Velocino Pacheco Filho
Afinal! Incide ICMS
nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa ou
não? A incidência está expressamente prevista no art. 12 da Lei Complementar
87/1996. Além disso, o § 4º do art. 13 da mesma Lei define a base de cálculo do
imposto nessa mesma hipótese. Não podemos esquecer que a LC 87/96 dispõe sobre normas
gerais do ICMS, usando da competência atribuída à União pelo art. 146, III, da
Constituição.
No entanto, os
tribunais superiores têm decidido que não há incidência do ICMS nas
transferências. Embora sem declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos
legais mencionados, no controle concentrado ou pelo rito previsto no art. 52,
X, da Constituição, os tribunais têm negado a sua aplicação, nos casos que lhes
foram submetidos.
A justificação
dessas decisões tem por base a discussão do sentido da expressão “circulação”
empregada pelo constituinte ao definir a materialidade da hipótese de incidência:
trata-se de uma circulação jurídica ou de uma circulação econômica? Em outras
palavras, para ficar caracterizado o fato gerador do imposto, é necessária a
mudança de titularidade da mercadoria?
A jurisprudência dos
tribunais adotou claramente a teoria da circulação jurídica. Por conseguinte,
os dispositivos mencionados da LC 87/96 não poderiam ser aplicados, uma vez que
a legislação infraconstitucional não pode ampliar a materialidade dos fatos
tributáveis pelos Estados-membros, conforme competência tributária a eles
atribuída pela Constituição.
Sobre esse ponto,
cabem dois comentários: (i) os dispositivos em comento da LC 87/96 não foram
excluídos do ordenamento jurídico, permanecendo em vigor em relação aos casos
não apreciados pelos tribunais e (ii) a incompatibilidade dos dispositivos com
a Constituição deve-se apenas à interpretação emprestada ao vocábulo
“circulação”.
Com efeito, em
oposição à circulação jurídica, parte da doutrina defende a teoria da
circulação econômica que não considera a mudança da titularidade da mercadoria
como condição necessária para caracterizar a ocorrência do fato gerador do
imposto. Bastaria que a operação movimente a mercadoria, aproximando-a do
consumidor, para ficar caracterizado o fato gerador do ICMS.
Mas, em termos
práticos, qual a implicação de adotar a circulação jurídica ou a circulação
econômica? A resposta é simples: conforme o conceito de circulação adotado,
diferente será a transmissão do crédito do imposto.
Segundo art. 155, §
2º, I, da Constituição Federal, o ICMS é imposto não-cumulativo, compensando-se
o que for devido em cada operação ou prestação com o montante cobrado nas
anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Então o imposto
cobrado em uma fase do ciclo de comercialização torna-se crédito para compensar
o imposto devido na seguinte. O objetivo da regra da não-cumulatividade é
transmitir o crédito até a última operação com o consumidor final, de modo que
a totalidade do imposto cobrado seja ônus do consumidor e não do aparelho
produtivo.
Ora, a teoria da
circulação jurídica da mercadoria não reconhece a incidência do imposto no caso
de mera transferência entre estabelecimentos pertencentes à mesma empresa. Por
definição legal, a apuração do imposto (confronto entre débitos e créditos) se dá
em cada estabelecimento. Para assegurar a transmissão do imposto, é preciso
permitir a transferência do crédito de um estabelecimento para outro,
independentemente da incidência do imposto, o que as legislações estaduais não
contemplam. Na verdade, a própria LC 87/96 não prevê a hipótese. Mas,
simplesmente não permitir que o crédito seja transmitido não é compatível com o
princípio da não cumulatividade, principalmente porque a não tributação da
transferência acarreta uma cumulatividade naquela fase da circulação, com maior
ônus para o contribuinte.
Do ponto de vista da
praticidade da tributação, a forma mais simples e menos burocrática de
transmitir o crédito do imposto é tributando todas as operações. Ou seja, a
não-cumulatividade (imposta pela Constituição) seria melhor atendida pela
teoria da circulação econômica.
No caso das
operações interestaduais, temos um problema adicional: a alteração da
distribuição constitucional da receita tributária. Com efeito, a regra inserta
no art. 155, § 2º, IV, VII e VIII, distribui a receita entre Estado de origem e
Estado de destino. A adoção da teoria da circulação jurídica tem como
consequência que toda a receita tributária ficaria com o Estado de destino,
modificando a distribuição da receita tributária entre os Estados.
