DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A tributação e os objetivos fundamentais da República


                
Velocino Pacheco Filho
          O constituinte de 1988 relacionou, no art. 3º da Carta, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e (iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

          A palavra “objetivo”, utilizada pelo constituinte, tem o sentido de “meta a ser alcançada”, enquanto “fundamental” significa que está no fundamento, na base, no alicerce, ou ainda, que constitui o fundamento, a base ou o alicerce. José Afonso da Silva, em seu Comentário Contextual à Constituição, assevera que “só na aparência é que as disposições do art. 3º têm sentido programático. São, em verdade, normas dirigentes ou teleológicas, porque apontam fins positivos a serem alcançados pela aplicação de preceitos concretos definidos em outras partes da Constituição”.

          Esse mesmo autor ressalta que “não se trata de objetivos de governo, mas do Estado Brasileiro”, pois cada governo pode definir seus próprios objetivos e metas a alcançar, mas “elas têm de se harmonizar com os objetivos fundamentais”, sob pena de incorrerem em inconstitucionalidade.

          A norma constitucional é dita programática quando define objetivo cuja concretização depende de providências situadas fora ou além do texto constitucional. De modo geral, um preceito constitucional é taxado maliciosamente de “programático” quando se quer negar-lhe eficácia.

          Por outro lado, o art. 1º da Constituição adota como fundamentos (base, alicerces) da República, (i) a soberania; (ii) a cidadania; (iii) a dignidade da pessoa humana; (iv) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e (v) o pluralismo político.

          No próprio preâmbulo da Carta, os constituintes invocam a proteção de Deus para “instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. Sobre o Preâmbulo da Constituição, comenta Inocêncio M. Coelho (in Curso ...):

          “Como vetor hermenêutico, são indiscutíveis, se não mesmo imprescindíveis, os préstimos do preâmbulo, na medida em que nele se expressam o ethos e o telos da Sociedade e da sua Lei Fundamental, dados materiais de partida que funcionam para o intérprete como verdadeira condição de possibilidade do compreender constitucional”.

          Por sua vez, Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional, 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 398) leciona: “A revolução constitucional que deu origem ao segundo Estado de Direito principiou a partir do momento em que as declarações de direitos, ao invés de ‘declarações político-filosóficas’, se tornaram ‘atos de legislação vinculantes’ ....”

          Os objetivos fundamentais da República, referidos no art. 3º, bem como os fundamentos do art. 1º e o conteúdo ético do Preâmbulo da Constituição, não são palavras vazias, meras frases de efeito do discurso político-demagógico, mas, pelo contrário, constituem critérios de interpretação ou, como diz Inocêncio Coêlho, verdadeiros “vetores hermenêuticos”, a direcionar o trabalho do intérprete. É justamente o preâmbulo, juntamente com os fundamentos e os objetivos fundamentais da República, que direcionam a interpretação das leis: a interpretação será tanto mais acertada quanto mais se aproximar da realização desses valores. Se o Estado tem por finalidade a consecução do bem comum, é no preâmbulo e nos objetivos fundamentais da República que podemos apreender o seu conteúdo.

          Não é diferente a interpretação da legislação tributária. Vejamos o caso da progressividade das alíquotas do ITCMD, matéria a que o Supremo Tribunal Federal, recentemente, reconheceu repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário 562.045 RS.

          O ITCMD rege-se em Santa Catarina pela Lei 13.136, de 25 de novembro de 2004, que, em seu artigo 2º, define o fato gerador do imposto como a transmissão causa mortis ou a doação a qualquer título (i) da propriedade ou domínio útil de bem imóvel, (ii) de direitos reais sobre bens móveis e imóveis e (iii) de bens móveis, inclusive semoventes, direitos, títulos e créditos. A base de cálculo do imposto, conforme dispõe o art. 7º, é o valor venal do bem ou direito, ou o valor do título ou crédito transmitido.

          As alíquotas do imposto, nos termos do art. 9º, variam de 1% a 7%, em função do valor do bem transmitido e passam para 8% no caso do sucessor ser parente colateral, herdeiro testamentário ou legatário que não tiver relação de parentesco com o de cujus ou quando o donatário ou cessionário for parente colateral ou não tiver relação de parentesco com o doador ou cedente. Além disso, o art. 10, III, isenta do pagamento do imposto quando a transmissão causa mortis se referir a um único imóvel que se destine à moradia do próprio beneficiário e que este não possua qualquer outro imóvel.

          Observe-se que se trata de acréscimo ao patrimônio do beneficiário que não teve qualquer contrapartida e que não resultou de esforço próprio. Além do mais, a lei distingue entre o sucessor direto (filhos, netos etc.) e a sucessão em linha colateral ou quando não há relação de parentesco. No primeiro caso, as alíquotas são bem menores e variam com o valor do bem transmitido. As manifestações favoráveis à progressividade, em sede de Supremo Tribunal Federal tem tomado como fundamento o princípio da capacidade econômica do contribuinte. O objetivo, pois, é “estabelecer uma graduação que leve à justiça tributária, ou seja, onerando aqueles com maior capacidade para o pagamento do imposto” (do voto do M. Marco Aurélio no julgamento do RE 562.045 RS).

          Interpretando o dispositivo que adota a progressividade das alíquotas do ITCMD, da perspectiva do conteúdo axiológico da Constituição, contido em seus objetivos fundamentais, podemos dizer que ele contribui para a redução das desigualdades sociais (CF, art. 3º, III) e, por conseguinte, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidaria.

          Os grandes desníveis de rendimentos entre as classes sociais constitui um dos principais problemas que afligem a sociedade brasileira e estão na origem da crescente violência e criminalidade e na banalização do sofrimento humano. O que agrava a miséria é a indiferença com que se encara o sofrimento alheio. A transmissão de grandes patrimônios, via sucessão hereditária ou testamentária, representa fator de manutenção das diferenças e é o que legitima o Estado a instituir a tributação progressiva. O efeito será tanto mais eficiente quanto mais progressiva for a incidência do imposto.


          A indiferença dos que têm em relação aos que não têm é o principal obstáculo à construção de uma sociedade que se quer livre, justa e solidária (art. 3º, I). A liberdade como valor deve ser temperada pela solidariedade e equilibrada pela justiça. Somente assim poderá ser assegurada a igualdade e a justiça como valores supremos, como quer o preâmbulo da Constituição.

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