Afinal, para que servem os tribunais administrativos?
Velocino Pacheco Filho
Diversamente da França e de outros países europeus, o Brasil adota o princípio da universalidade de jurisdição. “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, dispõe o art. 5º, XXXV, da Constituição da República. Assim, as decisões dos tribunais administrativos tributários ou dos conselhos de contribuintes só fazem coisa julgada contra o Estado, pois, o contribuinte derrotado pode discutir novamente a mesma matéria junto ao Poder Judiciário.
As procuradorias fiscais, recorrentemente, têm levantado a possibilidade de também levar a discussão ao Judiciário, no caso de decisão contra a Fazenda Pública. O problema é que os tribunais administrativos inserem-se na estrutura da própria Fazenda o que leva a esta aparecer em juízo, simultaneamente, como autora e ré, o que inviabiliza o processo.
A esse propósito, devemos admitir que a expressão “tribunal administrativo” é bastante questionável. Apesar dos aspectos formais que imitam o processo nos tribunais, o fato é que não se trata efetivamente de um processo, compreendendo as partes e o juiz. Como o “tribunal” é órgão da Administração Tributária, a Fazenda Pública comparece como parte e como juiz: a tríade processual reduz-se a apenas dois participantes (Fazenda e contribuintes), apesar das tentativas de assegurar maior neutralidade e independência aos órgãos judicantes administrativos, inclusive pela adoção de composição paritária (representantes da Fazenda e representantes dos contribuintes) nos órgãos colegiados.
Então, se não fazem coisa julgada; se suas decisões não têm qualquer relevância perante o judiciário, para que servem os “tribunais administrativos”?
Para entender a função desses órgãos, precisamos parar de vê-los como “tribunais” e reconhecer sua verdadeira função que é a de órgãos de controle da legalidade dos atos da Administração Tributária.
Com efeito, o contencioso administrativo tributário não tem suporte no direito de ação, mas no direito de petição: são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder” (CF, art. 5º, XXXIV). Conforme leciona Alberto Xavier:
“Que o direito de petição é o fundamento do direito de impugnação administrativa e, portanto, de um processo administrativo tendente a dirimir um conflito assim declarado, resulta claramente da referência da Constituição a uma ‘defesa’ em face de uma violação ou abuso de direito. Pressupõe, por conseguinte o direito á prova da violação ou do abuso e o direito à reapreciação do ato praticado”.
A Súmula 346 do Supremo Tribunal Federal diz que “a administração pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos”. No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 473, dizendo que “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”. O “pode”, nesse contexto, se traduz em um “deve”, por injunção do princípio da legalidade, que informa o sistema tributário, e do princípio da moralidade administrativa, introduzido no art. 37 da Constituição de 1988.
O contribuinte tem o direito de “impugnar” o crédito tributário constituído de ofício ou, em outros termos, de desencadear o processo de exame da legalidade da exigência fiscal. Sob esse aspecto, o contencioso tributário administrativo tem por objeto a “desconstituição” do crédito tributário.
Se o recolhimento do tributo é um dever da cidadania, a quem cabe o financiamento do Estado, o direito subjetivo da Fazenda restringe-se aos estritos termos em que a lei autorizou a sua cobrança. O tributo, então, é uma obrigação ex lege, subordinada aos princípios da legalidade, isonomia, capacidade econômica etc. A sua cobrança é feita mediante atividade administrativa plenamente vinculada e sujeita, portanto, aos princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade e eficiência.
Desde que os barões rebeldes, em 1215, na aprazível cidade inglesa de Runnymed, exigiram do rei João que assinasse a Magna Carta, o princípio da legalidade na tributação vem sendo adotado por todas as nações civilizadas e que acreditam na democracia como o único regime que permite a realização plena do ser humano. O tributo somente pode ser cobrado se autorizado por lei e na forma admitida pela lei.
O contribuinte tem o direito de exigir da Administração que reveja os seus atos e que os anule quando “quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”. O contribuinte tem esse direito porque a Constituição lhe assegura o direito de peticionar aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Naturalmente, tratando-se de exigência de tributo pela Administração Tributária, o direito de petição refere-se à defesa dos direitos do contribuinte ameaçados pela própria Administração ou contra ilegalidade ou abuso de poder praticado pela Administração contra o contribuinte. Esse é o bem jurídico que está sendo tutelado.
Não se trata, portanto, de julgar “contra” ou “a favor” da Fazenda Pública, mas de verificar se a lei foi aplicada corretamente pela autoridade administrativa que procedeu ao lançamento. Em momento algum se trata de “defesa” do ato fiscal, mas do controle de sua legalidade.