Em vista disso,
alguns doutrinadores, embora defendendo a teoria da circulação jurídica,
entendem que as transferências interestaduais (em que há mudança do sujeito
ativo da relação jurídico-tributária) deveriam ser tributadas, justamente para
preservar a repartição constitucional da receita tributária.
Nesse sentido,
Cristian Ricardo Prado Moises, Procurador do Estado do Rio Grande do Sul, em
artigo publicado no nº 230 da Revista Dialética de Direito Tributário, de
novembro de 2014, defende a revisão dessa jurisprudência, para levar em conta a
preservação do equilíbrio na distribuição da receita tributária entre os
membros da Federação, invocando o princípio da unidade da Constituição, segundo
o qual qualquer dispositivo da Carta deve ser interpretado “como integrante de
uma totalidade harmônica”, qual seja, o sistema constitucional.
Nenhum dispositivo
constitucional deve ser interpretado isoladamente, como suficiente em si mesmo.
Desse modo, o sentido de “circulação”, como utilizado pelo constituinte no art.
155, § 2º, I, não poderia se restringir a apenas uma das suas possíveis
significações, mas ser escolhida a significação que melhor atenda os diferentes
valores e princípios acolhidos pela Lei Fundamental, entre elas a distribuição
de receita tributária entre os membros da Federação. Esse é um argumento
respeitável! Porém, devemos dele extrair todas as suas implicações.
A Constituição não é
algo estático, pétreo, imutável. Pelo contrário, ela é dinâmica, adaptando-se
às novas circunstâncias de uma sociedade em permanente mutação. É o que
acontece com a distribuição da receita tributária entre os Estados. O Congresso
Nacional recentemente tem discutido sobre a tributação do e-comércio,
modalidade não presencial que teve enorme desenvolvimento desde a promulgação
da Constituição, de modo a alterar substancialmente a repartição da receita
tributária em favor dos Estados de origem. Essa discussão veio ressuscitar
antigo pleito dos Estados de destino, onde a mercadoria seria efetivamente
consumida.
Como consequência da
regra da não-cumulatividade, o ônus tributário deve recair sobre o consumidor
final. Pela teoria do princípio de destino, a receita tributária deve ser
atribuída ao Estado de destino, para financiar os serviços públicos prestados
aos seus residentes, ou seja, aos consumidores finais das mercadorias oneradas
pelo ICMS.
Pois bem! A
interpretação sistemática da Constituição impõe a escolha do melhor significado
entre os significados possíveis, ou seja, aquele que melhor atenda aos
princípios e valores contidos na Constituição.
Ora, entre os objetivos
fundamentais enumerados no art. 3º da Constituição está o da construção de uma
sociedade livre, justa e solidária. Aprofundando o conceito, o inciso III desse
artigo, fala do objetivo fundamental de redução das desigualdades sociais e
regionais. Fácil perceber que o princípio de destino contribuiria
significativamente para a realização desse objetivo fundamental. O consumidor
final, residente no Estado de destino (mais pobre) seria beneficiado. Cabe
comentar que o balanço do comércio interestadual tende a favorecer os Estados
industrializados em detrimento dos Estados cuja economia depende
majoritariamente de produtos primários (efeito da elasticidade-renda da
mercadoria).
A propósito, Thomas
Piketty, o conhecido economista francês que recusou receber a Legião de Honra
(a mais alta honraria concedida pelo governo francês), tem feito relevantes
contribuições ao estudo da desigualdade. Em sua alentada obra, “O Capitalismo
no Século XXI”, demonstra a tendência do capitalismo a aumentar as diferenças
de renda, produzindo efeitos deletérios sobre a economia e a sociedade,
inclusive sobre a maneira como as pessoas veem a democracia. Nessa senda,
sugere o uso deliberado da tributação como medida corretiva.
Diante dessas
considerações, os tribunais superiores estariam assim tão errados ao adotar a
teoria da circulação jurídica? Entre circulação jurídica e circulação
econômica, qual atende melhor os objetivos fundamentais da República? Podemos
simplesmente contrapor o federalismo aos objetivos fundamentais, ou, pelo
contrário, devemos procurar desenvolver uma fórmula para compor os princípios
constitucionais envolvidos?
Artigo muito interessante, esclarecedor e instigador.
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