DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

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segunda-feira, 3 de março de 2014

O ICMS NO COMÉRCIO ELETRÔNICO: PROTOCOLO 21 E REFORMA TRIBUTÁRIA (Parte 3/4)



O ICMS NO COMÉRCIO ELETRÔNICO:
PROTOCOLO 21 E REFORMA TRIBUTÁRIA
Ubaldo Cesar Balthazar
Luciane Aparecida Filipini Stobe

PARTE 3/4

5. Protocolo 21 – uma resposta inconstitucional à omissão da reforma tributária - Quando os Estados fora do eixo sul-sudeste e o Espírito Santo perceberam a grande perda na arrecadação decorrente do comércio eletrônico, decidiram firmar um Protocolo. Protocolos são regulamentações tributárias previstas no artigo 38 do Regimento Interno do CONFAZ, com natureza de ato administrativo. 

Assim, no dia primeiro de abril de 2011 dezoito Estados brasileiros, ditos consumidores (Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia e Sergipe e o Distrito Federal) assinaram o Protocolo 21/2011, celebrado no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Referido documento estabeleceu que os Estados devem exigir a parcela do ICMS sobre operações interestaduais  em que o consumidor final adquire mercadorias ou bens via internet, telemarketing ou showroom, repartindo suas receitas nessas operações. A exigência do imposto pela unidade federada destinatária da mercadoria ou bem, aplica-se, inclusive, nas operações procedentes de unidades da Federação não signatárias do protocolo.

A cláusula segunda do Protocolo cria a figura do substituto tributário no estabelecimento remetente. Dispõe a norma que nas operações interestaduais entre os Estados aderentes deste, o estabelecimento remetente, na condição de substituto tributário, será responsável pelo recolhimento do ICMS, que será pertencente à unidade de destino, quanto à parcela cabível. O pagamento do imposto  relativo à parcela  a este cabível, poderá ser exigível a partir do momento em que a mercadoria ingressar no território de destino, mesmo que a operação envolva um Estado não signatário do referido Protocolo.

As alíquotas também foram fixadas pelo Protocolo, sendo 7% (sete por cento) para as mercadorias ou bens oriundos das Regiões Sul e Sudeste, exceto do Estado do Espírito Santo e 12% (doze por cento) para as mercadorias ou bens procedentes das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e do Estado do Espírito Santo. As intenções que nortearam a elaboração do Protocolo 21 vêm expressas em seu texto:

(...) considerando que a sistemática atual do comércio mundial permite a aquisição de mercadorias e bens de forma remota; considerando que o aumento dessa modalidade de comércio, de forma não presencial, especialmente as compras por meio da internet, telemarketing e showroom, deslocou as operações comerciais com consumidor final, não contribuintes de ICMS, para vertente diferente daquela que ocorria predominante quando da promulgação da Constituição Federal de 1988; considerando que o imposto incidente sobre as operações de que trata este protocolo é imposto sobre o consumo, cuja repartição tributária deve observar esta natureza do ICMS, que a Carta Magna na sua essência assegurou às unidades federadas onde ocorre o consumo da mercadoria ou bem; considerando a substancial e crescente mudança do comércio convencional para essa modalidade de comércio, persistindo, todavia, a tributação apenas na origem, o que não coaduna com a essência do principal imposto estadual, não preservando a repartição do produto da arrecadação dessa operação entre as unidades federadas de origem e de destino, resolve celebrar o seguinte[1]. (grifo nosso)

Os Estados signatários, predominantemente consumidores, têm alíquotas interestaduais menores que os produtores e, conforme Anis Jr. Kfouri, “se o destino é para cima, a alíquota desce; se o destino é para baixo, a alíquota sobe”, tendo em vista que para os Estados do Sul e do Sudeste as alíquotas são de 12% e para os Estados do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Espírito Santo são de 7% (KFOURI. 2012.p.440).

