A ainda tão (des)esperada
Reforma Tributária
Velocino Pacheco Filho
Auditor Fiscal/SC
A reforma
tributária tem sido um tema recorrente nos últimos vinte anos na política
brasileira. Nova panacéia, ela aparece como solução para tudo: para a
ingovernabilidade, para o desenvolvimento econômico e social, para a inserção
do Brasil no primeiro mundo! Começou ambiciosa como reforma fiscal, preocupando-se
não só com o financiamento do setor público, mas também com os gastos.
Rapidamente, porém, tornou-se meramente tributária e, restringindo cada vez
mais o seu campo de ação, veio a ser a reforma de um único imposto, o ICMS,
como se este fosse a causa única de todos os problemas nacionais. Tacitamente
se acordou que os impostos sobre a renda e sobre a propriedade não precisam ser
reformados. Presume-se que estejam perfeitos da forma como estão.
Nesses vinte
anos que passaram, a nação ouviu muita discussão irrelevante: Quantos impostos
devem existir no Brasil? Alguém fez a conta e descobriu que existem cinqüenta
tributos. A imprensa, por não saber que tributo é o gênero e imposto a espécie,
já simplificou dizendo que existem cinqüenta impostos no Brasil. Na verdade, os
impostos são apenas doze – sem contar o imposto sobre grandes fortunas, que
nunca foi instituído. Alguém já contou quantos tributos são cobrados na
República Federal da Alemanha?
A grande preocupação tem sido com a
“simplificação” dos impostos, mesmo com o sacrifício de relevantes valores
jurídicos, como o da justiça fiscal, o da isonomia, o da pessoalidade da
tributação e o da capacidade contributiva. Não interessa se o tributo é
injusto, desde que seja simples. A simplicidade, erigida em valor absoluto,
quando levada aos extremos, ressuscita a velha fantasia dos fisiocratas: o
imposto único. Os fisiocratas, pelo menos, queriam tributar uma grandeza
econômica real: a terra. A versão brasileira do sonho fisiocrata elege como
fato gerador a mera movimentação de numerários, abstraindo qual o fenômeno
econômico que a ela corresponde.
A
primeira questão a ser enfrentada em uma reforma tributária é determinar a quem
cabe o financiamento do Estado. Atualmente, devido à elevada participação dos
tributos indiretos no perfil da arrecadação, o financiamento do setor público
tem recaído sobre as pessoas de menor renda; sobre os mais pobres. Tributos
indiretos são aqueles cujo ônus repercute, via preço, sobre o consumidor: é o
caso do ICMS, do ISS, do IPI etc. Em contrapartida, os tributos diretos que
incidem sobre o capital e a propriedade têm pequena expressão no perfil da
arrecadação, apesar da elevada concentração de renda. Em que país do mundo a
tributação do consumo é maior que o imposto de renda? Ser pobre no Brasil
significa ser duplamente penalizado: a uma, por suportar o maior peso da
tributação; a duas, pela precariedade dos serviços públicos postos a sua
disposição.
Outra
questão fundamental é o da repartição da competência tributária em um Estado
federal. Que tributos devem ser instituídos pela União, quais pelos Estados e
quais pelos Municípios? A cada nível de governo devem ser assegurados recursos
suficientes para o desempenho de suas atribuições. Essa discussão deve ser precedida,
portanto, por outra: quais os encargos que devem ser atribuídos à União, aos
Estados e aos Municípios? No Brasil, a União ocupa um espaço excessivo – tanto
em relação a receitas quanto a atribuições –, em detrimento de Estados e
Municípios. Em 1988, o constituinte procurou redistribuir as receitas
tributárias em favor de Estados e Municípios. Corolário necessário seria a
redistribuição de atribuições entre os entes federativos. Mas, nada disso foi
feito: a União passou a desinteressar-se dos impostos que deveria partilhar com
Estados e Municípios e a fomentar o aumento das contribuições de sua
competência privativa. Com isso, a União preserva o seu poder, via “política de
pires na mão”.
A
única e verdadeira reforma tributária que este País já viu foi a inaugurada pela
Emenda Constitucional n° 18, de 1965, à Constituição de 1946. Pela primeira vez
tivemos uma classificação dos tributos segundo métodos científicos; um conjunto
claro de princípios e foram definidas as competências tributárias da União, dos
Estados e dos Municípios. Em suma, pela primeira vez na história, o Brasil foi
dotado de um sistema tributário digno desse nome.
Entretanto,
a adoção de um sistema tributário bem construído, alicerçado num conjunto claro
de princípios harmônicos e complementares, não impediu a eclosão da “guerra
fiscal” entre os Estados, a hipertrofia da União, o desrespeito aos princípios
constitucionais e a “ampliação” das hipóteses de incidência tributárias além
das competências deferidas pela Constituição. No afã de atrair investimentos
para os seus territórios, os Estados e Municípios passaram a abrir mão de
receita tributária, criando setores com tratamento privilegiado. Essa foi uma
política que se revelou suicida, na medida em que a capacidade de conceder
privilégios era a mesma em todas as unidades da Federação.
Pior!
Os princípios constitucionais da legalidade da tributação e da separação dos
poderes foram afastados pela Lei Complementar 24, de 1975, em benefício de um
colegiado de secretários de fazenda dos Estados (Confaz) ao qual se reconhece
atribuições legislativas. Tal aberração, no entanto, tem sido aceita pelos
tribunais superiores.
Como
podemos entender que, no âmbito de um Estado de Direito, uma lei que contrarie
dispositivos constitucionais possa ser votada, aprovada, sancionada, publicada
e entrar em vigor, como se constitucional fosse? Mas isso é o que acontece no
Brasil. Há leis que são incompatíveis com o ordenamento constitucional, sem que
contra elas se levantem os poderes da República. Mais que isso, tais leis são
aplicadas pela Administração e acatadas pelos tribunais.
A
questão não é ter boas leis, mas aplicá-las bem. A reforma tributária pode não
ser a panacéia prometida. A interpretação “arrevesada” das leis, as muitas
formas de contornar a rigidez dos seus preceitos, o onipresente “jeitinho”
brasileiro, têm a capacidade de, com o tempo, transformar a mais perfeita das
reformas em algo semelhante ao que temos hoje: um sistema tributário
regressivo, injusto e ineficaz.
A
reforma tributária pressupõe ampla discussão nacional, envolvendo todos os
segmentos da sociedade. Pressupõe ainda uma reflexão sobre o papel do Estado e
suas relações com os cidadãos.