DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

REFORMA TRIBUTÁRIA E REVOLUÇÃO SILENCIOSA

Fabiano Ramalho

Por muito tempo se acreditou que seria possível criar um “pacote” de medidas capaz de reformar todo o sistema tributário de uma só vez. Era uma visão romântica, que hoje não existe mais, e que encarava o sistema de Direito Tributário do ponto de vista eminentemente técnico.

Não que seja impossível tal reforma ampla, mas as condições políticas atuais não só no Brasil, mas no mundo globalizado, são desfavoráveis. Atualmente, uma mudança desse porte se assemelharia mais a uma utopia, preterida em prol da concentração de esforços nas mudanças pontuais e setoriais, cada um segundo seu próprio conjunto de interesses públicos e/ou privados.

Parece que estamos perdendo, cada vez mais, a coragem de enfrentar essas mudanças, talvez distraídos pela imensa quantidade de regras tributárias vigentes, que transformam o dia-a-dia dos operadores do Direito Tributário numa corrida louca e incessante contra o descumprimento das obrigações principais e acessórias e, consequentemente, contra toda sorte de penalidade disponível no amplo cardápio da legislação tributária nacional.

É um cenário surreal, que transforma juristas em burocratas do Direito.

No entanto, tal realidade esconde um efeito perverso: na medida em que nos distanciamos de um debate amplo sobre a tributação e nos condicionamos a reagir marginalmente ao sistema, com preocupações pequenas e desconectadas, vamos, paulatinamente, perdendo a capacidade de preservar valores e princípios basilares do Direito Tributário, e passamos a assistir, impotentes, sua desconstrução sistemática.

A pós-modernidade, no conjunto de todos os seus males, não descuidou de abalar as estruturas do Direito, relativizando-as de tal sorte que beiramos a um estado de insegurança jurídica preocupante.

Misabel Abreu Machado Derzi, referindo-se às problemáticas mudanças da pós-modernidade do Direito, assevera que “instalam-se, ao lado do pluralismo e da complexidade, a ausência de regras, a permissividade, a descrença generalizada, a incerteza e a indecisão, de tal modo que princípios jurídicos até então sólidos e bem fundamentados como segurança jurídica, capacidade contributiva, progressividade do imposto, igualdade e até mesmo legalidade são postos em dúvida[1].

Vivemos como reféns das leis do mercado e viramos mesmo o protótipo ideal da sociedade de consumo. Nessa sociedade, o mercado tem pressa e não há tempo para conjecturas de ordem ética ou moral além dos limites do descarte e da reciclagem dos modelos e padrões sociais impostos. Ética e moral, via regra, viraram mercadorias na sociedade de consumo. O sociólogo Zigmunt Bauman vem dedicando sua vasta obra ao estudo dos dramas da pós-modernidade e como eles afetam e condicionam nossas propostas de futuro.

No seu livro “Vida Líquida”[2], por exemplo, citando Adorno e Pierre Bourdieu, ele sustenta que, na moderna sociedade de consumo, “os indivíduos são reduzidos à mera sequência de experiências instantâneas que não deixam traço, ou então cujo traço é odiado como irracional, supérfluo ou suplantado no sentido literal do termo. [...] pessoas que não têm nem um pequeno ponto de apoio no presente (e não o têm, dadas as experiências notoriamente voláteis e disformes, fragmentadas em pequenos e rápidos episódios) não reunirão a coragem exigida para se apoiar no futuro”.

Hannah Arendt enxerga uma certa neo-idade das trevas nos tempos pós-modernos, caracterizada “por um discurso que não revela o que é, mas varre seus atributos para baixo do tapete, por exortações morais ou de qualquer outro tipo que, sob o pretexto de sustentar antigas verdades, rebaixam toda verdade à trivialidade sem sentido”.[3]

É tamanha a desconstrução de valores e princípios que, nesse ritmo, logo não restarão vestígios do mundo moderno nem para fins de arqueologia moral. O que não percebemos é que esse estado de coisas adota práticas revolucionárias e, de forma orgânica, promove um verdadeiro golpe às instituições sociais, políticas e jurídicas, minando aos poucos nossa capacidade de resistência e fragmentando nossos esforços. Retiram nossas armas e, depois, nossa consciência moral.

E, na esfera do Direito Tributário, essa revolução encontra uma nova e poderosa ferramenta: a da transformação social pelo tributo. Enquanto esperávamos por uma reforma tributária completa, pronta e acabada, assistimos passivamente um governo, supostamente influenciado por ideais sociais, promover, a conta-gotas e via decreto, mini-reformas na legislação, centralizando fortemente a arrecadação no Governo Federal e criando mecanismos que corroem os princípios e garantias constitucionais dos contribuintes, como, por exemplo, a capacidade contributiva, a legalidade e a vedação do confisco.

No mesmo contexto, políticas de transferência de renda mal engendradas e o insustentável peso dos tributos começam a comprometer a legitimidade sociológica do tributo (sobre o assunto, ler o artigo deste Blog "A Legitimidade Sociológica do Poder Fiscal", disponível aqui).

Thomas Piketty defende abertamente o uso do Tributo como instrumento de mudança social. Em seu livro “Por Uma Revolução Fiscal”, ele diz que “o imposto não é apenas uma questão técnica: ele implica numa questão eminentemente política, que pode contribuir para remodelar as relações entre as pessoas e os grupos sociais.[4].

Como se percebe, muito além de uma reforma fiscal, ele defende uma revolução social por meio do tributo. Não é comum esse nível de literalidade tão agudo em intelectuais desse calibre. Piketty defende uma série de mudanças no imposto sobre a renda e sobre o patrimônio na França, preocupado não só com um tributo mais justo e proporcional, mas sobretudo com uma redistribuição de renda mais agressiva e um controle maior do Estado sobre a economia (e os mais ricos). Suas bandeiras são: individualização do imposto, progressividade e equidade.

Sob o prisma da individualização, ele defende, por exemplo, a eliminação dos privilégios fiscais da Declaração Conjunta de I.R. para casais (quotient conjugal), visando uma maior emancipação econômica e profissional da mulher, afetando, assim, o planejamento familiar, para privilegiar (e incentivar) o crescimento das "novas" famílias, experiências transgênicas e voláteis adequadas ao mercado consumidor.

Não nos interesse nesse artigo aprofundar o debate sobre as teorias de Piketty, pelo que recomendamos a leitura do artigo publicado em maio de 2015, por Velocino Pacheco, disponível aquiMas a referência à sua obra serve para ilustrar melhor aquilo que estamos defendendo aqui, que é o uso do Direito Tributário como instrumento político de reformas sociais, ou, se preferirem, o uso ideológico do tributo. 

               Vivemos, no Brasil, uma revolução silenciosa, em parte promovida pela manipulação do sistema tributário, remodelando valores, princípios e dogmas tanto do Direito Público como do Privado. O famoso lema da Revolução Francesa, enredo da Marseillaise, aux armes, citoyens!, parece agora adaptado para a realidade brasileira como aux impôts, citoyens!



[1] DERZI, Misabel Abreu Machado. A Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça Individual. In: Tributos e Direitos Fundamentais. Coordenador Octávio Campos Fischer. São Paulo: Dialética, 2004, p.262.
[2] BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros, 2ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
[3] ARENDT, Hannah. Man in Dark Times. Haarcourt Brace, 1983, p.8.
[4] PIKETTY, Thomas. Pour Une Révolution Fiscale. Un Impôt sur le Revenu pour le XXIe Siècle. Seuil, 2011. P.67.

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