Velocino Pacheco Filho
O constituinte de 1988 relacionou, no
art. 3º da Carta, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(i) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (ii) garantir o desenvolvimento
nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; e (iv) promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
A palavra “objetivo”, utilizada pelo
constituinte, tem o sentido de “meta a ser alcançada”, enquanto “fundamental”
significa que está no fundamento, na base, no alicerce, ou ainda, que constitui
o fundamento, a base ou o alicerce. José Afonso da Silva, em seu Comentário
Contextual à Constituição, assevera que “só na aparência é que as disposições
do art. 3º têm sentido programático. São, em verdade, normas dirigentes ou
teleológicas, porque apontam fins positivos a serem alcançados pela aplicação
de preceitos concretos definidos em outras partes da Constituição”.
Esse mesmo autor ressalta que “não se
trata de objetivos de governo, mas do Estado Brasileiro”, pois cada governo
pode definir seus próprios objetivos e metas a alcançar, mas “elas têm de se
harmonizar com os objetivos fundamentais”, sob pena de incorrerem em
inconstitucionalidade.
A norma constitucional é dita
programática quando define objetivo cuja concretização depende de providências
situadas fora ou além do texto constitucional. De modo geral, um preceito
constitucional é taxado maliciosamente de “programático” quando se quer
negar-lhe eficácia.
Por outro lado, o art. 1º da
Constituição adota como fundamentos (base, alicerces) da República, (i) a
soberania; (ii) a cidadania; (iii) a dignidade da pessoa humana; (iv) os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e (v) o pluralismo político.
No próprio preâmbulo da Carta, os
constituintes invocam a proteção de Deus para “instituir um Estado Democrático
de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. Sobre o Preâmbulo
da Constituição, comenta Inocêncio M. Coelho (in Curso ...):
“Como vetor hermenêutico, são
indiscutíveis, se não mesmo imprescindíveis, os préstimos do preâmbulo, na
medida em que nele se expressam o ethos
e o telos da Sociedade e da sua Lei
Fundamental, dados materiais de partida que funcionam para o intérprete como
verdadeira condição de possibilidade do compreender constitucional”.
Por sua vez, Paulo Bonavides (Curso de
Direito Constitucional, 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 398) leciona: “A
revolução constitucional que deu origem ao segundo Estado de Direito principiou
a partir do momento em que as declarações de direitos, ao invés de ‘declarações
político-filosóficas’, se tornaram ‘atos de legislação vinculantes’ ....”
Os objetivos fundamentais da República,
referidos no art. 3º, bem como os fundamentos do art. 1º e o conteúdo ético do
Preâmbulo da Constituição, não são palavras vazias, meras frases de efeito do
discurso político-demagógico, mas, pelo contrário, constituem critérios de
interpretação ou, como diz Inocêncio Coêlho, verdadeiros “vetores
hermenêuticos”, a direcionar o trabalho do intérprete. É justamente o
preâmbulo, juntamente com os fundamentos e os objetivos fundamentais da
República, que direcionam a interpretação das leis: a interpretação será tanto
mais acertada quanto mais se aproximar da realização desses valores. Se o
Estado tem por finalidade a consecução do bem comum, é no preâmbulo e nos
objetivos fundamentais da República que podemos apreender o seu conteúdo.
Não é diferente a interpretação da
legislação tributária. Vejamos o caso da progressividade das alíquotas do
ITCMD, matéria a que o Supremo Tribunal Federal, recentemente, reconheceu
repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário 562.045 RS.
O ITCMD rege-se em Santa Catarina pela
Lei 13.136, de 25 de novembro de 2004, que, em seu artigo 2º, define o fato
gerador do imposto como a transmissão causa
mortis ou a doação a qualquer título (i) da propriedade ou domínio útil de
bem imóvel, (ii) de direitos reais sobre bens móveis e imóveis e (iii) de bens
móveis, inclusive semoventes, direitos, títulos e créditos. A base de cálculo
do imposto, conforme dispõe o art. 7º, é o valor venal do bem ou direito, ou o
valor do título ou crédito transmitido.
As alíquotas do imposto, nos termos do
art. 9º, variam de 1% a 7%, em função do valor do bem transmitido e passam para
8% no caso do sucessor ser parente colateral, herdeiro testamentário ou
legatário que não tiver relação de parentesco com o de cujus ou quando o donatário ou cessionário for parente colateral
ou não tiver relação de parentesco com o doador ou cedente. Além disso, o art.
10, III, isenta do pagamento do imposto quando a transmissão causa mortis se referir a um único
imóvel que se destine à moradia do próprio beneficiário e que este não possua
qualquer outro imóvel.
Observe-se que se trata de acréscimo
ao patrimônio do beneficiário que não teve qualquer contrapartida e que não
resultou de esforço próprio. Além do mais, a lei distingue entre o sucessor
direto (filhos, netos etc.) e a sucessão em linha colateral ou quando não há
relação de parentesco. No primeiro caso, as alíquotas são bem menores e variam
com o valor do bem transmitido. As manifestações favoráveis à progressividade,
em sede de Supremo Tribunal Federal tem tomado como fundamento o princípio da
capacidade econômica do contribuinte. O objetivo, pois, é “estabelecer uma
graduação que leve à justiça tributária, ou seja, onerando aqueles com maior
capacidade para o pagamento do imposto” (do voto do M. Marco Aurélio no
julgamento do RE 562.045 RS).
Interpretando o dispositivo que adota
a progressividade das alíquotas do ITCMD, da perspectiva do conteúdo axiológico
da Constituição, contido em seus objetivos fundamentais, podemos dizer que ele
contribui para a redução das desigualdades sociais (CF, art. 3º, III) e, por
conseguinte, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidaria.
Os grandes desníveis de rendimentos
entre as classes sociais constitui um dos principais problemas que afligem a
sociedade brasileira e estão na origem da crescente violência e criminalidade e
na banalização do sofrimento humano. O que agrava a miséria é a indiferença com
que se encara o sofrimento alheio. A transmissão de grandes patrimônios, via
sucessão hereditária ou testamentária, representa fator de manutenção das
diferenças e é o que legitima o Estado a instituir a tributação progressiva. O
efeito será tanto mais eficiente quanto mais progressiva for a incidência do
imposto.
A indiferença dos que têm em relação
aos que não têm é o principal obstáculo à construção de uma sociedade que se
quer livre, justa e solidária (art. 3º, I). A liberdade como valor deve ser
temperada pela solidariedade e equilibrada pela justiça. Somente assim poderá
ser assegurada a igualdade e a justiça como valores supremos, como quer o
preâmbulo da Constituição.