O ICMS nas operações de transferência de
mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa
Velocino Pacheco Filho
Dispõe o art. 12, I, da Lei Complementar 87/1996 (que
dispõe sobre normas gerais relativas ao ICMS) que considera-se ocorrido o fato
gerador do imposto no momento da saída da mercadoria do estabelecimento do
contribuinte, ainda que para outro
estabelecimento do mesmo titular.
O § 4º do art. 13 da mesma Lei dispõe sobre a base de
cálculo do imposto, na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em
outro Estado, pertencente ao mesmo
titular.
Parece claro que o legislador complementar considerou
como tributadas pelo ICMS as transferências de mercadorias entre
estabelecimentos pertencentes ao mesmo contribuinte.
Contudo, não tem sido este o entendimento do Superior
Tribunal de Justiça: albergando tese majoritária na doutrina nacional, considera
que “para a ocorrência do fato imponível é imprescindível a circulação jurídica
da mercadoria com a transferência da propriedade” (Agravo Regimental em Recurso
Especial 45.856 MG, Primeira Turma, Revista Dialética de Direito Tributário
212, p. 208, maio de 2013).
Trata-se, na verdade, de jurisprudência sumulada:
Súmula STJ 166: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de
mercadoria de um para outro estabelecimento”.
Com efeito, a doutrina nacional tem rejeitado a tese
de que a simples saída física da mercadoria do estabelecimento, seja a que
título for, constitui fato gerador do tributo. Nas palavras de Sacha Calmon
Navarro Coelho (Curso de Direito Tributário Brasileiro, 2012, p. 461), a tese “está
hoje inteiramente superada”. Prossegue o mesmo autor dizendo que “em seu lugar,
contrapôs-se a tese doutrinariamente unânime e juridicamente adequada que
entende não haver circulação sem a transferência de propriedade das
mercadorias.
Estamos diante de um impasse que precisa ser solucionado.
Por um lado, a tese “fiscalista”, adotada pela Lei Complementar 87/96, de um
fato gerador amplo, abrangendo qualquer saída da mercadoria do estabelecimento,
inclusive para estabelecimento do mesmo contribuinte. Por outro, a tese
desenvolvida pela doutrina e acolhida pelo STJ de que a caracterização do fato
gerador implica necessariamente a transferência de propriedade das mercadorias.
A Lei Complementar está em vigor. Não foi declarada a
exclusão do art. 12, I, e 13, § 4º, do ordenamento jurídico tributário. Os
Estados estão impedidos de dispor de modo contrário à Lei Complementar 87, por
força do § 4º do art. 24 da Constituição Federal (que trata da competência
concorrente, inclusive em matéria tributária). O que temos é uma jurisprudência
sumulada que nega aplicação a dispositivos da Lei Complementar, sem retirá-los
do ordenamento tributário.
Sem dúvida, a forma mais prática de realizar o
princípio da não-cumulatividade é tributar todas as movimentações de
mercadorias, mesmo entre estabelecimentos do mesmo titular. Afinal, o mecanismo
de transferência do “crédito” fiscal foi concebido, tendo por base o princípio
da autonomia do estabelecimento (embora o estabelecimento não tenha
personalidade jurídica própria, diversa do sujeito passivo tributário).
Uma conseqüência nefasta de considerar não-tributável
as transferências entre estabelecimentos do mesmo titular está na aplicação da
regra do art. 155, § 2º, II, “b”, da Constituição Federal: “a isenção ou
não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, acarretará a
anulação do crédito relativo às operações anteriores”. Assim, o “purismo” de
não querer tributar as transferências de mercadorias entre estabelecimentos do
mesmo contribuinte acarreta a anulação dos créditos no estabelecimento de
origem e torna o imposto cumulativo naquela etapa.
A situação pode se tornar mais complicada nas
operações interestaduais em que a transferência de mercadorias ocorre entre
estabelecimentos do mesmo contribuinte situados em diferentes unidades da
Federação. Nesse caso, muda o próprio sujeito ativo tributário. Roque Antonio
Carrazza (ICMS2005, p. 56) demonstrou sesibilidade para o problema: “quando a
mercadoria é transferida para estabelecimento do próprio remetente, mas situado
no território de outra pessoa política (Estado ou Distrito Federal), nada
impede, juridicamente, que a filial venha a ser considerada ‘estabelecimento
autônomo’, para fins de tributação por via do ICMS. Assim é para que não se
prejudique o Estado (ou o Distrito Federal) de onde sai a mercadoria”.
Essa é uma situação que reclama dos doutos uma
solução. O que não pode é os Estados continuarem a ignorar jurisprudência
sumulada do STJ e este, por sua vez, continuara a declarar a não-incidência do
ICMS nas operações de transferência entre estabelecimentos do mesmo
contribuinte. Enquanto não for encontrada uma solução racional, continuará a
ser agredido o valor segurança do direito
e a presunção de completude do ordenamento jurídico.
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