DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Confaz, legalidade e exoneração tributária no ICMS

Velocino Pacheco Filho

O art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal dispõe que cabe à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais do ICMS serão concedidos e revogados. A matéria acha-se regulada pela Lei Complementar 24/1975, expressamente recepcionada pela Carta de 1988 (ADCT, art. 34, § 8º). Isenções, incentivos e benefícios fiscais dependem para sua concessão e revogação da celebração de convênios no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), órgão formado pelos secretários de fazenda ou finanças de todos os Estados e do Distrito Federal.

Basta a celebração de convênios para que isenções, incentivos e benefícios fiscais sejam concedidos? Os convênios dispensam a edição de lei?

Ora, o art. 150 (trata das limitações ao poder de tributar), § 4º, da Constituição dispõe que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g.

O que se deve entender por “sem prejuízo de ...”? No caso do ICMS, os convênios suprem a necessidade de lei? Ou que os convênios não dispensam a necessidade de lei?

Jurisprudência mansa e pacífica do Supremo Tribunal Federal tem considerado inconstitucionais as isenções e benefícios fiscais concedidos sem prévia autorização em convênio. Mas, basta o convênio? Em relação a qualquer outro tributo, as isenções e benefícios fiscais obedecem ao princípio da legalidade. No ICMS, ao contrário dos demais tributos, os convênios afastam o princípio da legalidade? À evidência, o Confaz não é um corpo legislativo, mas é formado por representantes do Poder Executivo de todas as unidades da Federação. 

A Constituição deve ser interpretada de forma unificada. Nenhum dispositivo constitucional deve ser interpretado isoladamente, como se fossem suficientes em si mesmos. Pelo contrário, o sentido deve ser pesquisado de modo integrado com os demais dispositivos da Constituição. O sentido dos dispositivos constitucionais deve ser apreendido como fazendo parte de um todo, o ordenamento jurídico constitucional. 

A melhor interpretação é aquela que atenda da melhor maneira possível ao conjunto dos dispositivos e dos princípios contidos na Constituição. No caso da concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais do ICMS, deve ser atendido o princípio da legalidade e também à exigência de convênio como condição prévia para sua concessão. Os convênios não suprem a lei, mas constituem uma condição a mais imposta pelo legislador constituinte.

Trata-se de uma dupla condição: instituição por lei e autorização por convênio. Isto porque o ICMS é um tributo nacional, mas de competência dos Estados-membros. Então, para preservar o equilíbrio federativo, as exonerações tributárias em matéria de ICMS devem ser autorizadas pelos demais Estados-membros. Essa, aliás, a justificação adotada pelo STF na ADI 4.276 (DJe 18-9-2014, pp. 27/8):

“O pacto federativo reclama, para a preservação do equilíbrio horizontal na tributação, a prévia deliberação dos Estados-membros para a concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, na forma prevista no art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição e como disciplinado pela Lei Complementar nº 24/75, recepcionada pela atual ordem constitucional”. 

Por isso, os convênios são sempre autorizativos. Nenhum convênio é autoaplicável, dependendo de ato normativo do Estado para poder ser aplicado. Os convênios, em homenagem ao princípio federativo, exigem unanimidade para sua aprovação.

Portanto, resulta inevitável a conclusão de que a quase totalidade das isenções e benefícios fiscais em vigor podem ter declarada sua inconstitucionalidade, ou por falta de convênio ou por falta de lei.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O STJ e a tributação dos pré-moldados

Velocino Pacheco Filho
Qual o tratamento de pré-moldados empregados na construção civil? Em outras palavras, trata-se de circulação de mercadorias, caso em que incide o ICMS, de competência dos Estados, conforme CF, art. 155, II, ou de prestação de serviços, incidindo o ISS, de competência dos Municípios conforme CF, art. 156, III?

Para incidir o ISS, devem estar presentes, cumulativamente, as seguintes condições: (i) deve se tratar de prestação de serviço, (ii) não estar abrangido na competência tributária dos Estados e (iii) estarem os serviços definidos em lei complementar que, no caso, é a Lei Complementar 116/2003. 

O § 2º do art. 1º dessa lei complementar dispõe que “ressalvadas as exceções nela previstas, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao ICMS, ainda que envolva fornecimento de mercadorias”. Em síntese, se a prestação de serviço envolve o fornecimento de mercadorias, as mercadorias integram a base de cálculo do ISS. Caso contrário, se a operação com mercadorias envolve prestação de serviços, os serviços integram a base de cálculo do ICMS (CF, art. 155, § 2º, IX, b).

