DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A reforma tributária e os objetivos fundamentais da República

Velocino Pacheco Filho

O único consenso sobre o recorrente tema da reforma tributária é, aparentemente, o da sua necessidade. Porém, quando se passa a discutir qual deveria ser o formato do sistema tributário brasileiro, o consenso acaba: cada um dos interessados – União, Estados, Municípios, empresariado – tem sua própria concepção sobre como o sistema tributário deveria ser. Até de imposto único já se cogitou. Naturalmente, não se pensa em pedir a opinião dos consumidores, dos trabalhadores ou do povo em geral.

Raciocinemos: a Constituição é o texto normativo básico que estrutura todo o ordenamento jurídico. Segundo José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição), trata-se da ideia fundante ou da concepção básica que encontra sua expressão na Constituição. Lembra esse autor que, conforme o Preâmbulo da Constituição de 1988, o povo brasileiro, por seus representantes, procurou instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional com a solução pacífica das controvérsias.

Tomando como ponto de partida os valores e princípios adotados pela Constituição deve-se pensar o sistema tributário compatível com tais valores e princípios ou que contribua para sua realização.

Exemplificando, o art. 1º da Constituição diz que o Brasil é uma federação “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Então, a distribuição das competências tributárias deve atender às necessidades de financiamento de cada uma das pessoas políticas que formam a Federação. Mas, para isso, é necessário definir de antemão quais são essas necessidades. Em outras palavras, quais as atribuições que devem ser cometidas à União, aos Estados e aos Municípios. Definido o que deve ficar a cargo de cada um, pode-se dimensionar o tamanho da despesa de cada um e, por conseguinte, da receita necessária a cada um.

O art. 1º, em seu inciso II, trata da cidadania como um dos fundamentos da República. Cidadania, entre outras coisas, significa a participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, pelo exercício do direito de voto ou por algum dos mecanismos de democracia direta admitidos pelo Estatuto Supremo. Para tanto, a administração pública deve ser transparente, inclusive na disponibilização de dados sobre a arrecadação e, principalmente, sobre a renúncia fiscal e qual a sua justificativa. A pergunta relevante é: quem está sendo beneficiado? Outra pergunta relevante é: quem está financiando o setor público (quem arca com o ônus tributário)?

Outro dos fundamentos da República é a dignidade da pessoa humana, prestigiada no inciso III do mesmo artigo. Então, a incidência tributária deve ter como limite o consumo mínimo indispensável para garantir essa dignidade. São condições mínimas para permitir a existência digna, a alimentação, a saúde, a educação e a moradia. Assim, o sistema tributário deve prever isenção para as mercadorias que compõe a cesta básica de consumo. O mesmo em relação aos medicamentos, pois, na dicção do art. 196, a saúde é direito de todos e dever do Estado. O imposto sobre a renda, por sua vez, deve adotar deduções realistas sobre itens como saúde, dependentes, educação e qualificação profissional. Também se pode pensar em um programa de renda mínima. Quanto aos impostos sobre a propriedade, torna-se imperativo declarar a intributabilidade da casa de moradia da família, cuja proteção está entre os objetivos da assistência social, conforme dispõe o art. 203. 

O art. 150, II, veda o tratamento tributário desigual a contribuintes que se encontram em situações equivalentes. As diferenças de tratamento somente podem ser admitidas em razão das desigualdades entre as pessoas, para equilibrá-las. Os impostos devem ser cobrados de todos, mas na proporção da capacidade contributiva de cada um. Não devem ser admitidas exceções que venham em benefício de alguns em detrimento da grande maioria o que se costuma referir como “privilégio odioso”. Desse modo, toda e qualquer exoneração tributária deve ser justificada (i) pelo princípio da igualdade (levando em conta as desigualdades entre as pessoas); ou (ii) pelo interesse público e o bem comum (extrafiscalidade).

A construção de uma sociedade livre, justa e solidária a que se refere o art. 3º, I, como um dos objetivos fundamentais da República, requer um sistema tributário progressivo que tribute de forma mais pesada as altas rendas e de forma mais branda as pequenas rendas. O rendimento de capital deve ser mais tributado que o rendimento do trabalho. Para realizar o objetivo da constituição, deve ser diminuída a participação dos impostos indiretos – que oneram mais pesadamente as pequenas rendas – no perfil da arrecadação. Por fim, a tributação sobre as heranças deve ser progressiva e com alíquotas mais altas.

Outro dos objetivos fundamentais, previsto no art. 3º, II, é a garantia do desenvolvimento nacional. O desenvolvimento deve ser entendido como desenvolvimento econômico e social. Do ponto do desenvolvimento econômico,  o sistema tributário deve cuidar para não onerar a empresa, e sim os detentores do capital. A graduação dos tributos deve obedecer a critérios extrafiscais de estímulo ao investimento, ao empreendedorismo e à adoção e desenvolvimento de novas tecnologias. Essas poderiam ser as diretrizes para condicionar o tratamento tributário de microempresas e empresas de pequeno porte.

Do ponto de vista do desenvolvimento social, o sistema tributário deve ser concebido de modo a facilitar e estimular o desenvolvimento do ser humano, tanto como indivíduos como em suas relações com outros seres humanos. Devem ser facilitadas e estimuladas atividades de caráter cultural, quanto ao primeiro aspecto, e de solidariedade social, quanto ao segundo.

A erradicação da pobreza e da marginalidade, objetivo previsto no art. 3º, III, requer uma tributação voltada para a garantia de níveis mínimos de consumo e o resgate do ser humano em seus valores como ser humano, inclusive de solidariedade.

A redução das desigualdades sociais e regionais, prevista no mesmo dispositivo, requer uma tributação que estabeleça mecanismos de compensação entre classes e grupos sociais e entre regiões. Para tanto, devem ser adotados incentivos fiscais e tributos progressivos. Para atingir esse objetivo, tem larga aplicação a graduação de tributos segundo os critérios da pessoalidade e da capacidade econômica, referidos no § 1º do art. 145.

O art. 170, IV, elege a livre concorrência como um dos princípios que informam a ordem econômica, ou seja, uma economia de mercado regida pelo sistema de preços. Para ser compatível com o sistema de livre concorrência, a tributação sobre o consumo deve ser neutra, ou seja, um imposto não-cumulativo cobrado uniformemente sobre bens e serviços. O ICMS não mais deve ser usado como instrumento de política econômica. Devem ser buscadas alternativas para a alavancagem das economias dos Estados e dos Municípios.

Em síntese, o sistema tributário deve ser construído a partir da Constituição e dos valores que ela abriga. Os tributos devem ser concebidos de modo a realizar esses valores. Os valores, por vezes conflitantes, devem ser combinados de modo a resultar em um sistema harmônico e coerente. Esse é o nosso desafio, como povo e como nação.

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