Fabiano Ramalho
Por muito tempo
se acreditou que seria possível criar um “pacote” de medidas capaz de reformar
todo o sistema tributário de uma só vez. Era uma visão romântica, que hoje não
existe mais, e que encarava o sistema de Direito Tributário do ponto de vista
eminentemente técnico.
Não que seja
impossível tal reforma ampla, mas as condições políticas atuais não só no Brasil,
mas no mundo globalizado, são desfavoráveis. Atualmente, uma mudança desse porte se
assemelharia mais a uma utopia, preterida em prol da concentração de esforços
nas mudanças pontuais e setoriais, cada um segundo seu próprio conjunto de
interesses públicos e/ou privados.
Parece que estamos
perdendo, cada vez mais, a coragem de enfrentar essas mudanças, talvez
distraídos pela imensa quantidade de regras tributárias vigentes, que
transformam o dia-a-dia dos operadores do Direito Tributário numa corrida louca
e incessante contra o descumprimento das obrigações principais e acessórias e,
consequentemente, contra toda sorte de penalidade disponível no amplo cardápio
da legislação tributária nacional.
É um cenário
surreal, que transforma juristas em burocratas do Direito.
No entanto, tal
realidade esconde um efeito perverso: na medida em que nos distanciamos de um
debate amplo sobre a tributação e nos condicionamos a reagir marginalmente ao
sistema, com preocupações pequenas e desconectadas, vamos, paulatinamente,
perdendo a capacidade de preservar valores e princípios basilares do Direito
Tributário, e passamos a assistir, impotentes, sua desconstrução sistemática.
A
pós-modernidade, no conjunto de todos os seus males, não descuidou de abalar as
estruturas do Direito, relativizando-as de tal sorte que beiramos a um estado de
insegurança jurídica preocupante.
Misabel Abreu
Machado Derzi, referindo-se às problemáticas mudanças da pós-modernidade do
Direito, assevera que “instalam-se, ao
lado do pluralismo e da complexidade, a ausência de regras, a permissividade, a
descrença generalizada, a incerteza e a indecisão, de tal modo que princípios
jurídicos até então sólidos e bem fundamentados como segurança jurídica,
capacidade contributiva, progressividade do imposto, igualdade e até mesmo
legalidade são postos em dúvida”[1].
Vivemos como
reféns das leis do mercado e viramos mesmo o protótipo ideal da sociedade de consumo.
Nessa sociedade, o mercado tem pressa e não há tempo para conjecturas de ordem
ética ou moral além dos limites do descarte e da reciclagem dos modelos e
padrões sociais impostos. Ética e moral, via regra, viraram mercadorias na
sociedade de consumo. O sociólogo Zigmunt Bauman vem dedicando sua vasta obra
ao estudo dos dramas da pós-modernidade e como eles afetam e condicionam nossas
propostas de futuro.
No seu livro “Vida
Líquida”[2],
por exemplo, citando Adorno e Pierre Bourdieu, ele sustenta que, na moderna
sociedade de consumo, “os indivíduos são
reduzidos à mera sequência de experiências instantâneas que não deixam traço,
ou então cujo traço é odiado como irracional, supérfluo ou suplantado no sentido
literal do termo. [...] pessoas que não têm nem um pequeno ponto de apoio no
presente (e não o têm, dadas as experiências notoriamente voláteis e disformes,
fragmentadas em pequenos e rápidos episódios) não reunirão a coragem exigida
para se apoiar no futuro”.
Hannah Arendt enxerga uma certa neo-idade das trevas nos tempos pós-modernos, caracterizada
“por um discurso que não revela o que é, mas varre seus atributos para baixo do
tapete, por exortações morais ou de qualquer outro tipo que, sob o pretexto de
sustentar antigas verdades, rebaixam toda verdade à trivialidade sem sentido”.[3]
É tamanha a
desconstrução de valores e princípios que, nesse ritmo, logo não restarão vestígios do mundo
moderno nem para fins de arqueologia moral. O que não percebemos é que esse
estado de coisas adota práticas revolucionárias e, de forma orgânica, promove
um verdadeiro golpe às instituições sociais, políticas e jurídicas, minando aos poucos nossa
capacidade de resistência e fragmentando nossos esforços. Retiram nossas armas e, depois, nossa consciência moral.