Conforme art. 7º da mesma Lei, a base de cálculo do ISS é o preço do serviço. Contudo, dispõe o § 2º do mesmo artigo, que não se incluem os valores dos materiais fornecidos pelo prestador de serviços previstos no item 7.02 (execução de construção civil por empreitada ou subempreitada). Pois bem, o material utilizado pelo prestador de serviços deve ser excluído da BC? Depende! O material produzido pelo prestador do serviço, fora do canteiro de obras, sem dúvida, deve ser excluído da base de cálculo do ISS. Isso porque sobre esse material incide o ICMS. Mas o material utilizado pelo prestador do serviço na própria obra, este deve integrar a base de cálculo do ISS.

Com efeito, o item 7.02 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/2003 descreve o serviço tributado pelo ISS: “Execução, por administração, empreitada ou subempreitada, de obras de construção civil, .... (exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador de serviços fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS)”. O mesmo tratamento constava do Decreto-lei 406/1968 e do item 32 da Lista de Serviços anexa, na redação dada pela Lei Complementar 56/1987.

No caso dos pré-moldados, trata-se de materiais produzidos fora do local da execução da obra, para utilização na obra. Pela regra da Lei Complementar 116/2003 (exceção prevista no item 7.02 da Lista de Serviços), deveria incidir sobre os pré-moldados apenas o ICMS.

Contudo, a Primeira Turma do STJ decidiu, no julgamento do REsp 247.595 MG, relator o Min. José Delgado (DJ 15-5-2000, p. 145), que “não há fornecimento (no sentido de comercializar) aos seus contratantes de peças pré-moldadas produzidas pela empresa a fim de aplicá-las especificamente nas edificações contratadas”, hipótese em que incidiria o ISS sobre os pré-moldados e não o ICMS. Acrescenta o acórdão que a empresa “apenas as transporta, após confeccioná-las, a fim de montá-las no local da obra, de acordo com o projeto previamente estabelecido”. Isto porque, esclarece, não há possibilidade física e técnica, no caso de construções de grande porte pelo sistema de pré-moldados, de serem “produzidas as peças de montagem da edificação no próprio local da obra”. No caso discutido as peças transportadas serviriam, apenas “para a obra a que se destinam especificamente, não possuindo valor individualizado para comercialização”.

O acórdão cita decisão da Segunda Turma (REsp 40356/SP, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ de 03/06/1996), no sentido de que "na construção civil pelo sistema de pré-moldados, sob regime de empreitada global, em que a empresa construtora produz as peças a serem montadas em edificação específica, sem comercializá-las individualmente, transportando-as para o local da obra, não incide o ICM cuja base de cálculo para a cobrança é inexistente".

Esta decisão e outras semelhantes sugerem que o STJ entende não ser aplicável aos pré-moldados a regra prevista no item 0.07 da Lista de Serviços, ou seja, a própria Lei Complementar 116/2003.

No entanto, em decisão recente (REsp 1.335.231 RS, da Segunda Turma, relator o Min. Herman Benjamin; DJe 18-12-2012) o STJ reconheceu a incidência do ICMS sobre pré-moldados. Isso representaria uma mudança de entendimento do tribunal? Ou trata-se do reconhecimento que a regra geral é a incidência de ICMS sobre pré-moldados e a incidência de ISS uma situação excepcional?

A controvérsia no referido recurso extraordinário gira em torno da incidência de ICMS sobre o fornecimento de material pré-moldado pela recorrente, para instalação em obras que não foram por ela executadas. Com efeito, trata-se de subempreitada, ou seja, o empreiteiro confia a terceiros a execução da obra (art. 622 do CC). Admite-se a subempreitada de parte da obra e a subempreitada global. Nesse caso, concluiu a Turma que se está diante de operações mercantis, e não de obrigação de fazer obras de construção civil que lhe foram confiadas pelo empreiteiro, hipótese que caracteriza o fato gerador do ICMS.

No julgamento dos embargos de declaração em embargos de declaração, que foram rejeitados, o Tribunal esclareceu que a tributação pelo ICMS alcançou o fornecimento de pré-moldados fabricados em local diverso para instalação em obras executadas por terceiros, o que configura obrigação de dar. Incide ICMS porque a hipótese é de operações mercantis e não de obrigação de fazer obras de construção civil que lhes foram confiadas pelo empreiteiro.

