DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Afinal, para que servem os tribunais administrativos?  
          Velocino Pacheco Filho

          Diversamente da França e de outros países europeus, o Brasil adota o princípio da universalidade de jurisdição. “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, dispõe o art. 5º, XXXV, da Constituição da República. Assim, as decisões dos tribunais administrativos tributários ou dos conselhos de contribuintes só fazem coisa julgada contra o Estado, pois, o contribuinte derrotado pode discutir novamente a mesma matéria junto ao Poder Judiciário.
          As procuradorias fiscais, recorrentemente, têm levantado a possibilidade de também levar a discussão ao Judiciário, no caso de decisão contra a Fazenda Pública. O problema é que os tribunais administrativos inserem-se na estrutura da própria Fazenda o que leva a esta aparecer em juízo, simultaneamente, como autora e ré, o que inviabiliza o processo.
          A esse propósito, devemos admitir que a expressão “tribunal administrativo” é bastante questionável. Apesar dos aspectos formais que imitam o processo nos tribunais, o fato é que não se trata efetivamente de um processo, compreendendo as partes e o juiz. Como o “tribunal” é órgão da Administração Tributária, a Fazenda Pública comparece como parte e como juiz: a tríade processual reduz-se a apenas dois participantes (Fazenda e contribuintes), apesar das tentativas de assegurar maior neutralidade e independência aos órgãos judicantes administrativos, inclusive pela adoção de composição paritária (representantes da Fazenda e representantes dos contribuintes) nos órgãos colegiados.
          Então, se não fazem coisa julgada; se suas decisões não têm qualquer relevância perante o judiciário, para que servem os “tribunais administrativos”?
          Para entender a função desses órgãos, precisamos parar de vê-los como “tribunais” e reconhecer sua verdadeira função que é a de órgãos de controle da legalidade dos atos da Administração Tributária.
          Com efeito, o contencioso administrativo tributário não tem suporte no direito de ação, mas no direito de petição: são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder” (CF, art. 5º, XXXIV). Conforme leciona Alberto Xavier:
          “Que o direito de petição é o fundamento do direito de impugnação administrativa e, portanto, de um processo administrativo tendente a dirimir um conflito assim declarado, resulta claramente da referência da Constituição a uma ‘defesa’ em face de uma violação ou abuso de direito. Pressupõe, por conseguinte o direito á prova da violação ou do abuso e o direito à reapreciação do ato praticado”.
          A Súmula 346 do Supremo Tribunal Federal diz que “a administração pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos”. No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 473, dizendo que “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”. O “pode”, nesse contexto, se traduz em um “deve”, por injunção do princípio da legalidade, que informa o sistema tributário, e do princípio da moralidade administrativa, introduzido no art. 37 da Constituição de 1988.
          O contribuinte tem o direito de “impugnar” o crédito tributário constituído de ofício ou, em outros termos, de desencadear o processo de exame da legalidade da exigência fiscal. Sob esse aspecto, o contencioso tributário administrativo tem por objeto a “desconstituição” do crédito tributário.
          Se o recolhimento do tributo é um dever da cidadania, a quem cabe o financiamento do Estado, o direito subjetivo da Fazenda restringe-se aos estritos termos em que a lei autorizou a sua cobrança. O tributo, então, é uma obrigação ex lege, subordinada aos princípios da legalidade, isonomia, capacidade econômica etc. A sua cobrança é feita mediante atividade administrativa plenamente vinculada e sujeita, portanto, aos princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade e eficiência.
          Desde que os barões rebeldes, em 1215, na aprazível cidade inglesa de Runnymed, exigiram do rei João que assinasse a Magna Carta, o princípio da legalidade na tributação vem sendo adotado por todas as nações civilizadas e que acreditam na democracia como o único regime que permite a realização plena do ser humano. O tributo somente pode ser cobrado se autorizado por lei e na forma admitida pela lei.
          O contribuinte tem o direito de exigir da Administração que reveja os seus atos e que os anule quando “quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”. O contribuinte tem esse direito porque a Constituição lhe assegura o direito de peticionar aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Naturalmente, tratando-se de exigência de tributo pela Administração Tributária, o direito de petição refere-se à defesa dos direitos do contribuinte ameaçados pela própria Administração ou contra ilegalidade ou abuso de poder praticado pela Administração contra o contribuinte. Esse é o bem jurídico que está sendo tutelado.
          Não se trata, portanto, de julgar “contra” ou “a favor” da Fazenda Pública, mas de verificar se a lei foi aplicada corretamente pela autoridade administrativa que procedeu ao lançamento. Em momento algum se trata de “defesa” do ato fiscal, mas do controle de sua legalidade. 

