DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A PSV 69 e a modulação de seus efeitos pelo STF

Velocino Pacheco Filho

A Emenda Constitucional 45, de 2004, acrescentou o art. 103-A ao texto da Constituição do Brasil, prevendo a edição de súmula pelo Supremo Tribunal Federal, com efeito “vinculante”, não somente para os órgãos do Poder Judiciário, mas também para a Administração Pública, direta e indireta, da União, dos Estados e dos Municípios.

Pois bem! Como medida para conter a “guerra fiscal entre os Estados”, o Supremo propôs súmula vinculante (PSV 69) declarando a inconstitucionalidade de qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou da base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz.

Vamos situar o problema: para atrair investimentos e alavancar suas economias, os Estados têm concedido benefícios fiscais relativos ao seu principal imposto, o ICMS. Para evitar que um benefício dado por um Estado repercutisse sobre os demais, via mecanismo da não-cumulatividade (um Estado arcar com o benefício dado por outro), o constituinte condicionou a concessão de benefícios por um Estado à concordância de todos os demais, mediante celebração de convênios, autorizando o Estado a conceder o benefício, nos termos da Lei Complementar 24/1975, expressamente recepcionada pela Constituição de 1988.

Os convênios são discutidos e aprovados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), integrado pelos secretários de fazenda, finanças ou economia de todos os Estados. A exigência de unanimidade de votos para a aprovação dos convênios deveria ser um eficiente limitador à concessão de benefícios fiscais.

No entanto, a medida resultou ineficaz, uma vez que os Estados passaram a conceder benefícios, mesmo sem autorização do Confaz, instaurando a assim chamada “guerra fiscal” entre os Estados. Porque a disciplina dos convênios não surtiu os efeitos esperados? Pela simples razão de não existir uma sanção eficaz contra a desobediência à Lei Complementar 24. Com efeito, as sanções previstas em seu art. 8º são politicamente inviáveis. Alguns Estados tentaram aplicar a sanção prevista no inciso I desse dispositivo, ou seja, declarar a nulidade do benefício e a ineficácia do crédito atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria. Contudo, a Suprema Corte entendeu que, em nome do princípio federativo, um Estado não poderia declarar unilateralmente a nulidade de lei de outro Estado.

Existe ainda outra razão para inviabilizar a aplicação pelos Estados da sanção do art. 8º, I: a medida resulta em punir o contribuinte pelo ilícito cometido pelo Estado ao conceder benefício não autorizado. A única via, portanto, que resta aos Estados que se sentem prejudicados é a proposição de ação direta de inconstitucionalidade contra a lei do Estado transgressor. Sempre que proposta, o Supremo tem declarado a inconstitucionalidade dos benefícios concedidos sem autorização do Confaz o que explica e justifica a súmula vinculante proposta.

Por outro lado, os Estados têm procurado outra solução para o impasse, facilitando a aprovação dos convênios autorizando os benefícios, mediante abolição da exigência de unanimidade para sua aprovação. Afinal, se nem as emendas à Constituição exige unanimidade, porque exigi-la para aprovação dos convênios? Naturalmente, a lógica nesse caso é outra.

Além do princípio da Federação – em risco desde que um Estado passa a ser obrigado a aceitar um convênio com o qual não concorda – existe a questão da economia de mercado, adotada implicitamente desde que eleita a livre concorrência como princípio informador da ordem econômica (CF, art. 170, IV).

Livre concorrência pressupõe não regulamentação do mercado, de modo que as decisões dos agentes econômicos levem em conta apenas o sistema de preços e, portanto, sejam indiferentes à tributação sobre o consumo. Ora, o uso extrafiscal da tributação sobre o consumo – no caso, benefícios fiscais relativos ao ICMS, como forma de alavancar a economia dos Estados – representa intervenção no sistema de preços e o abandono da economia de mercado. O tratamento tributário passa a ser relevante para a tomada de decisões.

Em tais circunstâncias, facilitar a aprovação de convênios autorizativos de benefícios fiscais, mediante abolição da unanimidade, implica, de certa forma, a legitimação da guerra fiscal.

A súmula vinculante seria a solução? Devemos considerar o efeito vinculante para a Administração Tributária que não mais poderia aplicar benefícios fiscais não autorizados pelo Confaz, mesmo quando previstos pela legislação do Estado.

Ora, a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc (como se a norma deixasse de existir desde sua edição), salvo se o Supremo modular os seus efeitos para contemplar os atos praticados antes da declaração de inconstitucionalidade. Mas, se não forem modulados os efeitos, a Administração Tributária seria obrigada a cobrar todo o crédito tributário que deixou de ser recolhido devido ao benefício fiscal irregularmente concedido.

Mais uma vez, o contribuinte estaria sendo punido por um ilícito cometido pelo Estado o que constituiria grave injustiça. Ninguém pode ser punido por cumprir a lei ou por utilizar benefício previsto na legislação. Assim, podemos esperar com bastante certeza que o Supremo module os efeitos da súmula vinculante, caso seja aprovada.

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