O acórdão acrescenta que mesmo na hipótese de subempreitada, o deslocamento de peças pré-fabricadas do canteiro central para o local da obra, na forma de comercialização individualizada, está sujeito ao ICMS e não ao ISS. O subempreiteiro que fornece materiais produzidos fora do local da prestação dos serviços e os comercializa individualmente é o sujeito passivo do ICMS incidente sobre a circulação dessas mercadorias.

À evidência, parece irrelevante para definir o tratamento tributário o fato dos pré-moldados serem produzidos pela mesma empresa responsável pela obra ou por subempreiteiro. A regra da Lei Complementar 116/2003, bem como do antigo Decreto-lei 406/1968, é que a execução de obra de construção civil constitui serviço tributado pelo ISS, exceto as mercadorias produzidas fora do local da construção, o que compreende os pré-moldados, que são tributadas pelo ICMS. Então, somente em circunstâncias especialíssimas poder-se-ia admitir a tributação dos pré-moldados pelo ISS. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A reforma tributária e os objetivos fundamentais da República

Velocino Pacheco Filho

O único consenso sobre o recorrente tema da reforma tributária é, aparentemente, o da sua necessidade. Porém, quando se passa a discutir qual deveria ser o formato do sistema tributário brasileiro, o consenso acaba: cada um dos interessados – União, Estados, Municípios, empresariado – tem sua própria concepção sobre como o sistema tributário deveria ser. Até de imposto único já se cogitou. Naturalmente, não se pensa em pedir a opinião dos consumidores, dos trabalhadores ou do povo em geral.

Raciocinemos: a Constituição é o texto normativo básico que estrutura todo o ordenamento jurídico. Segundo José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição), trata-se da ideia fundante ou da concepção básica que encontra sua expressão na Constituição. Lembra esse autor que, conforme o Preâmbulo da Constituição de 1988, o povo brasileiro, por seus representantes, procurou instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional com a solução pacífica das controvérsias.

Tomando como ponto de partida os valores e princípios adotados pela Constituição deve-se pensar o sistema tributário compatível com tais valores e princípios ou que contribua para sua realização.

Exemplificando, o art. 1º da Constituição diz que o Brasil é uma federação “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Então, a distribuição das competências tributárias deve atender às necessidades de financiamento de cada uma das pessoas políticas que formam a Federação. Mas, para isso, é necessário definir de antemão quais são essas necessidades. Em outras palavras, quais as atribuições que devem ser cometidas à União, aos Estados e aos Municípios. Definido o que deve ficar a cargo de cada um, pode-se dimensionar o tamanho da despesa de cada um e, por conseguinte, da receita necessária a cada um.

O art. 1º, em seu inciso II, trata da cidadania como um dos fundamentos da República. Cidadania, entre outras coisas, significa a participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, pelo exercício do direito de voto ou por algum dos mecanismos de democracia direta admitidos pelo Estatuto Supremo. Para tanto, a administração pública deve ser transparente, inclusive na disponibilização de dados sobre a arrecadação e, principalmente, sobre a renúncia fiscal e qual a sua justificativa. A pergunta relevante é: quem está sendo beneficiado? Outra pergunta relevante é: quem está financiando o setor público (quem arca com o ônus tributário)?

Outro dos fundamentos da República é a dignidade da pessoa humana, prestigiada no inciso III do mesmo artigo. Então, a incidência tributária deve ter como limite o consumo mínimo indispensável para garantir essa dignidade. São condições mínimas para permitir a existência digna, a alimentação, a saúde, a educação e a moradia. Assim, o sistema tributário deve prever isenção para as mercadorias que compõe a cesta básica de consumo. O mesmo em relação aos medicamentos, pois, na dicção do art. 196, a saúde é direito de todos e dever do Estado. O imposto sobre a renda, por sua vez, deve adotar deduções realistas sobre itens como saúde, dependentes, educação e qualificação profissional. Também se pode pensar em um programa de renda mínima. Quanto aos impostos sobre a propriedade, torna-se imperativo declarar a intributabilidade da casa de moradia da família, cuja proteção está entre os objetivos da assistência social, conforme dispõe o art. 203. 