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Qual a distinção entre isenção e diferimento?  
                Velocino Pacheco Filho

Tratando-se de impostos plurifásicos (que incidem em todas as fases de comercialização da mercadoria) não-cumulativos (em cada fase, o imposto devido é compensado com o imposto cobrado nas anteriores) diz-se que há diferimento quando o pagamento é postergado para fase subseqüente do ciclo de comercialização. Não é, portanto, mera dilação do prazo de pagamento, mas o imposto que é devido em uma fase passa a ser exigível somente em outra fase.  O imposto diferido para a fase seguinte pode ser devido pela mesma pessoa ou por terceiro (translação do sujeito passivo). Nessa segunda hipótese (e somente nela), o diferimento corresponde à substituição tributária “para trás”.

Sacha Calmon Navarro Coêlho sustenta que o diferimento não tem natureza jurídica própria, mas “mais não seria que o efeito da isenção tópica ou da alíquota zero quando atuantes sobre uma operação apenas da cadeia de circulação”. Isto por que, nesse caso, o mecanismo de débito e crédito é rompido, não se transmitindo o crédito (imposto cobrado em fases anteriores de comercialização) ao adquirente da mercadoria.

Com efeito, o imposto que deixou de ser pago em uma fase (isenção ou diferimento), será cobrado na subseqüente, sem ter qualquer crédito para compensar, o que resulta exigir em duplicidade o mesmo imposto. Isso se aplica, no caso da isenção, ao ICMS, por expressa disposição constitucional (Emenda Passos Porto), e não ao IPI ao qual a jurisprudência tem emprestado tratamento diverso.

Voltando ao diferimento, o art. 37 da Lei 10.297, de 26 de dezembro de 1966 (de Santa Catarina), dispõe que fica responsável pelo recolhimento do imposto devido “o destinatário da mercadoria ou usuário do serviço, em relação às operações ou prestações antecedentes ou concomitantes, amparadas por diferimento, nos casos previstos em regulamento”. Acrescenta o § 1º, I, a, do mesmo artigo que o destinatário deve recolher o imposto diferido, no caso de não promover nova operação tributável ou a promover sob regime de isenção ou não incidência. Em resumo: se o destinatário promover nova operação tributável, o imposto diferido na fase antecedente é recolhido juntamente com o imposto próprio relativo à operação; caso contrário, o imposto diferido deve ser recolhido separadamente.

No caso da operação realizada sob regime de isenção ou não-incidência, dispõe o art. 155, § 2º, II, b, da Constituição Federal, que deve ser anulado o crédito relativo à operação anterior.

Considerando que no caso de diferimento, há incidência do imposto, diferindo-se apenas o pagamento, o remetente não é obrigado a anular o crédito correspondente à entrada da mercadoria (ou dos insumos, no caso de estabelecimento industrial). Embora esse crédito não seja transmitido ao adquirente, ele pode ser utilizado para compensar o imposto correspondente a outras saídas tributadas (se houver).

A isenção e o diferimento, portanto, diferem no tratamento dado ao crédito: na isenção o crédito correspondente à entrada da mercadoria deve ser anulado; no diferimento, o remetente mantém o crédito que pode compensar o imposto por ele devido, relativo a outras operações. O  tratamento dado ao crédito difere porque no diferimento há incidência do imposto, enquanto na isenção o imposto não incide.


