DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

ICM ou ICMS?


Velocino Pacheco Filho

ICM e ICMS são impostos distintos ou um está compreendido no outro? Em outras palavras, justifica-se as referências na legislação ao “ICM e ICMS”, como se disposições sobre o ICMS não se aplicassem ao ICM (ainda em discussão ou em processo de execução).

O art. 23, II, da Constituição do Brasil de 1967, na redação dada pela Emenda Constitucional 1/69, dava competência aos Estados para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais ou comerciantes”.

Já a Constituição de 1988, art. 155, II, deu aos Estados competência para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”.

Com a extinção dos impostos únicos sobre combustíveis, lubrificantes e energia elétrica (art. 21, VIII, da CF/69) e sobre minerais (inciso IX), as operações de circulação dessas mercadorias passaram a ser tributadas pelo ICMS. No caso da tributação da energia elétrica, foi equiparada a coisa móvel pelo § 3º do art. 155 do Código Penal, a fim de ficar caracterizado como furto (“subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel”), o desvio de energia elétrica. Ora, entende-se por “mercadoria” a coisa móvel adquirida para revenda. Então, o fornecimento de energia elétrica caracteriza-se como operação de circulação de mercadoria e, portanto, sofre a incidência do ICMS.

Portanto, o ICMS nada mais é que o ICM acrescido dos serviços de transporte e comunicação. Em outros termos, o ICM está contido no ICMS. Assim, disposições relativas ao ICMS atingem também o ICM, já que “a natureza específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação” (CTN, art. 4º). Em síntese, a referência, na legislação, ao “ICMS e ao ICMS” é desnecessária e redundante.

Esse entendimento também é o do Supremo Tribunal Federal: no julgamento do Recurso Extraordinário 149.922 SP, o Tribunal Pleno entendeu que a competência deferida aos Estados pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), art. 34, § 8º, estava restrita às novas hipóteses de incidência acrescidas pela Constituição Federal de 1988. 

Diz o dispositivo referido que: “Se no prazo de sessenta dias contados da promulgação da Constituição, não for editada a lei complementar necessária à instituição do imposto de que trata o art. 155, I, b, os Estados e o Distrito Federal, mediante convênio celebrado nos termos da Lei Complementar 24, de 7 de janeiro de 1975, fixarão normas para regulamentar provisoriamente a matéria”.

Cabe indagar, nesse ponto, em que momento se constitui a norma jurídica: quando o legislador edita o texto normativo ou quando ela é aplicada ao caso concreto? João Maurício Adeodato (Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica, 2011, p. 223), com espeque em doutrina de Fridrich Müller, sustenta que “só na norma decisória é que efetivamente se constituía norma jurídica”. Conforme esse autor:

O âmbito da norma se compõe dos fatos que, diante de um caso a ser resolvido e dos textos normativos a ele correspondentes, à luz de toda experiência jurídica acumulada, precisam ser considerados e não podem ser aleatoriamente escolhidos.

Já Miguel Reale (O Direito como Experiência, 1992, p. 31) ensina que a experiência jurídica “é antes a compreensão do ‘direito in acto’, como efetividade de participação e de comportamentos, sendo, pois, essencial ao seu conceito a vivência atual do direito, a concreta correspondência das formas de juridicidade ao sentir e querer, ou às valorações da comunidade”. Assim, “deve ser interpretado como real processo de aferição dos fatos em suas conexões objetivas de sentido”.

O sentido da norma, pois, será definido, entre a pluralidade de sentidos possíveis, pelo intérprete-aplicador da norma. Em nosso sistema jurídico, as decisões de órgão superiores são revistas, em um processo escalonado de eliminação de significados, até que, em matéria constitucional, a palavra final pertence ao Supremo Tribunal Federal.


Ora, os Estados celebraram o Convênio ICM 66/1988, conforme o rito previsto na Lei Complementar 24/1975, que dispôs sobre o tributo em sua totalidade, mesmo sobre o que correspondia estritamente ao fato gerador do ICM. A matéria foi submetida ao STF (Pleno, RE 149.922 SP, rel. Min. Ilmar Galvão, 1994) que decidiu o seguinte:

A competência delegada aos Estados, no art. 34, § 8º, do ADCT, para fixação por convênio, de normas destinadas a regular provisoriamente o ICMS, limita-se pela existência de lacunas na legislação. Se a base de cálculo em referência já se achava disciplinada pelo art. 2º, § 8º, do Decreto-lei 406/68, recepcionada pela nova carta com caráter de lei complementar, até então exibido (art. 34, § 5º do ADCT), não havia lugar para a nova definição que lhe deu o Convênio ICM 66/88 (art. 11), verificando-se, no ponto indicado, ultrapassagem do linde cravado pela norma transitória e consequente invasão do princípio constitucional da legalidade tributária.

Mais recentemente (2012), a Segunda Turma reiterou o entendimento do Tribunal, no julgamento do RE 488.448 RJ, rel. Min.  J. Barbosa:

Segundo o art. 34, §§ 5º e 8º do ADCT, os Estados e o Distrito Federal somente poderiam criar as normas gerais de transição estritamente necessárias para instituição do novo tributo, resultado da agregação dos serviços de comunicação e de transporte á circulação de mercadorias (ICM-S). Como as normas relativas à instituição do imposto relativo à circulação de mercadorias foram recepcionadas pela Constituição (DL 406/1968), o convênio 66/1988 não poderia modifica-las nem revogá-las.

O STF, nesses julgamentos, deixou claro que o ICMS não é um tributo totalmente distinto do ICM, mas compreende o ICM e as novas hipóteses de prestação de serviço de transporte e de comunicação. Por isso que a competência deferida aos Estados para legislar provisoriamente sobre normas gerais, mediante convênio, conforme ADCT, art. 34, restringiu-se às novas hipóteses de incidência, não podendo versar sobre operações de circulação de mercadorias, matéria sobre a qual permaneciam as disposições do Decreto-lei 406/1968. Somente lei complementar – e convênio não é lei, menos ainda lei complementar – poderia tratar o imposto integralmente, o que só veio a ocorrer com a edição da Lei Complementar 87/1996.

Portanto, não há sentido em distinguir entre ICM e ICMS, para fins de aplicação da legislação. As disposições relativas ao ICMS aplicam-se também ao ICM, já que este está contido naquele.       

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