O art. 150, II, veda o tratamento tributário desigual a contribuintes que se encontram em situações equivalentes. As diferenças de tratamento somente podem ser admitidas em razão das desigualdades entre as pessoas, para equilibrá-las. Os impostos devem ser cobrados de todos, mas na proporção da capacidade contributiva de cada um. Não devem ser admitidas exceções que venham em benefício de alguns em detrimento da grande maioria o que se costuma referir como “privilégio odioso”. Desse modo, toda e qualquer exoneração tributária deve ser justificada (i) pelo princípio da igualdade (levando em conta as desigualdades entre as pessoas); ou (ii) pelo interesse público e o bem comum (extrafiscalidade).

A construção de uma sociedade livre, justa e solidária a que se refere o art. 3º, I, como um dos objetivos fundamentais da República, requer um sistema tributário progressivo que tribute de forma mais pesada as altas rendas e de forma mais branda as pequenas rendas. O rendimento de capital deve ser mais tributado que o rendimento do trabalho. Para realizar o objetivo da constituição, deve ser diminuída a participação dos impostos indiretos – que oneram mais pesadamente as pequenas rendas – no perfil da arrecadação. Por fim, a tributação sobre as heranças deve ser progressiva e com alíquotas mais altas.

Outro dos objetivos fundamentais, previsto no art. 3º, II, é a garantia do desenvolvimento nacional. O desenvolvimento deve ser entendido como desenvolvimento econômico e social. Do ponto do desenvolvimento econômico,  o sistema tributário deve cuidar para não onerar a empresa, e sim os detentores do capital. A graduação dos tributos deve obedecer a critérios extrafiscais de estímulo ao investimento, ao empreendedorismo e à adoção e desenvolvimento de novas tecnologias. Essas poderiam ser as diretrizes para condicionar o tratamento tributário de microempresas e empresas de pequeno porte.

Do ponto de vista do desenvolvimento social, o sistema tributário deve ser concebido de modo a facilitar e estimular o desenvolvimento do ser humano, tanto como indivíduos como em suas relações com outros seres humanos. Devem ser facilitadas e estimuladas atividades de caráter cultural, quanto ao primeiro aspecto, e de solidariedade social, quanto ao segundo.

A erradicação da pobreza e da marginalidade, objetivo previsto no art. 3º, III, requer uma tributação voltada para a garantia de níveis mínimos de consumo e o resgate do ser humano em seus valores como ser humano, inclusive de solidariedade.

A redução das desigualdades sociais e regionais, prevista no mesmo dispositivo, requer uma tributação que estabeleça mecanismos de compensação entre classes e grupos sociais e entre regiões. Para tanto, devem ser adotados incentivos fiscais e tributos progressivos. Para atingir esse objetivo, tem larga aplicação a graduação de tributos segundo os critérios da pessoalidade e da capacidade econômica, referidos no § 1º do art. 145.

O art. 170, IV, elege a livre concorrência como um dos princípios que informam a ordem econômica, ou seja, uma economia de mercado regida pelo sistema de preços. Para ser compatível com o sistema de livre concorrência, a tributação sobre o consumo deve ser neutra, ou seja, um imposto não-cumulativo cobrado uniformemente sobre bens e serviços. O ICMS não mais deve ser usado como instrumento de política econômica. Devem ser buscadas alternativas para a alavancagem das economias dos Estados e dos Municípios.

Em síntese, o sistema tributário deve ser construído a partir da Constituição e dos valores que ela abriga. Os tributos devem ser concebidos de modo a realizar esses valores. Os valores, por vezes conflitantes, devem ser combinados de modo a resultar em um sistema harmônico e coerente. Esse é o nosso desafio, como povo e como nação.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A lei complementar de normas gerais

Velocino Pacheco Filho

O art. 24, I, da Constituição do Brasil, diz que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre direito tributário. Conforme § 1º do mesmo artigo, no âmbito da legislação concorrente, compete à União legislar sobre normas gerais. Ou seja, trata-se de matéria reservada ao legislador federal. O tributo somente pode ser instituído por que detenha a competência, mas as normas gerais quem legisla é a União. Exemplo: o ICMS é imposto de competência dos Estados. Somente os Estados podem instituir o ICMS e legislar sobre eles, desde que não contrarie a legislação federal sobre normas gerais.

No entanto, acrescenta o § 2º, a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. Entenda-se, no que for omissa a lei de normas gerais editada pela União.