A guerra fiscal[2] que sempre se estabelecia em decorrência da concessão de isenções e benefícios dados pelos Estados de forma unilateral, sem a participação do CONFAZ (art. 155, § 2º, XII, “g”, CF/1988  combinado com o art. 1º da Lei Complementar nº 24/1975), a fim de atrair investimentos e indústrias para seus territórios, passou a ser travada nos setores atacadistas com caráter arrecadatório. A competição excessiva entre os Estados leva a uma deformidade gigantesca entre as regiões do país e uma falha na arrecadação de todos os entes.

Além de não solucionar o problema da guerra fiscal no comércio eletrônico, o Protocolo 21 vem acirrando ainda mais esta disputa, já que os Estados que mais influenciam e mais faturam no setor do e-commerce, quais sejam São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, não fazem parte do acordo.

No campo jurídico, a discussão baseia-se na possibilidade, ou não, da cobrança do tributo no Estado de destino da operação realizada no e-commerce por consumidor final.

Uma análise minuciosa do objeto do Protocolo permite afirmar que este cria nova hipótese de incidência para o ICMS: a entrada em território estadual de mercadoria adquirida no e-commerce e destinada a consumidor final. Esta “nova incidência” viola expressamente vários preceitos constitucionais, como os princípios da estrita legalidade, competência tributária, pacto federativo, capacidade contributiva, e tangencia o efeito confiscatório do tributo.

Em um singelo exemplo, se uma empresa situada no Estado de São Paulo realiza uma venda para um consumidor final que reside no Distrito Federal, serão cobrados 10% de ICMS no Estado de destino e mais 18% de alíquota interna de São Paulo, concretizando uma anômala carga tributária de 28% só de ICMS, caso explícito de bitributação, motivada pelo pagamento da alíquota interna, conforme previsão constitucional e mais a alíquota prevista no Protocolo 21, pesando consideravelmente no bolso do consumidor.

Esta prática viola o princípio capacidade contributiva, vez que onera excessivamente o preço do consumo. O elevado custo da mercadoria traz implicações no desenvolvimento nacional. No aspecto da proteção negativa o poder de tributar do Estado vem limitado na ordem constitucional. Um desses limites é o princípio da capacidade contributiva, esculpido no artigo 145, § 1º, da Constituição Federal, o qual dispõe que “os impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”.

Como os impostos devem ser graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes, o Estado não pode aniquilar essa capacidade, no sentido de obstaculizar a possibilidade do cidadão de viver dignamente (art.1º), desenvolver sua livre iniciativa (art. 170, caput), o livre exercício de atividade econômica (art. 170 § único) e sua propriedade privada (arts. 5º, caput, e 170 II) (ÁVILA, 2006, p.363).

O aumento excessivo da carga tributária pela incidência de ICMS de forma dúplice: a alíquota interna para o Estado fornecedor, mais a alíquota do Protocolo (7% ou 12%) para o Estado consumidor, gera nitidamente um efeito confiscatório.

Em relação à criação da uma nova hipótese de incidência consistente na entrada em território estadual de mercadoria adquirida no e-commerce e destinada a consumidor final, o Protocolo apresenta uma flagrante inconstitucionalidade. É que o fato capaz de gerar a obrigação tributária (denominado fato gerador) somente pode concretizar-se se estiver emoldurado em lei. Ou seja, apenas o fato concretamente ocorrido, subsumido à lei, é o fato imponível (ATALIBA, 2005, p. 58).           

Não há, desta forma, possibilidade jurídica de criação ou majoração de tributos por protocolo (ato de natureza administrativa), como intenta o Protocolo 21. A incidência tributária norteia-se pelo princípio da legalidade que se consubstancia como um princípio necessário à instituição de tributos (BALEEIRO, 2010, p. 76).

No regime democrático representativo, a escolha de fatos e/ou situações que criam o episódio jurídico-tributário é feita pelo legislador (SABBAG, 2012, p. 673). A legalidade é um princípio basilar dos Estados de Direito, que se traduz não só na vedação de tributação sem lei, mas, acima de tudo, constitui a segurança jurídica e social, consubstanciada no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal que dispõe: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei.” O princípio da legalidade reproduz-se no artigo 150, I, da Constituição que veda aos entes tributantes “exigir ou aumentar tributo sem lei”.

