Ubaldo Cesar Balthazar
Luciane Aparecida Filipini Stobe
1. Introdução - O presente artigo tem o objetivo de demonstrar que
a forma de tributação do imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e serviços de transportes e comunicações (ICMS) nas operações concernentes
à circulação de mercadorias quando da aquisição destas no comércio eletrônico é
empecilho ao cumprimento dos objetivos da República Federativa da Brasil, em
especial quanto ao desenvolvimento nacional equilibrado com vistas à redução
das desigualdades regionais.
A análise do tema é conduzida
pelo viés constitucional. Primeiramente, apresenta-se o modelo do Estado
Brasileiro: estado federado, de forma republicana e regime democrático, que
encontra na tributação sua sustentabilidade. No segundo momento, demonstra-se a
incidência tributária do ICMS, especialmente quanto à circulação de mercadorias
e serviços.
Por fim, faz-se um estudo dos
desdobramentos do advento do Protocolo 21, que trata da repartição da receita
do ICMS incidente nas operações relativas à circulação de mercadorias adquiridas
por meio eletrônico. O exame é perpassado por princípios constitucionais
aplicáveis à matéria.
A importância do estudo
evidencia-se pelo aumento significativo do comércio de mercadorias via
internet, entre Estados fornecedores e consumidores domiciliados em outras
unidades da Federação. Sobre estas operações de compra e venda, há incidência
tributária do ICMS, que tradicionalmente incidia e era recolhido no Estado em
que se operava a circulação da mercadoria. Mas, com a possibilidade de empresas
virtuais, o local físico perdeu importância, o que trouxe consequências no
campo tributário.
2. República e federação no Brasil - A discussão da incidência
tributária do ICMS sobre mercadorias adquiridas no comércio eletrônico precisa
ser situada no campo da República Federativa Brasileira, onde há autonomia dos
entes federados e objetiva-se um desenvolvimento nacional equilibrado.
Luiz Roberto Barroso explica que
a democracia, a república e federação constituem o trinômio essencial do Estado
brasileiro (BARROSO, 2004, p. 203). O desdobramento desses conceitos em seus
princípios correlatos orienta o agir estatal no sentido de limitação de poder e
garantia de direitos fundamentais.
Ensina Geraldo Ataliba que:
A República é a expressão
concreta do Estado de Direito que a cidadania brasileira quis criar, ao plasmar
suas instituições. A partir da consciência cívica da titularidade da res publica
e da convicção da igualdade fundamental entre todos os cidadãos, estruturou-se
o Estado brasileiro na base da idéia de que o governo seria sujeito à lei e
esta haveria de emanar do órgão da representação popular (ATALIBA, 2007, p.95).
Roque Antonio Carraza coaduna com
este entendimento ao afirmar que a República é o “tipo de governo, fundado na
igualdade formal das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no
em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com
responsabilidade” (CARRAZZA, 2006, p.58).
Na República todos os cidadãos,
na qualidade de detentores da res publica,
estão investidos de poder. Todavia, no regime democrático representativo
brasileiro, o exercício do poder político dá-se por representação, escolhida
pelo voto – expressão da vontade do povo. Assim, a democracia é o regime
político que o Brasil adotou para eleger seus governantes. A origem da palavra (demos “povo” e kratos “autoridade”), indica claramente que a autoridade do Estado
está nas mãos do povo.
Originariamente, o povo é o
detentor do poder político, e a origem deste poder está prevista no artigo 1º
da Constituição Federal. Ao eleger seus governantes o povo participa, ainda que
indiretamente, da vida e do governo do Estado. Segundo Dalmo de Abreu Dallari, “a cidadania expressa um conjunto de
direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do
governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da
vida social e da tomada de decisões” (DALLARI, 2007, p.85)
Existem casos em que a democracia
é praticada de forma direta, como, por exemplo, o plebiscito, o referendo e a
iniciativa popular.