Mas o que acontece se não houver lei federal dispondo sobre normas gerais? Nesse caso, dispõe o § 3º, os Estados exercerão a competência legislativa plena. É o que acontece, por exemplo, com o IPVA que até hoje não tem lei federal dispondo sobre normas gerais o que não impede os Estados de instituírem e cobrarem o tributo. Mas, conforme a regra do § 4º, a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Acabou? Não, conforme art. 146, somente lei complementar pode dispor sobre normas gerais em matéria de legislação tributária. Além disso, o mesmo artigo relaciona o conteúdo de tais normas gerais:

(i) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, base de cálculo e contribuintes;

(ii) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

(iii) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas;

(iv) definição do tratamento diferenciado e favorecido para a s microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I, e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Essa relação compreende todas as normas gerais que estão na competência da União ou seria apenas exemplificativa? A questão está em aberto. Na prática, tem-se aceito sem grandes contestações que toda a matéria tratada no CTN e nas leis complementares representam, efetivamente, normas gerais.

Mas, não só de normas gerais tratam as leis complementares federais. Assim, o próprio art. 146 também exige lei complementar para (i) dirimir conflitos de competência e (ii) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.

O art. 146-A, por sua vez, permite a adoção de critérios especiais de tributação para prevenir desequilíbrios da concorrência. Seria outra hipótese em que a Constituição admite a intervenção do Estado no mercado, mas apenas para preservar a livre concorrência, elevada a princípio informador da ordem econômica pelo art. 170, IV, da Lei Maior.

Já o art. 155, § 2º, XII, tratando especificamente do ICMS, reserva ao legislador complementar longa lista de matérias, dentre as quais, a definição de contribuintes, a  substituição tributária, o regime de compensação dos créditos (se físicos ou financeiros), o tratamento das exportações, os casos de manutenção de crédito, a celebração de convênios tratando de exoneração de tributos etc.

O Pleno do Supremo Tribunal Federal (RE 559943 RS), com efeito, reconheceu que os Estados não podem dispor de modo contrário à lei complementar, pois o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária está reservado ao legislador complementar federal. Disposições da legislação estadual em desacordo com a lei complementar federal de normas gerais padeceriam de vício de inconstitucionalidade.

Conforme prestigiado escólio de Aliomar Baleeiro, o CTN e demais leis complementares federais sobre normas gerais são leis nacionais e não simplesmente federais. Aplicam-se, pois à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

Pois bem! Qual o efeito das leis complementares estaduais tratando de normas gerais? Leciona Misabel Derzi que a “norma geral” do Estado, meramente supletiva, pode regular apenas matéria omissa na norma geral federal e só essa. Tratam apenas supletivamente a matéria de normas gerais porque a competência legislativa é da União, não dos Estados.

Considerando o sistema federativo, como concebido por Kelsen, as normas gerais  sobrepõe-se às ordens jurídicas parciais, da própria União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A lei complementar estadual de normas gerais teria caráter puramente supletivo (apenas no que a legislação federal for omissa), não podendo se opor à lei complementar federal. 

Enfim, a lei complementar estadual de normas gerais nem aos seus próprios Municípios obriga.

A propósito, para que serve uma lei estadual de normas gerais? Receio que não sirva para muita coisa. Como não por dispor contrariamente à legislação federal de normas gerais, ela poderia apenas reproduzir servilmente os seus dispositivos. Por outro lado, considerando a repartição constitucional de competências legislativas, em sede de legislação concorrente, a legislação federal sobre normas gerais é autoaplicável: não depende de sua confirmação pela legislação estadual. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Simples Nacional e a arte de colocar cavilhas quadradas em buracos redondos

Velocino Pacheco Filho

A interpretação do direito deve sempre tomar como referência o conteúdo axiológico da Constituição, já que esta representa o documento normativo fundamental do ordenamento jurídico. Quando a legislação infraconstitucional frustra a realização dos valores contidos na Constituição, estamos diante do que Karl Engisch denomina “contradição teleológica”. A interpretação do direito tributário não é diferente.

Pois bem, o art. 170, IX, da Constituição coloca entre os princípios informadores da ordem econômica, o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte” e, no art. 179, que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.

O tratamento tributário favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte encontra ressonância no princípio da igualdade, como formulado no art. 150, II, que veda “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”, e no objetivo fundamental de reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III). O tratamento favorecido, portanto, encontra-se plenamente justificado, conforme o  ordenamento.

