DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A literalidade ingênua na aplicação do direito tributário

Velocino Pacheco Filho
Conforme dispõe o art. 155, I, da Constituição Federal de 1988, aos Estados foi atribuída competência para instituir imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos. A legislação estadual considera a instituição do usufruto, que é um direito real sobre a propriedade, como fato gerador distinto da transmissão da propriedade. 

Sucede que o art. 8°, II, da Lei 7.540/88, previa exoneração total (isenção) do tributo na instituição do usufruto. Posteriormente, o tributo passou a ser disciplinado pela Lei 13.136/04 que no § 2° do art. 7° passou a exigir o recolhimento de 50% do tributo na instituição do usufruto e os restantes 50% na sua extinção. 

O direito de propriedade compreende os direitos de usar, gozar, dispor e reaver a coisa de quem injustamente a detenha (Código Civil, art. 1.228). No caso de instituição de usufruto, o direito de propriedade se reparte, de modo que passa ao usufrutuário o direito “à posse, uso, administração e percepção dos frutos” (C.C., art. 1.394). O nu-proprietário detém a propriedade, mas despida de seus atributos (nua-propriedade). No momento em que cessa o usufruto, a propriedade reveste-se novamente de seus atributos voltando a ser plena.

No escólio de Marco Aurélio da Silva Viana, o usufruto assegura ao titular a utilização da coisa alheia diretamente, com oponibilidade erga omnes. Contudo, uma vez extinto o usufruto, recompõe o domínio no seu titular. Assim, quando as qualidades de usufrutuário e nu-proprietário são reunidas na mesma pessoa, têm-se a consolidação e, por conseguinte, a extinção do usufruto. Desse modo, se o usufrutuário adquire a propriedade, ou o nu-proprietário o usufruto, ela volta a ser plena.

Examinemos agora a hipótese de transmissão de um imóvel, com reserva de usufruto, sob a égide da Lei 7.540/88. Suponhamos ainda que o donatário não fez uso da isenção prevista no art. 8°, II, recolhendo na oportunidade a integralidade do imposto relativo à transmissão. Suponhamos ainda que a extinção do ônus real (e a conseqüente recomposição da propriedade) ocorreu sob o patrocínio da Lei 13.136/2004. Pergunta-se: podem as autoridades fazendárias exigir o recolhimento de mais 50% do imposto, com fundamento no § 2° do art. 7° da Lei 13.136/04?

Ora, a mudança de legislação não poderia resultar em gravame maior que o exigível na vigência de uma ou outra lei. Assim, se a instituição e a extinção do usufruto tivessem se dado na vigência da Lei 7.540/88, o tributo seria exigido apenas por ocasião da consolidação da propriedade e seria equivalente à aplicação da alíquota sobre a respectiva base de cálculo. Porém, no caso de ter sido pago por ocasião da sua instituição, descaberia a exigência do imposto por ocasião da extinção do usufruto, pois os direitos da Fazenda Pública já teriam sido satisfeitos. Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma, RE 83.855, DJU 1°/out/1976):

USUFRUTO DECORRENTE DE DOAÇÃO A TERCEIRO. COM A MORTE DA DONATARIA, EXTINGUE-SE O USUFRUTO E CONSOLIDA-SE A PROPRIEDADE NA PESSOA DO NU-PROPRIETARIO, NÃO SENDO DEVIDO O IMPOSTO DE TRANSMISSAO CAUSA MORTIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

O raciocínio permanece o mesmo: com a morte do usufrutuário, nos termos da lei civil, não se dá uma “transmissão do usufruto”, mas a extinção do direito real, recompondo-se a propriedade plena. A lei nova exige metade do imposto na instituição do usufruto e metade na sua extinção. Porém, se o contribuinte já recolheu a integralidade da exação, nos termos da lei antiga, o direito da Fazenda já foi satisfeito, nada mais podendo ser-lhe exigido. Conforme dispõe o art. 110 do CTN, a lei tributária não pode alterar o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados para definir ou limitar competências tributárias.

A exigência de recolhimento de mais 50% do imposto, por ocasião da extinção do direito real, corresponderia a um gravame tributário maior do que seria suportado na hipótese de tanto a transmissão da nua-propriedade como a sua recomposição ocorrerem na vigência da mesma lei. Tal exigência contraria o princípio da isonomia, insculpido no art. 150, II, da Constituição Federal, que proíbe instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Com efeito, a diferença de tratamento tributário não decorreria da situação do próprio sujeito passivo, mas apenas da circunstância de a instituição do usufruto (transmissão da nua-propriedade) ter ocorrido na vigência de uma lei e a sua extinção (consolidação da propriedade plena), na vigência de outra lei.

O entendimento de que seria devido o recolhimento de mais 50% do imposto na extinção do usufruto, nos exatos termos da lei nova, resulta, na melhor das hipóteses, de uma literalidade ingênua na interpretação da lei. Mas se não houve ingenuidade por parte do Fisco, mas fique demonstrado que houve má-fé, pode ficar caracterizada a imoralidade administrativa (CF, art. 37) ou mesmo o crime de excesso de exação (CP, art. 316, § 1º), consistindo na “exigência de tributo que o funcionário sabe ou deveria saber indevido”.

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