A
energia elétrica e o princípio da seletividade das alíquotas
Velocino Pacheco Filho
Auditor
Fiscal/SC
A Constituição brasileira de 1988
enumera no art. 3º os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
ou seja, os valores prestigiados pelo constituinte e que cabe ao Estado
realizar. São eles: (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii)
garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e (iv) promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
A tributação compatível com o
objetivo de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais é sem
dúvida a tributação progressiva, em que seja cobrado mais de quem tem mais e
menos de quem tem menos. O princípio da isonomia (CF, art. 150, II) não manda
tratar a todos igualmente, mas aos que estão em situação equivalente. O
tratamento tributário desigual, portanto, não só é permitido, como obrigatório,
para realizar os valores contidos na Constituição. Conforme dispõe o § 1º do
art. 145, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados
segundo a capacidade econômica do contribuinte.
No caso de impostos indiretos, como
o ICMS, em que a responsabilidade pelo recolhimento recai sobre pessoa distinta
de quem suporta o ônus do tributo, não é possível a graduação segundo a
capacidade econômica, no caso, do consumidor. No lugar dela, o constituinte
admitiu a possibilidade de serem praticadas alíquotas diferenciadas. Com
efeito, o art. 155, § 2º, III, da Constituição, dispõe que o imposto “poderá
ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e serviços”.
Os Estados, então, ao instituir o
ICMS, podem ou não adotar alíquotas diferenciadas, mas no caso de adotá-las, o
critério deve ser a essencialidade das mercadorias e serviços. Com isso, as
mercadorias essenciais devem ser tributadas com alíquotas menores e as
mercadorias de consumo supérfluo ou suntuário, com alíquotas mais elevadas.
Conforme Hugo de Brito Machado (O ICMS no Fornecimento de Energia Elétrica:
Questões da Seletividade e da Demanda Contratada. RDDT 155: 48-56): “Mercadoria
essencial é aquela sem a qual se faz inviável a subsistência das pessoas, nas
comunidades e nas condições de vida atualmente conhecidas entre nós”.
No entanto, os Estados passaram a
tributar com a alíquota mais elevada (25% no caso de Santa Catarina) energia
elétrica e combustível. Certamente não é por se tratar de mercadorias de
consumo supérfluo ou suntuário. Pelo contrário, na sociedade moderna são itens
de consumo básico, além de insumos industriais que afetam os custos de todos os
demais bens consumidos pela população. Na verdade, os Estados tributaram mais
pesadamente esses insumos por serem de facial arrecadação e fiscalização – na
época, eram produzidos por empresas estatais que, por isso mesmo, são mais
submissas aos imperativos do Estado.
Nessas circunstâncias, acode-nos ao
espírito a pergunta: “será permitido aos Estados adotar outro critério para
graduar as alíquotas do ICMS, além da essencialidade da mercadoria ou serviço”?
A Constituição não prevê outro critério. Seria a facilidade ou a comodidade da
arrecadação um critério válido? Os Estados podem tributar a energia elétrica
com a alíquota mais alta prevista, não porque seja uma mercadoria de consumo
supérfluo, mas porque é mais fácil de arrecadar o imposto nesse caso?
O que pode parecer bom para a
arrecadação dos Estados, pode não ser bom para o Brasil. Entre os objetivos
fundamentais da República, está “garantir o desenvolvimento nacional” (CF, art.
3º, II). Ora, tributar com a alíquota mais elevada um insumo básico como energia
elétrica, é trabalhar contra o desenvolvimento nacional, mesmo que visto apenas
da ótica econômica.
É verdade que o art. 37 da
Constituição Federal consagra o princípio da eficiência. Assim, a Administração
Tributária deve ser eficiente na arrecadação de tributos, no sentido de
otimizar os meios de que dispõe para obter a maior arrecadação possível. Mas, o
princípio da eficiência não pode afastar o princípio da seletividade das
alíquotas do ICMS em função da essencialidade das mercadorias, como não pode
afastar o princípio correlato da graduação do tributo segundo a capacidade econômica
do contribuinte.
Pelo contrário, tratando-se de
princípio instrumental, obriga a Administração Tributária a buscar a máxima
arrecadação, conforme a capacidade econômica do contribuinte e, no caso do
ICMS, a seletividade das alíquotas em função da essencialidade das mercadorias.
Em um esforço para estimular o
desenvolvimento econômico, o Governo Federal tem procurado reduzir a tarifa de
energia elétrica, mas um de seus componentes mais pesados, que em Santa
Catarina representa ¼ do valor cobrado do consumidor, permanece irredutível.
Os Estados tornaram-se reféns da
sua própria ganância, pois estão tão dependentes da arrecadação do ICMS sobre
energia elétrica que qualquer redução representaria considerável queda na
arrecadação.
