Reflexão
sobre a não-cumulatividade do ICMS
Velocino
Pacheco Filho
Auditor Fiscal/SC
O ICMS tem por fato gerador operações
relativas à circulação de mercadorias e a prestação de serviços de transporte e
comunicação (CF, art. 155, II). Mas, ele é não cumulativo, compensando-se o que
for devido em cada operação ou prestação com o montante cobrado nas anteriores
(§ 2º, I). O assim chamado “crédito” do ICMS, portanto, não passa do imposto
que onerou a mercadoria em etapas anteriores de circulação. Feita a
compensação, o contribuinte recolhe aos cofres públicos a diferença entre o que
é devido pelas suas operações próprias e o “crédito”, considerado determinado
período de tempo (apuração do imposto).
Então, o “crédito” tem uma vocação
específica, qual seja, compensar o imposto devido. Se os créditos forem maiores
que os débitos, o saldo é transferido para o período seguinte. Disso podemos
inferir que na falta de “débito”, não há que se falar em “crédito”. É o que
determina o inciso II, “b” do já referido § 2º do art. 155 da CF: “a isenção ou
não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, acarretará a
anulação do crédito relativo às operações anteriores”. Nesse caso, a
determinação em contrário da legislação (i. e. a manutenção do “crédito”)
representa um benefício ou favor fiscal (salvo em relação às exportações, que
obedece a outro critério – a desoneração das mercadorias exportadas).
Até aqui, as disposições são
perfeitamente razoáveis e baseadas no bom senso. Mas não podemos dizer o mesmo
do disposto no inciso II, “a” do mesmo parágrafo: “a isenção ou não incidência
... não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações
ou prestações seguintes”. Trata-se de disposição introduzida pela Emenda
Constitucional 23, de 1983 (Emenda Passos Porto) que deu nova redação ao art.
23, II, da Constituição de 1969, dispositivo preservado pela Constituição de
1988.
Esse dispositivo é o responsável por
tornar o ICMS cumulativo sempre que ocorrer uma isenção no meio do ciclo de
comercialização, já que o imposto dispensado será recuperado mais adiante.
Desse modo, o que era para ser um benefício fiscal, resulta em aumento da
arrecadação.
Observe-se que a Constituição, ao
tratar do IPI, também imposto não-cumulativo, no art. 153, § 3º, não contempla
dispositivo semelhante. A Emenda Passos Porto foi conseqüência da pressão dos
Estados.
Um exercício numérico simples servirá
para ilustrar o problema: suponhamos
um ciclo de comercialização com apenas três componentes. Para facilitar as
contas, vamos supor uma alíquota uniforme de 8%.
Vejamos primeiro a tributação normal,
sem isenção.
Contribuinte
|
Valor
da operação
|
Imposto
debitado
|
Crédito
|
Imposto
a recolher
|
A
|
1000,00
|
80,00
|
-
0 -
|
80,00
|
B
|
1200,00
|
96,00
|
80,00
|
16,00
|
C
|
1500,00
|
120,00
|
96,00
|
24,00
|
O total recolhido ao Erário, nesse
caso, teria sido de 120,00 (igual a aplicação da alíquota sobre a última
operação).
Vamos supor agora que a operação de B
para C é isenta. Então, calculando de acordo com o inciso II do § 2º, temos:
Contribuinte
|
Valor
da operação
|
Imposto
debitado
|
Crédito
|
Imposto
a recolher
|
A
|
1000,00
|
80,00
|
-
0 -
|
80,00
|
B
|
1200,00
|
0,00
|
-
0 -
|
0,00
|
C
|
1500,00
|
120,00
|
-
0 -
|
120,00
|
O total recolhido ao Erário não
corresponde mais a aplicação da alíquota sobre a última operação. O valor
recebido pelo Estado passa a ser de 200,00.
Vamos agora supor também que a
operação de B para C é isenta, mas vamos ignorar a regra da alínea “a” do
inciso II.
Contribuinte
|
Valor
da operação
|
Imposto
debitado
|
Crédito
|
Imposto
a recolher
|
A
|
1000,00
|
80,00
|
-
0 -
|
80,00
|
B
|
1200,00
|
0,00
|
-
0 -
|
0,00
|
C
|
1500,00
|
120,00
|
96,00
|
24,00
|
O total recolhido ao Erário nesse caso
é de 104,00. A perda de arrecadação (de 120,00 para 104,00) corresponde
exatamente ao valor da renúncia fiscal, devida à isenção (16,00).
Assim,
o que distorce o mecanismo da não-cumulatividade é exatamente a regra contida
no art. 155, § 2º, II, “a” da Constituição Federal. A isenção, nesse caso,
deixa de ser isenção, pois a receita aparentemente renunciada pelo Erário é por
ele recuperada na operação subseqüente. A isenção passa a equivaler ao
diferimento do pagamento do tributo ou, como diz Sacha Calmon Navarro Coelho, “o
diferimento do pagamento do imposto mais não seria que o efeito da isenção
tópica ou da alíquota zero quando atuantes sobre uma operação apenas da cadeia
de circulação”.
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