DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Privilégio odioso e moralidade tributária

Velocino Pacheco Filho
          Sabe-se que matéria tributária submete-se à reserva absoluta da lei. O princípio da legalidade tributária está expresso no art. 150, I, da Lei Maior. Precisando melhor o conceito, o Código Tributário Nacional, art. 97, IV, dispõe que somente a lei pode estabelecer a fixação da base de cálculo dos tributos.

          Comenta Roque Antonio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário, 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 167) que “as pessoas só devem pagar tributos em cuja cobrança consentirem .... dado por meio de lei ordinária”. Entenda-se: esse consentimento não é individual, mas coletivo: o povo, por meio de seus representantes eleitos autorizam a cobrança de tributos e em que condições. Arremata o mesmo autor: “Não é por outro motivo que se tem sustentado que em nosso ordenamento jurídico vige, mais do que o princípio da legalidade tributária, o princípio da estrita legalidade”.

          A determinação constitucional da estrita legalidade, leciona Marçal Justem Filho (Curso de Direito Administrativo, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 133), “significa a supressão da competência normativa externa ao Poder Legislativo para a disciplina de certo tema”. Isto por que “há a determinação constitucional de exercício exaustivo e completo pelo Legislativo da competência normativa, sem margem para complementação da disciplina por meio da atuação do Poder Executivo”.

          Mas não se trata apenas do princípio da legalidade. A matéria tributária está sob reserva absoluta da lei, conceito que Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 2ª e. São Paulo: Atlas, 2003, p. 199) diferencia da legalidade da seguinte forma:

“Se todos os comportamentos humanos estão sujeitos ao princípio da legalidade, somente alguns estão submetidos ao da reserva da lei. Este é, portanto, de menor abrangência, mas de maior densidade ou conteúdo, visto exigir tratamento de matéria exclusivamente pelo Legislativo, sem participação normativa do Executivo”.
         
          Conforme Carrazza (op cit. p. 223), “o Executivo não poderá apontar - nem mesmo por delegação legislativa - nenhum aspecto essencial da norma jurídica tributária, sob pena de flagrante inconstitucionalidade”.

          Com efeito, a competência tributária é indelegável, conforme mansa e pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Assim, na ADI 2.688 (RDDT 194: 207), decidiu o Pretório Excelso:

“2. Todos os critérios essenciais para a identificação dos elementos que deverão ser retirados do campo de incidência do tributo (regra-matriz) devem estar previstos em lei, nos termos do art. 150, § 6º da Constituição. A permissão para que tais elementos fossem livremente definidos em decreto do Poder Executivo viola a separação de funções estatais previstas na Constituição”.
         
          Contudo, a Administração Tributária tem cada vez mais definido o tratamento tributário individualizado para determinados contribuintes, mediante simples ato administrativo ou TTD (Tratamento Tributário Diferenciado), não só no que se refere a obrigações acessórias, mas também em relação à obrigação principal (a obrigação de recolher o tributo). Despiciendo dizer que o TTD não faz qualquer referência à pretensa legislação que o autorize ou que lhe sirva de base.

          O TTD não é lei, nem compõe a legislação tributária. Pelo contrário, trata-se de ato administrativo, editado uti singuli para atender a circunstância (ou interesse) particular do contribuinte. O TTD não pode tratar de obrigação principal se, para tanto, não estiver expressamente autorizado por lei. Pretender o contrário, seria instituir “privilégio odioso” que o direito repele e que é incompatível com um Estado Democrático de Direito, como se propõe a ser o Brasil.

          Com efeito, o art. 19, III, da Constituição da República veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. As relações entre o Fisco e os contribuintes regem-se, entre outros, pelo princípio da impessoalidade (= todos são iguais perante a Administração), agasalhado pelo art. 37, entre os princípios que informam a Administração Pública. Por fim, o art. 150, II, proíbe a instituição de tratamento desigual “entre contribuintes que se encontram em situação equivalente”.

          Não se admite, a luz do princípio da isonomia, a instituição, mediante TTD, de estatuto pessoal a determinados contribuintes, não extensíveis aos demais. Com efeito, leciona José Souto Maior Borges (Isenções Tributárias): “No moderno Estado de Direito a igualdade e a generalidade são princípios básicos de tributação, com os quais colidem as isenções de pessoas ou grupos sociais estabelecidos pura e simplesmente ‘intuitu personae’, isto é, sem nenhuma consideração de justiça fiscal ou de ordem social ou econômica”.

            Se o TTD está dispensando tributo à revelia da lei, não só está sendo cometida ilegalidade, mas pode ainda ficar caracterizado ato de improbidade administrativa que, nas palavras de José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição), “é uma imoralidade qualificada pelo dano ao Erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem”.

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