Apenas com o intuito de fomentar a dialética sobre o tema ICMS x energia elétrica x seletividade, seguem decisões do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
ResponderExcluirO acórdão da Quarta Turma de Direito Público, no Processo 2011.017834-5, julgado em 8-3-2012, negou provimento à apelação cível em mandado de segurança, nos seguintes termos:
“A Constituição Federal dispõe que o ICMS ‘poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços’ (art. 155, § 3º, III – grifei). Diferentemente, no caso do IPI a CF determina que ‘será seletivo, em função da essencialidade do serviço (art. 153, § 3º, I, da CF – grifei). Não há dúvida de que o legislador estadual não pode simplesmente desconsiderar a norma prevista no art. 155, § 2º, III, da CF, por conta da potestividade inerente à expressão ‘poderá ser seletivo’. No entanto, há que reconhecer que é determinação que dá ao legislador margem mais ampla de decisão que a expressão ‘deverá ser seletivo’, reservada apenas ao IPI”.
A mesma Câmara, AC 303691 SC 2007.030369-1, de 12-2-2010 , decidiu:
CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO - ICMS - OPERAÇÕES COM ENERGIA ELÉTRICA - ALÍQUOTAS DIFERENCIADAS - ESSENCIALIDADE DA MERCADORIA - INCIDÊNCIA DA ALÍQUOTA MÁXIMA - PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE - VIOLAÇÃO INEXISTENTE.
Não obstante sustente, grande parte da doutrina, a inconstitucionalidade de leis estaduais que estabelecem alíquotas máximas (até 25%) para o ICMS incidente sobre operações com energia elétrica, sob o fundamento de que se trata de uma mercadoria tão essencial quanto qualquer outra de primeira necessidade, a incidência de alíquota mais elevada sobre as operações com energia elétrica não viola o princípio constitucional da seletividade fundado na essencialidade da mercadoria (art. 155, § 2º, inciso III, da CF/88), sobretudo porque não tem apenas o objetivo de abastecer os cofres públicos com os recursos financeiros necessários à manutenção das atividades estatais (fiscalidade), mas também o de evitar o consumo abusivo e o desperdício que, se não for controlado pelo Poder Público, poderá levar ao racionamento forçado da energia elétrica, comprometendo, indubitavelmente, o crescimento do País e, via de conseqüência, toda a sociedade brasileira.
A intervenção veio bem a propósito. Os acórdãos do TJSC trazidos á discussão envolvem questão de grande relevância, tanto teórica quanto prática, ou seja, a da justificação das decisões judiciais.
ExcluirPela dicção do art. 155, § 2º, III, da Constituição, resulta claro que a escolha dada aos Estados pelo constituinte não é entre adotar o critério da essencialidade das alíquotas ou não. A escolha é entre alíquota única e alíquotas seletivas. A questão é saber se, quando adotadas alíquotas seletivas, o critério dessa seletividade deve ser necessariamente o da essencialidade da mercadoria ou se pode ser adotado outro critério, ao alvedrio do legislador infraconstitucional.
No caso do IPI, as alíquotas necessariamente deve ser seletivas, até em razão do caráter extra fiscal do imposto, conforme art. 150, § 1º da CF.
Numa interpretação sistemática da Constituição, é evidente que o critério da essencialidade – e nenhum outro critério adotado pelos Estados – é o único compatível com princípios constitucionais como, entre outros, o da capacidade contributiva (CF, art. 145, § 1º), o da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e objetivos fundamentais como o desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II) ou a redução das desigualdades sociais (art. 3], III).
Quanto ao entendimento manifestado nos acórdãos do TJSC, parecem atender mais as necessidades de financiamento do Estado que ao sentido do ordenamento constitucional, pois, como já disse, a tributação sobre energia elétrica responde hoje por parcela substancial da arrecadação do Estado.
Sobre as citadas decisões do TJSC, destaco o fundamento segundo o qual o princípio da essencialidade, no caso da alíquota do ICMS sobre a energia elétrica, pode ser afastado, tendo em conta que a maior tributação tem o objetivo de evitar o consumo excessivo e o desperdício de energia. Ora, por maior que seja o esforço que façamos, não dá para encontrar fundamento jurídico válido nesse entendimento, que beira o exoterismo jurídico. Me lembra muito as incríveis aventuras do Barão de Münchhausen, que escapou do atoleiro puxando a si e seu cavalo pelo próprio cabelo (Michael Löwy). Imaginem só se a moda pega. Logo, logo teríamos aliquotas de 25% do ICMS sobre o arroz e o feijão, ao argumento que visam "evitar o desperdício". Parece que não há limites ao Fisco, quando o assunto é aumentar a arrecadação a qualquer custo.
ExcluirA tributação de 25% sobre a energia elétrica que, inclusa no preço, aumenta para 33,33% é efetuada por simples comodidade arrecadatória. O mesmo ocorre com a não atualização da tabela de incidência do imposto de renda sobre salários. Em ambas as hipóteses, a tributação invade o mínimo vital (Manzoni), por via indireta, significando desrespeito ou, desconsideração à capacidade contribuitiva.
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