O poder político (recebido por
delegação) deverá ser exercido em harmonia perfeita com a Constituição Federal
e às leis a ela submetidas, para que o princípio republicano não seja corroído
e se respeite a soberania popular. É inadmissível na República que o povo, em cujo
nome o poder é exercido, seja lesado por omissão ou comissão estatal. A essência
republicana indica que o “bem estar do povo seja a lei suprema” (CARRAZZA,
2006. p.63)
Desta forma, o conceito de
República no Brasil não coaduna com o favorecimento de apenas algumas camadas
da sociedade. Dessa forma, importante salientar que a República como forma de
governo difere da democracia plena, tendo em vista que nesta o poder é integral
e soberanamente de todo o povo. Na República brasileira, com algumas exceções
como, por exemplo, o plebiscito, nenhum ato governamental é exercido diretamente
pelo povo. Concretamente, o povo transfere o poder que lhe pertence,
temporariamente, aos representantes que elege através de sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto.
No Brasil, é através do voto que
o cidadão participa do governo e volta sua atenção para o interesse público; pode-se
dizer que o direito ao voto liga-se à soberania nacional e à democracia
representativa (CARRAZZA, 2006, p.63)
República é, ao lado de
federação, o princípio fundamental mais forte do sistema jurídico brasileiro. É
um princípio de base e fundamental para toda a Constituição. A Constituição
Federal reporta-se ao princípio republicano e propaga-o para todo o sistema. Ensina
Geraldo Ataliba:
Tal é sua importância no contexto
do nosso sistema, tão dominante sua força, que influi, de modo decisivo, na
interpretação dos demais princípios constitucionais e, com maior razão, de
todas as regras constitucionais. A
fortiori, todas as leis devem ter sua exegese conformada às suas
exigências, inclusive as leis constitucionais, a começar do Texto Magno
(ATALIBA,1985, p.05).
O princípio republicano irradia
sua força e alcança diretamente os estudos tributários, considerando ser o
tributo a principal fonte de sustentação estatal e ter, por determinação
constitucional, função social.
A República liga-se diretamente à
Federação, pois a República implica em poder emanado do povo, poder que,
logicamente, necessita estar próximo do povo. É basicamente esse o objetivo da
federação: uma organização do poder, “o modo como se dá a distribuição espacial
do poder político” (BARROSO, 2010, p. 172).
Elucidativa a lição de Alexandre
de Moraes:
No processo dinâmico da história,
o Estado federal e presidencialista apresentava mudanças inicialmente
caracterizadas por um modelo idealizado fraco (rei sem coroa), que nunca chegou
a existir ou ser aplicado na prática, logo modificado por um processo político
autoritário e centralizador em torno da figura da União e do presidente; e,
mais modernamente, em uma tentativa de ampliação dos poderes de controles
parlamentares e judiciais em relação ao Executivo e à divisão constitucional de
competências, para garantia de maior estabilidade democrática e força aos
estados-membros. (MORAES, 2011, p. 12)
O pacto federativo foi consagrado,
inicialmente, na primeira Carta republicana, em 1891. Na época os Estados-membros
possuíam teoricamente um poder político, mas na prática este se concentrava nas
mãos do Presidente da República.
A Constituição de 1934 ratificou
o federalismo, tendo porém incluído o Distrito Federal e criado os Territórios.
Mesmo durante a ditadura Vargas (1937 a 1945), o princípio foi mantido, mas
praticamente ineficaz. Em 1946 o federalismo é revigorado, porém durante a
ditadura militar (1964-1985), os Estados ficaram destituídos de força política
e econômica, centralizada na União.
Com a volta da democracia na
Constituição de 1988, a forma federativa vem pactuada no artigo 1º da Carta
Magna, conforme se lê: “A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito (...)” O princípio federativo consta do artigo 18:
“A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil
compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos
autônomos, nos termos desta Constituição (...).” A indissolubilidade da
federação é uma de suas marcas (art. 1º, caput,
CF) e cláusula pétrea (art. 60,§ 4º, CF).
A Federação caracteriza-se pela
comunhão perpétua e indissolúvel de seus integrantes, mostrando laços mais
apertados entre seus componentes, em ambiente e paridade e coordenação (KFOURI,
2012, p.368).