Os elementos analisados garantiram o reconhecimento pelos Tribunais pátrios da inconstitucionalidade do Protocolo 21. Assim entendeu o Tribunal do Distrito Federal, dispondo que
“(...) o PROTOCOLO ICMS nº 21 disciplinou nova incidência tributária sobre as operações interestaduais que destinem mercadoria ou bem ao consumidor final, cuja aquisição ocorrer de forma não presencial no estabelecimento remetente – denominado comércio eletrônico (internet, telemarketing ou showroom). 3. Considerando que o Protocolo não foi unânime, ou seja, não restou assinado por todos os Estados da Federação, mostra-se nítida a violação do pacto federativo. 4. Na forma do art. 155, § 2º, XII, b, da CF/1988, deve ser adotada a alíquota interna do ICMS quando o destinatário não for contribuinte do ICMS, sendo este tributo devido à unidade federada de origem e não à unidade federada destinatária. 5. Agravo Regimental não provido. Decisão. Rejeitada a preliminar, negou-se provimento ao recurso. Decisão unânime. (Processo nº 2011002015395-8, DJe de 11.10.2011 – TJ/DF)

Fortemente embasado, o Supremo Tribunal Federal também afastou a aplicabilidade do Protocolo na análise da ADI 4565:

“Tem densa plausibilidade o juízo de inconstitucionalidade de norma criada unilateralmente por ente federado que estabeleça tributação diferenciada de bens provenientes de outros estados da Federação, pois:

(a) Há reserva de resolução do Senado Federal para determinar as alíquotas do ICMS para operações interestaduais;

(b) O perfil constitucional do ICMS exige a ocorrência de operação de circulação de mercadorias (ou serviços) para que ocorra a incidência e, portanto, o tributo não pode ser cobrado sobre operações apenas porque elas têm por objeto “bens”, ou nas quais fique descaracterizada atividade mercantil-comercial;

(c) No caso, a Constituição adotou como critério de partilha da competência tributária o estado de origem das mercadorias, de modo que o deslocamento da sujeição ativa para o estado de destino depende de alteração do próprio texto constitucional (reforma tributária). Opção política legítima que não pode ser substituída pelo Judiciário.

Medida liminar concedida para suspender a eficácia prospectiva e retrospectiva (extunc) da Lei estadual 6.041/2010.

(ADI 4565; Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Requeridos: Governador do Estado do Piauí e Assembleia Legislativa do Estado do Piauí; Rel. Min. Joaquim Barbosa; DJe de 27.06.2011)

A inconstitucionalidade do Protocolo 21 está hiante em seu texto e já demonstrada na jurisprudência pátria.

Todavia, é evidente que o Protocolo 21 é uma resposta, inconstitucional, como visto, da discordância com a atual forma de tributar bens comercializados pela internet. É um alerta ao poder constituinte derivado da necessidade urgente de alteração do modelo constitucional, no sentido de avançar com a legislação tributária para garantir o equilibrado desenvolvimento nacional com a redução das desigualdades regionais. É manifesta a crescente perda de receita do ICMS pelos Estados que não possuem forte comércio eletrônico. O simples afastamento do Protocolo 21, por inconstitucional, resolve um problema, para observação da estrita legalidade, mas mantém descumpridos os objetivos da República Brasileira, esculpidos no artigo 3º, inciso II e III, da Constituição Federal: garantir o desenvolvimento nacional com a redução das desigualdades regionais. Ainda, o atual modelo de incidência tributária do ICMS nas operações de comércio eletrônico de mercadorias destinadas a outros Estados (diverso do fornecedor) afronta o pacto federativo. 

Segundo dados do Ministério da Fazenda[3], dos R$ 29.475.108,00 de arrecadação do ICMS em valores correntes no mês de maio/2013, a região Sudeste responde por R$ 16.494.348,00, ao passo que a Região Norte arrecadou apenas R$ 924.418,00.