Pelo mesmo motivo, a isenção somente pode ser instituída por lei (reserva absoluta da lei), já o diferimento pode ser instituído por decreto ou regulamento, pois, neste caso há incidência do imposto, diferindo-se apenas o seu pagamento. 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Decadência e prescrição no IPVA  
          Velocino Pacheco Filho

O art. 189 do novo Código Civil conceitua a prescrição em razão da pretensão – prazo em que esta se extingue pela inércia do titular do direito em exercê-la. A decadência, pelo contrário, refere-se aos chamados direitos potestativos ou direitos cujo exercício é incontroverso, não cabendo qualquer discussão (à outra parte cabe apenas sujeitar-se ao seu exercício). À evidência, a constituição de ofício do crédito tributário, pela Fazenda Pública, não é um direito potestativo.
Assim, a decadência no direito tributário, muito singelamente, refere-se á extinção do direito da Fazenda Pública de constituir o crédito tributário, mediante procedimento administrativo de lançamento. Já a prescrição, cujo prazo começa a correr a partir da constituição definitiva do crédito tributário (CTN, art. 174), refere-se ao direito de ajuizar a competente ação de execução fiscal (pretensão impositiva da Fazenda Pública).
O art. 142 do CTN conceitua lançamento como o procedimento administrativo, privativo da autoridade, de constituir o crédito tributário, compreendendo, entre outros elementos, a verificação da ocorrência do fato gerador da correspondente obrigação.
Ora, a incidência do tributo depende da conjugação da norma com o fato, ou seja, da sua previsão em lei com a ocorrência de fato-do-mundo que corresponda ao fato descrito na lei como hipótese de incidência tributária.
A norma que podemos extrair dos textos normativos (ou a partir deles construir) diz-se geral (dirigida a todos) e abstrata (descreve fato ainda não acontecido). O lançamento, por sua vez, corresponde à construção, pela autoridade administrativa competente, de norma individual (dirigida a contribuinte determinado) e concreta (refere-se a fato já acontecido).
Continuando a rever conceitos, temos que a notificação é a comunicação ao sujeito passivo do lançamento, intimando-o a recolher o tributo. O lançamento aperfeiçoa-se com a notificação, de modo que o lançamento que não foi regulamente notificado ao sujeito passivo não produz efeitos (não pode ser cobrado).
Pois bem, o art. 4º da Lei 7.543/88, que instituiu o IPVA em Santa Catarina, determina que “o imposto será devido anualmente e recolhido nos prazos fixados em regulamento”. O cálculo, pelo sujeito passivo, do imposto devido, mediante consulta à tabela aprovada por portaria do Secretário da Fazenda (RIPVA, art. 3º, § 2º), e seu subseqüente recolhimento na rede bancária, integralmente ou parcelado, nos prazos determinados pelo art. 10 do RIPVA, nada mais é que simples cumprimento de dever legal. Isto por que as disposições de lei, do regulamento e das portarias do Secretário da Fazenda (tabelas) referem-se à norma geral e abstrata – dirigem-se a todos e referem-se a evento hipotético (fato ainda não acontecido).
Ora, a Segunda Turma do STJ decidiu no AgRg no Agravo no Resp 185.322 SP, relator o Min. Humberto Martins, que “a constituição do crédito decorrente de imposto sujeito a lançamento de ofício ocorre no momento da notificação para pagamento, e não da data da lavratura do auto de infração que aplica a multa por falta de pagamento”.
Com efeito, enquanto não houver manifestação da Fazenda Pública cobrando o IPVA, corre apenas prazo de decadência. É preciso que a Fazenda lance o imposto – edite norma individual e concreta – para que seja constituído o crédito tributário e passe a correr o prazo de prescrição.
No caso da legislação catarinense não há qualquer ato por parte da Fazenda Pública cobrando o IPVA, cabendo ao sujeito passivo calcular o imposto devido, pela consulta das tabelas respectivas, e efetuar o recolhimento junto à rede bancária, integralmente ou parceladamente, nos prazos regulamentares, à sua escolha. Somente após o decurso do prazo regulamentar, sem que o sujeito passivo tenha efetuado o recolhimento, é que a Fazenda promove a constituição de ofício do crédito tributário e a imposição da multa pertinente.
Neste ponto, devemos indagar se o IPVA em Santa Catarina é efetivamente tributo sujeito a lançamento direto ou, pelo contrário, se sujeita a lançamento por homologação? Ora, se a legislação atribui ao sujeito passivo o dever de calcular e recolher o tributo, “sem prévio exame da autoridade administrativa”, estamos, nos termos do art. 150 do CTN, diante de lançamento por homologação. Assim sendo, o prazo de decadência corre a partir da ocorrência do fato gerador que, no caso do IPVA, o art. 2º, III, da Lei 7.543/88, fixa em 1º de janeiro de cada ano.

