Velocino Pacheco Filho
A interpretação do direito deve sempre tomar como referência o conteúdo axiológico da Constituição, já que esta representa o documento normativo fundamental do ordenamento jurídico. Quando a legislação infraconstitucional frustra a realização dos valores contidos na Constituição, estamos diante do que Karl Engisch denomina “contradição teleológica”. A interpretação do direito tributário não é diferente.
Pois bem, o art. 170, IX, da Constituição coloca entre os princípios informadores da ordem econômica, o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte” e, no art. 179, que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.
O tratamento tributário favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte encontra ressonância no princípio da igualdade, como formulado no art. 150, II, que veda “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”, e no objetivo fundamental de reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III). O tratamento favorecido, portanto, encontra-se plenamente justificado, conforme o ordenamento.
Contudo, na tentativa de acelerar e uniformizar o processo, a Emenda Constitucional 42/2003, acrescentou ao inciso III do art. 146 da Lei Maior, alínea “d”, incluindo entre as normas gerais em matéria de legislação tributária, reservada ao legislador complementar, a “definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte”. A mesma emenda acrescentou a esse artigo parágrafo único, facultando à lei complementar a instituição de “regime único de arrecadação dos impostos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Nesse sentido, foi editada a Lei Complementar 123/2006, dispondo sobre o “tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. A mesma lei complementar instituiu o regime único de apuração e recolhimento de impostos e contribuições conhecido como Simples Nacional. Entre outros, passou a integrar o SN, impostos tão dispares como o Imposto de Renda pessoa jurídica, o ICMS e o ISS. O produto da arrecadação seria repartido entre os titulares originais desses impostos: União, Estados, DF e Municípios.
Ora, cada um desses impostos tem fatos geradores e bases de cálculo distintas e submetem-se a diferentes princípios. O imposto sobre a renda tem como fato gerador a “aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou de proventos de qualquer natureza”. A base de cálculo é “o montante real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis”. Além disso, é informado “pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade”.
O ICMS, por sua vez, tem por fato gerador operações relativas à circulação de mercadorias ou a prestação de serviços de transporte e comunicação. A base de cálculo, evidentemente, é o valor da operação ou prestação (preço cobrado do adquirente da mercadoria ou do tomador do serviço). Rege-se pelo princípio da não-cumulatividade que permite compensar o imposto devido em cada etapa de circulação com o que foi cobrado nas anteriores.
Por fim, o ISS, tem por fato gerador a prestação de serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência dos Estados e definidos em lei complementar. A base de cálculo é o preço do serviço.
Como conciliar fatos geradores tão díspares como auferir renda, realizar operação de circulação de mercadorias e prestar serviço? Como calcular conjuntamente o imposto devido correspondente a bases de cálculo tão diversas como renda e preço? Como conciliar princípios como não-cumulatividade e progressividade em uma mesma exação?
Resposta: não pode! É como tentar colocar cavilhas quadradas em buracos redondos. O resultado é uma legislação confusa, incoerente e de difícil aplicação e administração que, com uma sorte de humor sinistro, resolveram chamar de “simples”.
Poderíamos entender que se trata de um novo imposto? Se este é o caso, de quem é a competência para instituí-lo? Conforme art. 154 da Constituição, o exercício da chamada competência residual da União está restrita a que o novo imposto seja não-cumulativo e não tenha fato gerador ou base de cálculo próprios dos nela discriminados. Além disso, vinte por cento (e não quatro) deveria ser distribuído entre os Estados e o Distrito Federal, conforme art. 157, II.
De qualquer modo, o parágrafo único do art. 146 não autoriza a criação de um novo imposto (talvez devesse tê-lo feito), mas a instituição de “regime único de arrecadação”, ou seja, que cada um dos tributos envolvidos mantenha sua integridade no que se refere a fato gerador, base de cálculo e princípios informadores.
Chega? Tem mais!
O que fazer se a legislação do ICMS conceda uma isenção em situação não prevista pela legislação do SN. O que fazer? A operação deve ser excluída do cálculo do Simples, respeitando a isenção? Para perplexidade de todos, os diligentes servidores do Fisco, em uma interpretação simplória, entendem que, não havendo previsão na legislação do Simples, o contribuinte não teria direito à isenção. Isto quer dizer que a legislação do Simples prevalece sobre a legislação do ICMS, ou melhor dizendo, ela revoga a legislação do ICMS. A qualquer objeção a essa desigualdade no tratamento tributário entre a empresa dita normal e a enquadrada no Simples Nacional, os diligentes servidores respondem que “a opção pelo Simples é facultativa”.
Mas como! Conforme dispõe a Constituição, União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem dispensar tratamento tributário “favorecido”, ou seja, mais benéfico que o dado à empresa normal. Como justificar que a empresa normal seja beneficiada com isenção e à empresa enquadrada no Simples seja negado o mesmo benefício? É a subversão dos valores constitucionais pela falta de compreensão do ordenamento pelos diligentes servidores fazendários, configurando o que Karls Engisch identifica como contradição teleológica, caracterizada pela frustração dos valores prestigiados pelo constituinte originário.
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