A exorbitante diferença é vista também em relação às demais regiões. Esta é uma mostra do crescimento desproporcional na arrecadação do ICMS entre Estados fornecedores e Estados consumidores.

O que o Protocolo 21 escancara é a emperrada resistência a uma reforma tributária no Brasil. Despreocupado com o desenvolvimento nacional equilibrado, o Congresso Nacional ignora uma legislação tributária desatualizada e desloca para o Judiciário a obrigação de fornecer uma resposta política à sociedade brasileira.

Figuras anômalas como o Protocolo 21 evidenciam a urgente necessidade de uma reforma tributária capaz de servir antes aos objetivos da República. Alguns projetos de emenda constitucional[4] objetivam alterar o sistema de repartição do ICMS no caso de mercadorias adquiridas no comércio eletrônico, mas a morosidade e os divergentes interesses de forças políticas nacionais impedem o avanço da modernização da legislação tributária.

A luta dos Estados destinatários dos produtos do e-commerce para não perder arrecadação é legítima, o que não significa que estes possam praticar ilicitudes como forma compensativa. Necessário é promover a livre concorrência, a competitividade, fortalecer o comércio local, aumentar a geração de emprego e renda, e diminuir a perda da arrecadação, através de meios legais sem desconsiderar os princípios basilares da Constituição.

O comando para uma reforma tributária que atenda o desenvolvimento socioeconômico equilibrado do país, já fora dado pela Constituição Federal. Esta, em seu artigo 151, veda à União instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação aos entes tributantes, admitindo-se a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento entre as diferentes regiões do país. O princípio da uniformidade procura eliminar os chamados privilégios odiosos.

Referido princípio coaduna-se com o artigo 152 que, direcionado aos Estados e Distrito Federal, proíbe o estabelecimento de diferenças tributárias entre bens e serviços em razão da procedência ou destino.

Nesta esteira, Anis Kfouri Jr. explica que um Estado-membro não pode instituir alíquotas diferenciadas de ICMS por cidade, o que também afetaria o princípio da uniformidade geográfica. (KFOURI. 2012. p. 181)

O princípio da uniformidade geográfica, contudo, não impossibilita a adoção de alíquotas diferenciadas pelos entes políticos, dentro de suas competências tributárias e nos limites constitucionais e legais, que é o que ocorre com o ISS, sabendo que os Municípios têm a possibilidade de instituir alíquotas variando entre 2% e 5%.

Além de atender ao princípio da igualdade, este princípio também visa atender o pacto federativo. Nesta cadência, no mesmo compasso da isonomia, o princípio da uniformidade geográfica admite tratamento distinto àqueles que não se igualam, pois tem por objetivo o equilíbrio entre todas as regiões do país. Conforme ADI nº. 4713, o Protocolo 21/2011 contraria a autonomia dos entes federados não signatários.

Observa-se que Constituição Federal (art. 170, VII) consubstancia e garante a existência de uma ordem econômica fundada na redução das desigualdades regionais e sociais. O artigo 174 da Constituição de 1988 considera o Estado como normatizador e regulador da atividade econômica, atribuindo-lhe as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. 

A Carta Republicana deixou claramente aberta a possibilidade de o Estado direcionar seus esforços de forma heterogênea, visando justamente desfraldar políticas públicas capazes de reduzir as desigualdades regionais e o desenvolvimento localizado, e assim, efetivamente, implantar o desenvolvimento nacional de modo o mais uniforme possível (enquanto direito da sociedade de reivindicar à realização de políticas públicas), implementando um dos principais objetivos republicanos (COMPARATO, 1989, p.53).


[2] A guerra fiscal é a prática competitiva exagerada, que fere o princípio federativo, excluindo qualquer modo de cooperação dos entes federados quanto aos tributos (AQUINO. 2012).
[4] A exemplo da PEC 227/2008, ou da PEC 56/2011.

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