E, na esfera do
Direito Tributário, essa revolução encontra uma nova e poderosa ferramenta: a da
transformação social pelo tributo. Enquanto esperávamos por uma reforma
tributária completa, pronta e acabada, assistimos passivamente um governo, supostamente
influenciado por ideais sociais, promover, a conta-gotas e via decreto, mini-reformas na
legislação, centralizando fortemente a arrecadação no Governo
Federal e criando mecanismos que corroem os princípios e garantias
constitucionais dos contribuintes, como, por exemplo, a capacidade
contributiva, a legalidade e a vedação do confisco.
No mesmo
contexto, políticas de transferência de renda mal engendradas e o
insustentável peso dos tributos começam a comprometer a legitimidade
sociológica do tributo (sobre o assunto, ler o artigo deste Blog "A Legitimidade Sociológica do Poder Fiscal", disponível aqui).
Thomas Piketty
defende abertamente o uso do Tributo como instrumento de mudança social. Em seu
livro “Por Uma Revolução Fiscal”, ele diz que “o imposto não é apenas uma questão técnica: ele implica numa questão
eminentemente política, que pode contribuir para remodelar as relações entre as
pessoas e os grupos sociais.”[4].
Como se
percebe, muito além de uma reforma fiscal, ele defende uma revolução social por
meio do tributo. Não é comum esse nível de literalidade tão agudo em intelectuais desse calibre. Piketty
defende uma série de mudanças no imposto sobre a renda e sobre o patrimônio na
França, preocupado não só com um tributo mais justo e proporcional, mas
sobretudo com uma redistribuição de renda mais agressiva e um controle maior do
Estado sobre a economia (e os mais ricos). Suas bandeiras são: individualização do imposto,
progressividade e equidade.
Sob o prisma da individualização, ele defende, por exemplo, a eliminação dos privilégios fiscais da Declaração Conjunta de I.R. para casais (quotient conjugal), visando uma maior emancipação econômica e profissional da mulher, afetando, assim, o planejamento familiar, para privilegiar (e incentivar) o crescimento das "novas" famílias, experiências transgênicas e voláteis adequadas ao mercado consumidor.
Sob o prisma da individualização, ele defende, por exemplo, a eliminação dos privilégios fiscais da Declaração Conjunta de I.R. para casais (quotient conjugal), visando uma maior emancipação econômica e profissional da mulher, afetando, assim, o planejamento familiar, para privilegiar (e incentivar) o crescimento das "novas" famílias, experiências transgênicas e voláteis adequadas ao mercado consumidor.
Não nos
interesse nesse artigo aprofundar o debate sobre as teorias de Piketty, pelo
que recomendamos a leitura do artigo publicado em maio de 2015, por Velocino
Pacheco, disponível aqui. Mas a referência à sua obra serve para ilustrar melhor
aquilo que estamos defendendo aqui, que é o uso do Direito Tributário como instrumento
político de reformas sociais, ou, se preferirem, o uso ideológico do tributo.
Vivemos, no Brasil, uma revolução silenciosa, em parte promovida pela manipulação do sistema tributário, remodelando valores, princípios e dogmas tanto do Direito Público como do Privado. O famoso lema da Revolução Francesa, enredo da Marseillaise, aux armes, citoyens!, parece agora adaptado para a realidade brasileira como aux impôts, citoyens!
Vivemos, no Brasil, uma revolução silenciosa, em parte promovida pela manipulação do sistema tributário, remodelando valores, princípios e dogmas tanto do Direito Público como do Privado. O famoso lema da Revolução Francesa, enredo da Marseillaise, aux armes, citoyens!, parece agora adaptado para a realidade brasileira como aux impôts, citoyens!
[1]
DERZI, Misabel Abreu Machado. A
Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça
Individual. In: Tributos e
Direitos Fundamentais. Coordenador Octávio Campos Fischer. São Paulo:
Dialética, 2004, p.262.
[2]
BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida. Tradução
Carlos Alberto Medeiros, 2ª Ed. Rio
de Janeiro: Zahar, 2009.
[3] ARENDT, Hannah. Man in Dark Times. Haarcourt Brace, 1983, p.8.
[4] PIKETTY, Thomas. Pour Une Révolution Fiscale. Un Impôt sur le Revenu pour le XXIe
Siècle. Seuil, 2011. P.67.
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