Dispõe
o art. 170, IV, da Constituição Federal que a ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado o
princípio, entre outros, da livre concorrência.
Nesse
dispositivo, distinguimos os seguintes termos, que devem ser compreendidos
conjugadamente: (i) valorização do trabalho humano, (ii) livre iniciativa,
(iii) existência digna, (iv) justiça social, (v) livre concorrência etc.
Considerando
isoladamente os termos “livre iniciativa” e “livre concorrência” temos
configurada a visão liberal do sistema econômico. O qualificativo “livre” junto
a “iniciativa” expressa o direito de qualquer cidadão exercer qualquer trabalho
ou oficio honesto, sem depender de autorização para tanto. Lembremos que no
Antigo Regime qualquer atividade econômica era minuciosamente regulada pelo
Estado. Com efeito, o parágrafo único do mesmo artigo assegura a todos “o livre
exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização dos
órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Do
mesmo modo, entende-se por “livre concorrência” a não interferência do Estado
no mercado, ou seja, no mecanismo de formação dos preços. Os preços são
determinados no mercado pela quantidade de produtos ofertados e pela necessidade
dos consumidores. Estamos supondo, bem entendido, que nem produtores, nem
consumidores têm poder de, individualmente, alterar preços (poder de
monopólio). Vamos abandonar aqui as hipóteses de transparência do mercado e de
plena mobilidade dos fatores de produção, por serem muito pouco realistas.
Podemos
dizer, portanto, que o art. 170, IV, da Constituição Federal de 1988, consagra
a economia de mercado. A intervenção do Estado no mecanismo de preços constitui
exceção. Uma das hipóteses em que isso pode ocorrer é, precisamente, a defesa
da concorrência. Nesse sentido, o art. 146-A – introduzido pela Emenda
Constitucional 42/2003 – determina que “lei complementar poderá estabelecer
critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da
concorrência”.
O
art. 173, por sua vez, restringe a exploração direta da atividade econômica
pelo Estado que fica, desse modo, reservada á iniciativa privada. O Estado
somente poderá exercer atividade econômica quando necessária aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. Ao Estado, entretanto,
ficam reservadas as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, como
agente normativo e regulador da atividade econômica.
Ora,
a livre concorrência e a regulação da atividade econômica são, em princípio,
mutuamente exclusivas. Ou temos uma economia de mercado (sem interferência do
Estado) ou temos uma economia regulada (em que os burocratas tentam substituir
o mecanismo de preços como indicador da atividade econômica). De fato, o
mecanismo de preços indica para os agentes econômicos o que, quanto, como e
para quem produzir.
Como
podemos conciliar esses dois princípios? Dito de outro modo: como resolver a
antinomia? Estamos diante de oposição entre regras de mesmo nível hierárquico
(ambas são constitucionais).
Uma
economia de mercado, fundada no princípio da livre concorrência, demanda do
Estado que não interfira no mecanismo de preços, ou seja: uma tributação
neutra. Conforme Fernando A. Zilveti (Variações
sobre o Princípio da Neutralidade no Direito Tributário Internacional. In:
Direito Tributário Atual nº 19):
“Considera-se
neutro o sistema tributário que não interfira na otimização da alocação de
meios de produção, que não provoque distorções e, assim, confira segurança
jurídica para o livre exercício da atividade empresarial”.
Dissemos
que a Constituição de 1988 adotou a economia de mercado, porém esse princípio
não é absoluto – pelo contrário, comporta temperamentos, para atender os demais
princípios contemplados pelo art. 170. Para resumir, em que hipóteses é lícito
ao Estado interferir no mecanismo de mercado? (i) quando estiver em jogo a
valorização do trabalho humano (caput),
(ii) para preservar a existência digna para todos e a justiça social (caput), (iii) para defender o meio
ambiente (inciso VI), (iv) para a redução das desigualdades regionais e sociais
(inciso VII), (v) para garantir o pleno emprego (inciso VIII), entre outras.
Lembremos
que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
estão entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, enumerados no
art. 1º da Constituição. Do mesmo modo, a redução das desigualdades regionais e
sociais consta dos objetivos fundamentais da República de que trata o art. 3º.
Então, a ordem econômica constitui instrumento para a consecução dos
fundamentos da República e de seus objetivos. Para esse fim é justificada a
intervenção no mecanismo de preços.
Feitas
as devidas ressalvas, qual a tributação que seria compatível com a não intervenção
do Estado no mecanismo de formação dos preços pelo mercado? A tributação em que a incidência do tributo
seria indiferente para a tomada de decisões pelos agentes econômicos
(tributação neutra). Essa condição seria atendida pela tributação plurifásica,
não-cumulativa, portanto, compatível com o art. 170, IV, da Constituição. Para
Misabel Derzi (atualização de A. Baleeiro, Direito
Tributário Brasileiro), “os fundamentos mais importantes para a adoção do
princípio da não-cumulatividade repousam na neutralidade da concorrência, na
repercussão mais justa dos preços, sem deformações e desvios perturbadores do
desenvolvimento econômico”.
“A
neutralidade concorrencial, portanto, exige repercussão fiscal equânime entre
os agentes econômicos”, acrescenta Zilveti. Conclui o mesmo autor que “o
tributo não cumulativo seria aquele que melhor realiza o princípio da
neutralidade, uma vez que não fere as leis da livre-concorrência e da competitividade”.
Estamos
falando, é claro, da tributação sobre a produção, circulação e consumo.
Expressamente, a Constituição adota esse sistema de tributação em relação ao
IPI (art. 153, IV) e ao ICMS (art. 155, II). Também determina sua adoção nos
impostos instituídos pelo exercício da competência residual a que se refere o
art. 154, I da Lei Suprema.
O
princípio da livre concorrência, consagrado como um dos princípios que informam
a ordem econômica pelo art. 170, IV, da CF, somente é compatível com uma
tributação neutra (que seja indiferente para a tomada de decisões pelos agentes
econômicos) que, no caso, é representada pelos tributos plurifásicos
não-cumulativos. Conclui-se que tais impostos devem ser puramente
arrecadatórios, ou seja, não se prestam ao uso extrafiscal. Definindo-se
extrafiscalidade como o uso dos tributos para induzir determinados efeitos
sociais ou econômicos (intervenção), à evidência, a tributação do consumo não
se presta à utilização extrafiscal. A extrafiscalidade é a negação da
tributação neutra.
Nesse
caso, a extrafiscalidade, nos impostos sobre o consumo, deve ser a exceção,
justificável apenas quando necessária para a realização dos objetivos
fundamentais da república ou em razão dos outros princípios que informam a
ordem econômica, como a defesa do meio ambiente, a garantia do pleno emprego
etc. Nessas hipóteses, devemos enquadrar o IPI, cuja vocação para a
extrafiscalidade encontramos no art. 150, I, da CF, que libera este imposto do
princípio da anterioridade.
Por
fim, comenta Ricardo Lobo Torres (Sistemas
Constitucionais Tributários) que os “Estados-membros entregaram-se a uma
dinâmica política de isenções com créditos simbólicos, subvertendo inteiramente
a possível neutralidade do ICM”. Trata-se da conhecida “guerra fiscal”, em que
todos perdem, principalmente as receitas públicas e as políticas sociais que
delas dependem para sua implementação. A “guerra fiscal” – atrair investimentos
com base em benefícios fiscais não autorizados – é contrário, entre outros, ao
disposto no art. 170, IV, da Constituição Federal.
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