Portanto, enquanto não houver manifestação inequívoca da Fazenda Pública, cobrando o IPVA, corre prazo de decadência e não de prescrição, de acordo com a jurisprudência colacionada do Superior Tribunal de Justiça.

terça-feira, 11 de junho de 2013

In claris cessat interpretatio 
          Velocino Pacheco Filho

O art. 209 da Lei catarinense 3.938, de 26 de dezembro de 1966, assegura ao contribuinte o direito de “formular consulta sobre a interpretação de dispositivos da legislação tributária estadual”. Esse direito encontra amparo no art. 5º, XXXIV, a, da Constituição da República que assegura o direito de petição aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.
Infelizmente, vem se tornando comum recusar o recebimento de consulta formulada por contribuinte, sob a alegação de que a lei é clara e, portanto, não cabe interpretação.
Ora o brocardo in claris cessat interpretatio deve ser aplicado com a devida cautela. Se a lei fosse auto-explicativa, de modo que a simples transcrição dos dispositivos legais resolvesse todas as dúvidas, não haveria necessidade de interpretação. Também não haveria necessidade de juízes. Bastaria carregar um computador (o computador-juiz) com a lei e com os fatos que ele produziria a sentença, pois somente haveria um sentido possível para a lei.
Mas, o computador-juiz não existe, nem poderia existir. A norma jurídica é plurívoca e sempre necessita de interpretação, ou seja, da construção de significados pelo intérprete. “O significado que a análise é capaz de atribuir aos elementos individuais é sempre uma função do todo no qual aparecem”, ensina Alf Ross. O computador-juiz, por desconhecer a condição humana, seria nada menos que um frio e desapiedado tirano.
“Não deve causar espanto”, assevera Marco Aurélio Greco, “a afirmação de que a decisão jurídica não é fruto de pura dedução lógica, mas é o produto final de um processo em que a descoberta de algo preexistente e a criação de algo novo se reúnem, tornando o produto final não plenamente automático e previsível”.
Já Carlos Maximiliano ensinava que “obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia , todas as frases jurídicas aparecem aos modernos como suscetíveis de interpretação”.
A clareza da lei depende de quem a lê. Um texto de direito positivo pode ser claro para um, que nele vê apenas um sentido possível, e não ser claro para outro que vislumbra mais de um sentido. O juízo de ser a lei clara já é um exercício de interpretação, como, de resto, esclarece Carlos Maximiliano: “A verificação da clareza, portanto, ao invés de dispensar a exegese, implica-a, pressupõe o uso preliminar da mesma. Para se concluir que não existe atrás de um texto claro uma intenção efetiva desnaturada por expressões impróprias, é necessário realizar prévio labor interpretativo”.
Acrescenta ainda o mesmo autor que “é sobretudo com as regras positivas bem feitas que o intérprete desempenha o seu grande papel de renovador consciente, adaptador das fórmulas vetustas às contingências da hora presente, com apreçar e utilizar todos os valores jurídico-sociais, – verdadeiro sociólogo do Direito”.
Há consultas, com efeito, que são descabidas e, para respondê-las basta a simples leitura do texto normativo. Contudo, tais situações não são freqüentes. Quem responde deve ter o tirocínio para distingui-las. Não pode ser considerada clara a legislação quando a “clareza” necessite ser demonstrada.
Quando formulada de boa-fé, a consulta deve ser respondida. O contribuinte tem direito a obter uma resposta do Fisco, direito este garantido pela própria Constituição, como modalidade que é, a consulta, do direito de petição.

Porém, quando a consulta é recusada, a pretexto da legislação estar clara, por mera preguiça, arrogância ou indiferença para com a dúvida do contribuinte, não só está sendo lesado o direito de petição, mas ainda está sendo descumprido o preceito da moralidade administrativa, albergado pelo art. 37 do Estatuto Supremo.