170, IV, da Constituição consagra a livre concorrência como um dos princípios informadores da ordem econômica e que o § 4º do art. 173 determina que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Por outro lado, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, dispõe que lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência. 

Ora, em regime de concorrência, a empresa não vende o produto pelo preço que quiser, de modo a transmitir ao consumidor a integralidade do tributo. A empresa é uma tomadora de preços. Vejamos como isso ocorre: 

O preço cobrado do consumidor pode ser dividido em duas parcelas: uma que representa a remuneração do vendedor e outra que é receita do Estado (o tributo). Partindo de uma situação inicial sem tributação, a introdução do tributo implica em elevação de preço à qual os consumidores reagem diminuindo as quantidades demandadas (lei da demanda). Ao final, define-se uma nova posição de equilíbrio: novos preço e quantidade de equilíbrio. A questão é saber se a variação de preço (em relação à situação inicial) é suficiente para absorver o tributo. Caso afirmativo, a repercussão do tributo será total. Caso contrário, a repercussão será parcial e parte do tributo terá de ser absorvida pela diminuição da remuneração do vendedor. Nesse caso, o contribuinte de direito arca efetivamente com o ônus do tributo (ou parte dele) e não há que se falar em tributo “descontado ou cobrado” de terceiro como exige o art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, para ficar caracterizado o crime contra a ordem tributária.

Poder-se-ia objetar que este é um raciocínio econômico e não jurídico. Costuma-se dizer que “o direito cria suas próprias realidades”. Com efeito, o direito utiliza frequentemente ficções e presunções: ao completar 21 anos, quem na véspera era relativamente incapaz, adquire, de chofre, capacidade plena; o inimputável, passa, ao completar 18 anos, a responder criminalmente pelos seus atos. Conforme Becker, “na presunção a lei estabelece como verdadeiro um fato que provavelmente é verdadeiro; na ficção a lei estabelece como verdadeiro um fato que provavelmente ou com toda certeza é falso” (op. cit. p. 522).

O legislador lança mão de presunções e ficções para atender a propósitos de praticabilidade ou para resolver dificuldades. É por esse motivo que o legislador abandona a realidade e cria conscientemente uma falsidade. O poder do direito de criar suas próprias realidades, porém, não é ilimitado. O direito não pode revogar a lei da gravidade, nem a lei da oferta e da procura. O fato, em toda a sua complexidade não pode ser totalmente ignorado pelo direito. Em primeiro lugar, o uso de presunções e ficções deve ser justificado; em segundo, trata-se de prerrogativa do legislador e não do intérprete. 

Pois bem, o direito tributário brasileiro reconhece expressamente a repercussão econômica do tributo no art. 166 do CTN que ao tratar da restituição do indébito, para preservar os direitos do contribuinte de jure, condicionou a restituição à prova de que o requerente não repassou o ônus do tributo ao adquirente da mercadoria ou, tendo-o repassado, estar por ele autorizado a pedir restituição. Daí que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 546, do seguinte teor: “Cabe restituição de tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte ‘de jure’ não recuperou do contribuinte ‘de facto’ o ‘quantum’ respectivo”.

O requerente poderá demonstrar que arcou com o ônus do imposto e não o repassou no preço cobrado. Em outras palavras, o legislador reconhece expressamente que o tributo não necessariamente repercute sobre o contribuinte de fato, caso em que será suportado, ainda que parcialmente pelo contribuinte de direito.

Nesse caso, a criminalização da simples falta de recolhimento decorre de uma ampliação, não pretendida pelo legislador, e da adoção de uma ficção pelo intérprete (qual seja: que o tributo sempre repercute, integralmente, sobre o consumidor). Porém, a repercussão econômica não foi afastada pelo legislador positivo. Pelo contrário, ele a reconhece ao tratar de repetição do indébito.

Então, considerando a repercussão econômica, não podemos afirmar simplistamente que todo o tributo é sempre suportado pelo contribuinte de fato. Por conseguinte, não se pode afirmar que o ICMS declarado e não recolhido caracterizaria necessariamente o crime previsto no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990.

Becker, com espeque em Earl R. Rolph, critica o entendimento de que o acréscimo do tributo ao preço, por si só, significa repercussão do mesmo. É o caso dos que se julgam tributados quando se lhes apresenta uma fatura em que o vendedor põe o imposto como uma das parcelas. O preço cotizado separadamente do imposto na ausência deste não seria um fato observável (BECKER, 2002, p. 541). 

O autor citado refere-se a esta visão esquemática do direito tributário, como “a simplicidade da ignorância”. O direito de reembolso – o direito de recuperar o imposto recolhido do contribuinte de fato – não constitui prova da repercussão. Mediante o direito de reembolso, ocorre no plano jurídico uma repercussão jurídica do tributo que é independente da repercussão econômica do mesmo (op. cit, p. 414).
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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A regra de contagem de prazos no direito tributário

Velocino Pacheco Filho

O art. 219 do novo Código de Processo Civil – Lei 13.105, de 2015 – adotou a regra de computarem-se somente os dias úteis, na contagem de prazos em dias. Deverá essa regra ser adotada também no direito tributário?

A resposta deve ser negativa, por dois motivos.