Contudo, na tentativa de acelerar e uniformizar o processo, a Emenda Constitucional 42/2003, acrescentou ao inciso III do art. 146 da Lei Maior, alínea “d”, incluindo entre as normas gerais em matéria de legislação tributária, reservada ao legislador complementar, a “definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as  empresas de pequeno porte”. A mesma emenda acrescentou a esse artigo parágrafo único, facultando à lei complementar a instituição de “regime único de arrecadação dos impostos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Nesse sentido, foi editada a Lei Complementar 123/2006, dispondo sobre o  “tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. A mesma lei complementar instituiu o regime único de apuração e recolhimento de impostos e contribuições conhecido como Simples Nacional. Entre outros, passou a integrar o SN, impostos tão dispares como o Imposto de Renda pessoa jurídica, o ICMS e o ISS. O produto da arrecadação seria repartido entre os titulares originais desses impostos: União, Estados, DF e Municípios.

Ora, cada um desses impostos tem fatos geradores e bases de cálculo distintas e submetem-se a diferentes princípios. O imposto sobre a renda tem como fato gerador a “aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou de proventos de qualquer natureza”. A base de cálculo é “o montante real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis”. Além disso, é informado “pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade”. 

O ICMS, por sua vez, tem por fato gerador operações relativas à circulação de mercadorias ou a prestação de serviços de transporte e comunicação. A base de cálculo, evidentemente, é o valor da operação ou prestação (preço cobrado do adquirente da mercadoria ou do tomador do serviço). Rege-se pelo princípio da não-cumulatividade que permite compensar o imposto devido em cada etapa de circulação com o que foi cobrado nas anteriores.

Por fim, o ISS, tem por fato gerador a prestação de serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência dos Estados e definidos em lei complementar. A base de cálculo é o preço do serviço.

Como conciliar fatos geradores tão díspares como auferir renda, realizar operação de circulação de mercadorias e prestar serviço? Como calcular conjuntamente o imposto devido correspondente a bases de cálculo tão diversas como renda e preço? Como conciliar princípios como não-cumulatividade e progressividade em uma mesma exação? 

Resposta: não pode! É como tentar colocar cavilhas quadradas em buracos redondos. O resultado é uma legislação confusa, incoerente e de difícil aplicação e administração que, com uma sorte de humor sinistro, resolveram chamar de “simples”.

Poderíamos entender que se trata de um novo imposto? Se este é o caso, de quem é a competência para instituí-lo? Conforme art. 154 da Constituição, o exercício da chamada competência residual da União está restrita a que o novo imposto seja não-cumulativo e não tenha fato gerador ou base de cálculo próprios dos nela discriminados. Além disso, vinte por cento (e não quatro) deveria ser distribuído entre os Estados e o Distrito Federal, conforme art. 157, II.

De qualquer modo, o parágrafo único do art. 146 não autoriza a criação de um novo imposto (talvez devesse tê-lo feito), mas a instituição de “regime único de arrecadação”, ou seja, que cada um dos tributos envolvidos mantenha sua integridade no que se refere a fato gerador, base de cálculo e princípios informadores.

Chega? Tem mais!

O que fazer se a legislação do ICMS conceda uma isenção em situação não prevista pela legislação do SN. O que fazer? A operação deve ser excluída do cálculo do Simples, respeitando a isenção? Para perplexidade de todos, os diligentes servidores do Fisco, em uma interpretação simplória, entendem que, não havendo previsão na legislação do Simples, o contribuinte não teria direito à isenção. Isto quer dizer que a legislação do Simples prevalece sobre a legislação do ICMS, ou melhor dizendo, ela revoga a legislação do ICMS. A qualquer objeção a essa desigualdade no tratamento tributário entre a empresa dita normal e a enquadrada no Simples Nacional, os diligentes servidores respondem que “a opção pelo Simples é facultativa”.

Mas como! Conforme dispõe a Constituição, União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem dispensar tratamento tributário “favorecido”, ou seja, mais benéfico que o dado à empresa normal. Como justificar que a empresa normal seja beneficiada com isenção e à empresa enquadrada no Simples seja negado o mesmo benefício? É a subversão dos valores constitucionais pela falta de compreensão do ordenamento pelos diligentes servidores fazendários, configurando o que Karls Engisch identifica como contradição teleológica, caracterizada pela frustração dos valores prestigiados pelo constituinte originário.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

TRIBUTO DECLARADO E NÃO RECOLHIDO - MULTA DO ART. 51, I, DA LEI N° 10.297/96 - NATUREZA CONFISCATÓRIA


FABIANO RAMALHO

 
Vamos imaginar a hipótese em que o contribuinte tenha apurado corretamente o tributo devido e declarado em DIME, na forma prescrita em Lei, deixando, apenas, de recolhe-lo no tempo devido, motivado, por exemplo, por dificuldades de caixa. Ou seja, não estamos falando de nenhuma situação de fraude ou ilícito tributário, pois esse contribuinte observou corretamente a legislação de regência para a constituição do crédito tributário.

