DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A equidade e a completude do ordenamento tributário

Velocino Pacheco Filho

     Dizemos que o ordenamento jurídico é completo quando nele podemos encontrar (ou deduzir), explicita ou implicitamente, uma regra para resolver qualquer situação concreta. O art. 126 do CPC, que veda ao juiz eximir-se de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei, pressupõe a completude do ordenamento. Mas o que o juiz deverá fazer se não existir regra específica no ordenamento, aplicável ao caso concreto? Então, dispõe o mesmo artigo, ele deverá recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. Mesmo não havendo regra explícita para o caso concreto, esta poderá ser deduzida do ordenamento.

     No caso do sub ordenamento tributário, a integração do direito pelo aplicador da legislação tributária está prevista no art. 108 do Código Tributário Nacional (CTN). A integração do direito tributário é mais ampla que a prevista no CPC por admitir a integração pelo uso da equidade (inciso IV), não contemplada pela lei processual civil.

     No entanto, não devemos confundir a equidade como técnica de integração do direito com a equidade como correção da lei. Aristóteles trata desses dois tipos de equidade em obras diferentes: assim a equidade como integração é tratada na Ética a Nicômaco, enquanto a equidade como correção da lei é tratada na Retórica. O CTN prevê esta última no art. 172, IV, nos seguintes termos: “a lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário atendendo a considerações de equidade, em relação com as características pessoais e materiais de cada caso”.
    
     Limongi França, ao discorrer sobre a equidade como integração do direito, diz que “a equidade, entretanto, supõe a inexistência, sobre a matéria, de texto claro e flexível”. Em outras palavras, a equidade, como as demais modalidades de integração, somente pode ser utilizada quando for identificada uma lacuna na lei ou, como diz Engisch, “uma incompletude insatisfatória” do ordenamento.

     Já a equidade, como correção da lei, mereceu de Carlos Maximiliano o seguinte comentário:

     “Fruto de condições especiais de cultura, noção de justiça generalizada na coletividade (jus naturale, aequum, bonum), idéia comum do bem, predominante no seio de um povo em dado momento da vida social; a Eqüidade abrolhou de princípios gerais preexistentes e superiores à lei, da fonte primária do Direito. É um sentimento subjetivo e progressivo, porém não individual, nem arbitrário; representa o sentir do maior número, não o do homem que alega ou decide”.

     Adverte ainda esse autor, quanto à aplicação da equidade nesse sentido: “Não se recorre à Eqüidade senão para atenuar o rigor de um texto e o interpretar de modo compatível com o progresso e a solidariedade humana; jamais será a mesma invocada para se agir, ou decidir, contra prescrição positiva clara e prevista”.

     Também a esse sentido da equidade se refere Kant (Metafísica dos Costumes) na seguinte passagem:

     “A divisa (dictum) da eqüidade é: “o direito mais estrito é a maior injustiça (summum ius summa iniuria)”. Mas este mal não pode ser remediado por meio do que é estabelecido como direito, embora diga respeito a uma reivindicação a um direito, pois esta reivindicação pertence apenas ao tribunal da consciência (forum poli), ao passo que toda questão do que é estabelecido como direito tem que ser apresentada ante o direito civil (forum soli)”.

     Benedito Hespanha (Tratado de Teoria do Processo) tratando da integração do direito, se refere à equidade como “a filha enjeitada”, pela pouca confiança nesse instituto por parte dos operadores do direito, impregnados de legalidade formal. Esse autor conceitua a integração por equidade nos seguintes termos: “quando o caso concreto se acha abstraído de toda a vontade do legislador  e de todo o espírito da lei, não pode existir outra alternativa para o julgador senão criar aquela norma jurídica especial que seja capaz de cobrir a lacuna da lei”.

     O apego ao direito positivo estrito pode se revelar um bom pretexto para deixar de aplicar o direito justo (suum cuique tribuere). A equidade significa aplicar o direito justo, quer no sentido de criar regra própria para o caso particular, quer no de suavizar a aplicação de regra já existente.
    
     Mas, quer me parecer que não há como confundir entre esses dois sentidos de equidade aplicados ao direito tributário: a integração do direito, perante uma lacuna (art. 108, IV), e a correção do direito (CTN, art. 172, IV). No primeiro caso, o aplicador está limitado apenas pela restrição do § 2º do art. 108 (“o emprego da equidade não poderá resultar em dispensa do pagamento de tributo devido”). Já a equidade a que se refere o art. 172, IV, depende de expressa autorização legal, mas, por outro lado, pode dispensar tributo, mediante remissão total ou parcial do crédito tributário o que não acontece com a equidade como integração do direito. Enfim, podemos concluir com a seguinte citação de Ricardo Lobo Torres:

      “A equidade (...) absorve os princípios gerais do Direito, nada mais sendo que a aplicação dos princípios derivados da idéia de justiça (capacidade contributiva e custo/benefício) ao caso concreto. (...) A noção de equidade como forma de integração do Direito (...) necessita de muito labor teórico para não se confundir, como por vezes tem acontecido, com a equidade como instrumento de correção do Direito ou de interpretação e suavização de penalidades fiscais”.

     Acrescenta o mesmo autor que “aparece a eqüidade, como forma de integração do Direito Tributário, nos raríssimos casos de discricionariedade autorizada pelo legislador”.

          A equidade cumpre papéis diferentes em um e outro caso. Como correção da lei, a equidade visa suavizar o excessivo rigor na sua aplicação. Como integração, a permissão para o uso da equidade atribui ao aplicador da lei poderes de verdadeiro legislador. Por esse motivo, o emprego da equidade, nesse último sentido, deve cercar-se de cautelas para evitar abusos. Mas não devemos temê-la. Ela exige mais competência técnica por parte do aplicador do direito e, por isso mesmo, seus resultados são melhores. Finalizamos com a seguinte citação de Benedito Hespanha:

            “Julgar por equidade não quebra, de forma alguma, a estrutura positivista da interpretação das regras legais. Ao contrário, incute uma maior estabilidade à própria ordem jurídica em sua aspiração de unidade”.

Um comentário:

  1. Eu já apliquei, como julgador, a equidade ao caso concreto, quando cancelei a multa em um caso em que o texto do Regime Especial era ambíguo, permitindo mais de uma interpretação.

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