O federalismo tem como
características: a) A repartição de competência legislativa, administrativa e
tributária. É imprescindível atribuir aos entes competência em matéria
tributária, que garanta renda própria, como previsto nos artigos, 145, 148,
149, 149-A, 153 a 156, da Constituição Federal; b) Autonomia dos entes
federados, entendida como poder de autodeterminação; c) Participação na formação
da vontade do ente global (através da composição paritária do Senado Federal)
(BARROSO, 2010, p. 173)
Na Federação os Estados são
independentes entre si, porém ligados e submissos a União. Trata-se de uma
aliança entre os estados federados da União. Neste sentido Roque Antonio Carrazza
leciona:
De qualquer modo, podemos dizer
que Federação (de foedus, foederis,
aliança, pacto) é uma associação, uma união institucional de Estados, que dá
lugar a um novo Estado (o Estado Federal), diversos dos que dele participam (os
Estados-membros). Nela, os Estados Federados, sem perderem suas personalidades
jurídicas, despem-se de algumas tantas prerrogativas, em benefício da União
(CARRAZZA, 2006, p.127).
A federação também se caracteriza
pelos vários níveis de poder em que é dividida, representado pelos seus entes
federados. Da descentralização administrativa e política, fraciona-se o poder
soberano do Estado para garantir autonomia aos seus entes.
Para tal autonomia ser possível,
foram estabelecidas competências para a instituição de tributos pela União,
Estados, Distrito Federal e Municípios, pois para a existência fática da
autonomia dos entes é imprescindível os recursos financeiros, de forma que cada
ente possa desempenhar suas atribuições sem depender do poder econômico dos
outros (KFOURI. 2010, p.29).
O modelo de Estado Federado foi
adotado no Brasil a fim de promover a descentralização da arrecadação e da
administração das receitas, contrariamente evidenciada no regime ditatorial
anterior à Constituição de 1988, dessa forma possibilitando igualdade entre os
entes que fazem parte do país. Ou seja, suscitando um meio de distribuir
proporcionalmente verbas para as diversas regiões do país, levando em conta o
número populacional, posição geográfica e capacidade econômica e
disponibilizando autonomia às regiões para investir em seus problemas
específicos sem, contudo, afrontar aos princípios constitucionais, e dessa
forma direcionando, teoricamente, o país a um crescimento uniforme e harmônico
(GREGÓRIO, 2008, p.54).
O centro do conceito de
federalismo no Brasil está na caracterização de duas entidades: a União e as coletividades
regionais autônomas (SILVA, 2002, p.100).
Dotado de personalidade jurídica
de Direito Público internacional, o Estado federal é o todo. A União é formada
pela reunião dos Estados Federados e constitui pessoa jurídica de Direito
Público interno. A esta cabe exercer as prerrogativas da soberania do Estado e
é autônoma em relação aos Estados. Os Estados membros são entidades federativas
componentes, dotadas de autonomia e também de personalidade jurídica de Direito
Público interno.
No Estado federal, a soberania é
titularidade do Estado, o todo, e os Estados são titulares tão somente da
autonomia. A autonomia é compreendida como governo próprio dentro do circulo de
competências traçadas pela Constituição Federal.
A autonomia dos entes federados
assenta-se sobre os elementos da existência de órgãos governamentais próprios,
e sobre a posse de competências exclusivas. Sobre a autonomia dos entes federados,
nas palavras de Roque Antonio Carrazza:
Parece certo que, sendo autônomo,
cada Estado deve, sem interferências federais ou estaduais, prover as
necessidades de seu governo e administração. Para isto, a Lei Maior conferiu a
todos o direito de regular suas despesas e, conseguintemente, de instituir e
arrecadar, em caráter privativo e exclusivo, os tributos que as atenderão
(CARRAZZA, 2006, p.148).
Assim, revela-se imprescindível e
de severa importância abordar o conceito de federação sob a ótica tributária,
já que com a descentralização, todos os estados federados buscam na União e
através de sua competência tributária, a arrecadação de verbas para melhor
satisfazer as demandas de suas populações.
O olhar de Hugo de Brito Machado
sobre o federalismo lhe permitiu afirmar ser o Brasil é um exemplo de Estado
Federal, ou Federação, embora a centralização do poder político e especialmente
a centralização das rendas tributárias, antes da Constituição de 1988, fossem
de tal ordem a caracterizar o Brasil como Estado Unitário. Com a Constituição
de 1988 deu-se um passo significativo rumo ao federalismo, embora a dependência
dos Estados e Municípios ainda seja bastante acentuada, posto que a
distribuição das quotas destes nos fundos de participação continua a ser
administrada pelo Governo Federal (MACHADO, 2003, p. 41).
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