DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Tributos não cumulativos e o princípio da neutralidade Velocino Pacheco Filho

          Dispõe o art. 170, IV, da Constituição Federal que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado o princípio, entre outros, da livre concorrência.

          Nesse dispositivo, distinguimos os seguintes termos, que devem ser compreendidos conjugadamente: (i) valorização do trabalho humano, (ii) livre iniciativa, (iii) existência digna, (iv) justiça social, (v) livre concorrência etc.

          Considerando isoladamente os termos “livre iniciativa” e “livre concorrência” temos configurada a visão liberal do sistema econômico. O qualificativo “livre” junto a “iniciativa” expressa o direito de qualquer cidadão exercer qualquer trabalho ou oficio honesto, sem depender de autorização para tanto. Lembremos que no Antigo Regime qualquer atividade econômica era minuciosamente regulada pelo Estado. Com efeito, o parágrafo único do mesmo artigo assegura a todos “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização dos órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

          Do mesmo modo, entende-se por “livre concorrência” a não interferência do Estado no mercado, ou seja, no mecanismo de formação dos preços. Os preços são determinados no mercado pela quantidade de produtos ofertados e pela necessidade dos consumidores. Estamos supondo, bem entendido, que nem produtores, nem consumidores têm poder de, individualmente, alterar preços (poder de monopólio). Vamos abandonar aqui as hipóteses de transparência do mercado e de plena mobilidade dos fatores de produção, por serem muito pouco realistas.

          Podemos dizer, portanto, que o art. 170, IV, da Constituição Federal de 1988, consagra a economia de mercado. A intervenção do Estado no mecanismo de preços constitui exceção. Uma das hipóteses em que isso pode ocorrer é, precisamente, a defesa da concorrência. Nesse sentido, o art. 146-A – introduzido pela Emenda Constitucional 42/2003 – determina que “lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”.

          O art. 173, por sua vez, restringe a exploração direta da atividade econômica pelo Estado que fica, desse modo, reservada á iniciativa privada. O Estado somente poderá exercer atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. Ao Estado, entretanto, ficam reservadas as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, como agente normativo e regulador da atividade econômica.

          Ora, a livre concorrência e a regulação da atividade econômica são, em princípio, mutuamente exclusivas. Ou temos uma economia de mercado (sem interferência do Estado) ou temos uma economia regulada (em que os burocratas tentam substituir o mecanismo de preços como indicador da atividade econômica). De fato, o mecanismo de preços indica para os agentes econômicos o que, quanto, como e para quem produzir.

          Como podemos conciliar esses dois princípios? Dito de outro modo: como resolver a antinomia? Estamos diante de oposição entre regras de mesmo nível hierárquico (ambas são constitucionais).

          Uma economia de mercado, fundada no princípio da livre concorrência, demanda do Estado que não interfira no mecanismo de preços, ou seja: uma tributação neutra. Conforme Fernando A. Zilveti (Variações sobre o Princípio da Neutralidade no Direito Tributário Internacional. In: Direito Tributário Atual nº 19):

          “Considera-se neutro o sistema tributário que não interfira na otimização da alocação de meios de produção, que não provoque distorções e, assim, confira segurança jurídica para o livre exercício da atividade empresarial”.

          Dissemos que a Constituição de 1988 adotou a economia de mercado, porém esse princípio não é absoluto – pelo contrário, comporta temperamentos, para atender os demais princípios contemplados pelo art. 170. Para resumir, em que hipóteses é lícito ao Estado interferir no mecanismo de mercado? (i) quando estiver em jogo a valorização do trabalho humano (caput), (ii) para preservar a existência digna para todos e a justiça social (caput), (iii) para defender o meio ambiente (inciso VI), (iv) para a redução das desigualdades regionais e sociais (inciso VII), (v) para garantir o pleno emprego (inciso VIII), entre outras.

          Lembremos que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa estão entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, enumerados no art. 1º da Constituição. Do mesmo modo, a redução das desigualdades regionais e sociais consta dos objetivos fundamentais da República de que trata o art. 3º. Então, a ordem econômica constitui instrumento para a consecução dos fundamentos da República e de seus objetivos. Para esse fim é justificada a intervenção no mecanismo de preços.

          Feitas as devidas ressalvas, qual a tributação que seria compatível com a não intervenção do Estado no mecanismo de formação dos preços pelo mercado?  A tributação em que a incidência do tributo seria indiferente para a tomada de decisões pelos agentes econômicos (tributação neutra). Essa condição seria atendida pela tributação plurifásica, não-cumulativa, portanto, compatível com o art. 170, IV, da Constituição. Para Misabel Derzi (atualização de A. Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro), “os fundamentos mais importantes para a adoção do princípio da não-cumulatividade repousam na neutralidade da concorrência, na repercussão mais justa dos preços, sem deformações e desvios perturbadores do desenvolvimento econômico”.

          “A neutralidade concorrencial, portanto, exige repercussão fiscal equânime entre os agentes econômicos”, acrescenta Zilveti. Conclui o mesmo autor que “o tributo não cumulativo seria aquele que melhor realiza o princípio da neutralidade, uma vez que não fere as leis da livre-concorrência e da competitividade”.

          Estamos falando, é claro, da tributação sobre a produção, circulação e consumo. Expressamente, a Constituição adota esse sistema de tributação em relação ao IPI (art. 153, IV) e ao ICMS (art. 155, II). Também determina sua adoção nos impostos instituídos pelo exercício da competência residual a que se refere o art. 154, I da Lei Suprema.

          O princípio da livre concorrência, consagrado como um dos princípios que informam a ordem econômica pelo art. 170, IV, da CF, somente é compatível com uma tributação neutra (que seja indiferente para a tomada de decisões pelos agentes econômicos) que, no caso, é representada pelos tributos plurifásicos não-cumulativos. Conclui-se que tais impostos devem ser puramente arrecadatórios, ou seja, não se prestam ao uso extrafiscal. Definindo-se extrafiscalidade como o uso dos tributos para induzir determinados efeitos sociais ou econômicos (intervenção), à evidência, a tributação do consumo não se presta à utilização extrafiscal. A extrafiscalidade é a negação da tributação neutra.

          Nesse caso, a extrafiscalidade, nos impostos sobre o consumo, deve ser a exceção, justificável apenas quando necessária para a realização dos objetivos fundamentais da república ou em razão dos outros princípios que informam a ordem econômica, como a defesa do meio ambiente, a garantia do pleno emprego etc. Nessas hipóteses, devemos enquadrar o IPI, cuja vocação para a extrafiscalidade encontramos no art. 150, I, da CF, que libera este imposto do princípio da anterioridade.


          Por fim, comenta Ricardo Lobo Torres (Sistemas Constitucionais Tributários) que os “Estados-membros entregaram-se a uma dinâmica política de isenções com créditos simbólicos, subvertendo inteiramente a possível neutralidade do ICM”. Trata-se da conhecida “guerra fiscal”, em que todos perdem, principalmente as receitas públicas e as políticas sociais que delas dependem para sua implementação. A “guerra fiscal” – atrair investimentos com base em benefícios fiscais não autorizados – é contrário, entre outros, ao disposto no art. 170, IV, da Constituição Federal.

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