Em primeiro lugar, a aplicação das regras do novo CPC, conforme dispõe o § 2º do art. 1.046, as suas disposições aplicam-se apenas supletivamente aos procedimentos regulados em outras leis, como é o caso do direito tributário que tem regra própria para a contagem dos prazos – art. 210 do CTN. Trata-se da velha regra de resolução de antinomias: lex specialis derrogat generali.

Aplicação supletiva quer dizer que se aplica de modo complementar. Apenas quando o ramo do direito em questão não tiver regra própria é que pode ser aplicada a regra do CPC. Como o parágrafo único do próprio art. 219 esclarece, a regra de contagem de prazos aplica-se somente aos prazos processuais.

Em segundo lugar, o Código Tributário Nacional – Lei 5.172/1966 – embora promulgado como lei ordinária, foi recepcionado como lei complementar – conforme sua materialidade – pela Constituição de 1967, pela EC 1/1969 e pela Constituição de 1988. Nessa última a recepção foi expressa, nos termos do § 5º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Com efeito, o § 1º do art. 19 da Constituição Federal de 1967 reservou à lei complementar a competência para estabelecer normas gerais de direito tributário, dispor sobre conflitos de competência entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e regular as limitações constitucionais do poder de tributar.

O direito brasileiro não admite inconstitucionalidade formal superveniente. Assim, se determinada matéria foi tratada por lei ordinária, de acordo com o rito legislativo então em vigor e se o seu conteúdo não for contrário à nova constituição, ela será recepcionada pela nova ordem constitucional, mesmo que a nova constituição exija lei complementar para tratar da mesma matéria.

Então, se o Código Tributário Nacional adquiriu o status de lei complementar – é materialmente lei complementar – somente pode ser alterado por lei complementar. Ora, o Código de Processo Civil não é lei complementar, logo, suas disposições não tem o condão de alterar disposição do Código Tributário Nacional.

Os prazos fixados na legislação tributária continuam regendo-se pela regra do art. 210 do CTN, ou seja, são contínuos, excluindo-se na sua contag

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Em tempos de PEC 241

Velocino Pacheco Filho

Como solução heroica para equilibrar as contas públicas, o Governo propõe o engessamento do gasto público pelos próximos vinte anos, reajustado apenas pela inflação. A irresponsabilidade na gestão da coisa pública ao longo dos anos levou a isso.

Contudo, outros aspectos devem ser levados em conta, como a deterioração dos serviços públicos em geral oferecidos à população. Quem mais sofre com isso é exatamente a população de baixa renda, os mais desprotegidos, que dependem mais dos serviços oferecidos pelo Estado.

Alguns setores reclamam investimentos urgentes como saúde, educação e segurança pública. Quanto à segurança, a escalada da violência, o crime organizado e o desaparelhamento da polícia levam a crer na falência do próprio Estado que demonstra ser incapaz de proteger o cidadão e seus bens.

A falência dos serviços públicos atinge, por fim, a própria economia: a mão-de-obra disponível cada vez mais desqualificada e vulnerável à doenças; necessidade de maior gasto do setor privado em segurança, etc.

O Governo anuncia que não irá aumentar impostos, o que constitui uma política sensata, considerando que a capacidade de contribuir dos brasileiros está chegando ao seu limite. O engessamento do gasto combinado com aumento de impostos é uma receita segura para a recessão. Por outro lado, a dívida pública, como forma de financiamento do Estado, revela-se inviável pela forte pressão que provoca sobre o gasto. 

Então, como poderão ser financiados os investimentos urgentes e necessários em serviços públicos?

Dois caminhos se oferecem – embora politicamente impopulares – que devem ser enfrentados conjuntamente: a busca da maior eficiência na administração pública e a revisão dos benefícios fiscais. Qual a justificativa para a renúncia fiscal?

O art. 37 da Constituição da República consagra a eficiência como um dos princípios que informam a administração pública. A eficiência – com a eficácia como seu corolário – consiste na melhor utilização dos recursos disponíveis para obter o melhor resultado possível. Eficiência administrativa implica eliminação do desperdício, da irresponsabilidade na gestão pública, da protelação e de negociação nas licitações públicas. Eficiência administrativa tem como contrapartida a prestação de contas, a gestão transparente, o respeito pelo cidadão-contribuinte, a ética no serviço público, enfim, aquilo que na língua inglesa é designado como accountability.

Mas isso não basta! Urge revisar os benefícios fiscais que se eternizam na legislação. Todos são iguais perante a lei; todos devem contribuir para o financiamento do Estado, na medida da capacidade contributiva de cada um. A exceção a esta regra deve ser devidamente justificada. Porque alguém deve ser dispensado de uma obrigação que deve ser de todos - um dever da cidadania? 

A desoneração tributária, quando não justificada, conforme os princípios que regem o Estado democrático de direito, não passa de um privilégio odioso que beneficia alguns em detrimento da maioria. Nessa perspectiva devem ser revistos os regimes especiais de tributação e os tratamentos tributários diferenciados que impliquem dispensa de tributos concedida individualmente. A boa hermenêutica manda que tudo o que for exceção a uma regra geral, como o dever de todos de pagar impostos, deve ser interpretado restritivamente.