Para esse caso, a legislação tributária do Estado de Santa Catarina prevê a aplicação da multa de 0,3% ao dia, até o limite de 25%, prevista no art. 53, da Lei 10.297/96, in verbis:
 
“Art. 53. Submeter tardiamente operação ou prestação tributável à incidência do imposto ou recolher o imposto apurado, pelo próprio contribuinte, ou o devido por estimativa fiscal, após o prazo previsto na legislação, antes de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização:
MULTA de 0,3% (três décimos por cento) ao dia, até o limite de 25% (vinte e cinco por cento).”

Assim, a ausência de pagamento do tributo, previamente declarado em DIME, atrai a incidência da referida multa, e possibilita ao Fisco, desde logo, inscrever o débito em dívida ativa, uma vez que constituído o crédito tributário pelo lançamento por homologação. Nenhum outro ato é necessário para que o Fisco constitua o crédito tributário, entendimento esse já pacificado na jurisprudência do STJ, como ilustra o seguinte aresto:

“RECURSO REPETITIVO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. SÓCIO. DCTF. GIA. CRÉDITO TRIBUTÁRIO. No recurso submetido ao regime do art. 543-C do CPC e art. 6º da Res. n. 8/2008-STJ, a Seção assentou que a simples falta de pagamento de tributo não acarreta, por si só, a responsabilidade subsidiária do sócio (art. 135 do CTN), se inexistir prova de ele ter agido com excesso de poderes em infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da sociedade empresarial. Outrossim, a apresentação da declaração de débitos e créditos tributários fiscais (DCTF), de guia de informação e apuração de ICMS (GIA), ou de outra declaração dessa natureza com previsão legal constitui o crédito tributário, não havendo necessidade de outra providência por parte do Fisco. Precedentes citados: EREsp 374.139-RS, DJ 28/2/2005; REsp 1.030.176-SP, DJe 17/11/2008; REsp 801.659-MG, DJ 20/4/2007; REsp 962.379-RS, DJe 28/10/2008; AgRg nos EREsp 332.322-SC, DJ 21/11/2005; AgRg nos EREsp 638.069-SC, DJ 13/6/2005;  REsp 510.802-SP, DJ 14/6/2004, e REsp 437.363-SP, DJ 19/4/2004. REsp 1.101.728-SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 11/3/2009 (veiculado no Informativo do STJ nº 0386, de 09-13/03/2009). (grifamos)
 
 
              Dada a natureza do tributo lançado por homologação, ainda que o contribuinte pague espontaneamente o débito em atraso, não há que se falar em redução da multa, que deverá ser exigida na forma do citado art. 53.

A interpretação a respeito da aplicação dessa penalidade parece simples e clara, não havendo margem para equívocos. No entanto, não é assim que a Administração Tributária Estadual vem agindo no caso concreto, pois vem se utilizado do Termo de Constituição do Crédito Tributário para lançar o crédito tributário em tais casos. Esse procedimento fiscal extraordinário acaba se sobrepondo ao lançamento por homologação, como uma forma bizarra de lançamento de ofício, fazendo incidir a partir daí a multa de 50% sobre o imposto devido, prevista pelo art. 51, I, da Lei n° 10.297/96, cuja redação é a seguinte:

“Art. 51. Deixar de recolher, total ou parcialmente, o imposto:
I – apurado pelo próprio sujeito passivo;
II – devido por responsabilidade ou por substituição tributária;
III – devido por estimativa fiscal:
MULTA de 50% (cinqüenta por cento) do valor do imposto.”

