DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O regulamento e suas limitações

Velocino Pacheco Filho

O Fisco, em suas autuações, costuma fundamentar seu procedimento em dispositivos do regulamento do imposto, raramente mencionando dispositivos de lei. Isto nos leva a indagar qual a função do regulamento e quais suas relações com a lei que regulamenta. 

Devemos ter em mente que o regulamento é baixado apenas pelo Executivo, sem intervenção do Legislativo. Isto quer dizer que falta ao regulamento o consentimento do povo, através de seus representantes eleitos, legítimo detentor da soberania.  Falta ao regulamento, portanto, aquele aspecto que caracteriza a democracia representativa e a diferencia dos regimes despóticos.

Assim, dispõe o art. 71, III, da Constituição do Estado de Santa Catarina, que é atribuição privativa do Governador do Estado, expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis. Disposição análoga encontra-se no art. 84, IV, da Constituição Federal. Note-se que ambas as constituições distinguem entre “decreto” e “regulamento”, isto por que nem todos os decretos regulamentam as leis, mas apenas aprovam regulamentos como peças normativas separadas. Em qualquer caso, decretos e regulamentos não inovam a ordem jurídica, mas tratam de normas instrumentais para o fiel cumprimento das leis. Isto quer dizer que as disposições regulamentares devem ter fundamento em disposições de lei. Em matéria tributária, tratam principalmente de obrigações acessórias. 

Há matérias que somente podem ser tratadas por lei. O art. 97 do Código Tributário Nacional refere-se expressamente à instituição ou extinção de tributos, à sua majoração ou redução, à definição da obrigação tributária principal, às alíquotas, à base de cálculo, à cominação de penalidades, e à exclusão, suspensão e extinção do crédito tributário. Essas matérias somente podem ser tratadas por lei (reserva absoluta), não podendo ser delegadas ao Executivo (seja a decreto ou a lei delegada).

No entanto, a desobediência a tais preceitos são frequentes e notórias. Vejamos um exemplo tirado da legislação tributária de nosso Estado. 

O art. 2º do Anexo 5 do Regulamento do ICMS/SC dispõe que as  pessoas físicas ou jurídicas que promoverem operações relativas à circulação de mercadorias ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação estão obrigadas a inscrever no cadastro de contribuintes do ICMS todos os seus estabelecimentos localizados no Estado, antes de iniciar suas atividades. 

Porém, o § 10 do mesmo artigo permite que a inscrição possa ser concedida a estabelecimento de pessoa física ou jurídica que não se enquadre nas disposições do caput do artigo, em situações excepcionais, definidas em ato do Diretor de Administração Tributária. Até aqui, o RICMS/SC se manteve nos limites de sua esfera de competência, tratando apenas de obrigações acessórias. O que pode ser questionada é a sensatez do dispositivo que permite a concessão de inscrição cadastral a não-contribuintes e, pior ainda, como poder discricionário do Diretor de Administração Tributária. O que justifica a exceção? Porque deixa-la ao inteiro alvedrio do Diretor, sem qualquer definição das hipóteses em que poderia ser concedida? No que a quebra do princípio da isonomia atende ao interesse público?

Mas, o que nos interessa é o § 4º do art. 1º do referido Anexo 5: “Uma vez cadastrado, o contribuinte estará sujeito ao recolhimento da diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual, ainda que as aquisições sejam relacionadas a atividade não sujeita ao ICMS, salvo nos casos previstos na legislação”. 

Opa! Agora estamos entrando em matéria reservada à lei. Na verdade, essa matéria está tratada na Constituição Federal, a qual não pode receber tratamento diverso nem por lei, menos ainda pelo regulamento. 

Com efeito, dispõe o art. 155, § 2º, VII e VIII, da Lei Suprema, que nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, será adotada alíquota interestadual quando o destinatário for contribuinte do imposto. Mas, se o destinatário não for contribuinte, deverá ser utilizada a alíquota interna do Estado de origem. Ou seja, a receita tributária somente será repartida entre Estado de origem e Estado de destino se o destinatário for contribuinte do imposto. 

O inciso VIII esclarece que no caso da mercadoria se destinar ao consumo do destinatário (contribuinte), o imposto correspondente à diferença entre a aplicação da alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual cabe ao Estado de destino. Então, o Estado de destino somente poderá cobrar o imposto correspondente à diferença de alíquotas se o destinatário for contribuinte e a mercadoria não se destinar à revenda, mas ao consumo do destinatário. Essa regra, que tem seu assento na Constituição, não pode ser simplisticamente substituída por outra que vincula a exigência do tributo pelo Estado de destino à inscrição do destinatário no cadastro de contribuintes do ICMS. Sobretudo quando a legislação estadual permite a inscrição de não-contribuintes. Trata-se de subordinar o principal ao acessório. 
Se o destinatário da mercadoria não for contribuinte do imposto não há que se falar em recolhimento do imposto correspondente à diferença entre as alíquotas, esteja inscrito ou não como contribuinte do ICMS.

O problema foi minorado, ao menos no que se refere ao comércio eletrônico, com a recente aprovação da Emenda Constitucional nº 87. A única forma possível de alterar a Constituição é pela via da emenda constitucional (ressalvadas as clausulas pétreas). A tentativa de modificação da Constituição pela celebração do Protocolo ICMS 21/2011 foi fulminada pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 4.628 DF. Se convênios e protocolos, aprovados pelo Confaz, não podem modificar normas constitucionais, porque o regulamento do imposto o seria?

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