 Ora, já que é desnecessária a expedição do referido Termo, já que, nesse caso específico, o lançamento é feito por homologação, a aplicação da multa de 50% sobre o valor do tributo devido adquire a feição de mero meio coercitivo para obrigar o contribuinte ao recolhimento do crédito tributário em questão, sob a ameaça velada de majoração da multa (de 25% para 50%). Isso porque, expedida a notificação de Constituição do Crédito Tributário, é oferecida ao contribuinte uma redução de 50% no valor da multa, caso o pagamento seja efetuado dentro do prazo previsto para a defesa administrativa, como consta expressamente da referida notificação.

Tal prática fere o Código de Direitos e Deveres do Contribuinte de Santa Catarina, que prevê, em seu art. 11, que:

Art. 11. É vedada, para fins de cobrança extrajudicial de tributos, a adoção de meios coercitivos contra o contribuinte, tais como a interdição de estabelecimento, a proibição de transacionar com órgãos e entidades públicas e instituições oficiais de crédito, a imposição de sanções administrativas ou a instituição de barreiras fiscais.


Por outro lado, também fere a garantia trazida pelo art. 150, IV, da Constituição Federal, que proíbe o confisco em matéria tributária:

"Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;”

 A prática adotada pela Administração Tributária Estadual, ainda que vise arrecadar o tributo devido aos cofres públicos, não outra coisa caracteriza senão o puro confisco de bens do contribuinte, posto que atingirá de forma desproporcional aquele contribuinte que foi estritamente diligente no cumprimento de suas obrigações tributárias acessórias, e que deixou de recolher o tributo no seu vencimento devido a dificuldades econômicas.

Na prática, esse contribuinte será onerado com uma multa duas vezes maior do que a prevista para a situação hipotética, já que dificilmente poderá pagar o débito no prazo estabelecido pela Notificação Fiscal, não se beneficiando da redução da multa ofertada.

Não se pode admitir que o direito do Estado de fiscalizar o contribuinte perturbe o cidadão de bem, de tal modo a lhe tolher o livre exercício da atividade econômica. Esse direito à fiscalização e à arrecadação deve ser limitado pelos direitos individuais dos contribuintes, que têm sua matriz na Constituição Federal e é replicado na esfera Estadual pela LC 313/2005.

Além do mais, esse procedimento fiscal iguala o “bom” contribuinte, qual seja aquele que apurou corretamente e declarou todos os fatos geradores e as respectivas bases de cálculo em DIME, com o “mal” contribuinte, que, de alguma forma, sonegou informações com o intuito de desonerar-se ilicitamente do pagamento do tributo.

Nesse sentido, além dos dispositivos legal e constitucional acima elencados, as práticas adotadas pela Fazenda Estadual ferem também os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, já consagrados na Carta Magna e incorporados nos artigos 34 e 39 da Lei Complementar n° 313/2005 (Código de Direitos e Deveres do Contribuinte do Estado de Santa Catarina), que possui hierarquia superior à Lei n° 10.297/96, in verbis:

“Art. 34. A Administração Tributária, no desempenho de suas atribuições, pautará sua atuação de forma a gerar o menor ônus possível aos contribuintes, tanto no procedimento e no processo administrativo, como no processo judicial.
[...]
Art. 39. A Administração Tributária obedecerá, dentre outros, aos princípios da justiça, legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.”

 

Como se observa, sob diversos ângulos de análise, não há como justificar a adoção do procedimento fiscal de Constituição do Crédito Tributário para a hipótese em tela, sendo descabido o lançamento por ofício por ela operado. A multa aplicada por intermédio desse procedimento fiscal, majorada de 25% (art. 53) para 50% (art. 51, I), é arbitrária e inconstitucional, pois, na medida em que se reveste de mero instrumento de coerção para exigir o pagamento do tributo devido, caracteriza o confisco vedado pela Constituição Federal.

Sobre a utilização da multa como instrumento de coerção, o TRF da 4ª Região tem importante precedente, onde, julgando caso sobre Contribuição Previdenciária, assim decidiu:

“TRIBUTÁRIO. MULTA MORATÓRIA X MULTA DE OFÍCIO.. ART. 35 DA LEI 8.212/91. GRADUAÇÃO DA MULTA DE OFÍCIO CONFORME O TEMPO E A PRÁTICA DE ATOS ADMINISTRATIVOS. SOBREPOSIÇÃO AOS JUROS. RAZOABILIDADE. VEDAÇÃO DO CONFISCO. INCONSTITUCIONALIDADE SUSCITADA. Pode haver distinção entre o percentual de multa simplesmente moratória, quando o contribuinte não paga tempestivamente por falta de recursos mas o faz antes de qualquer atividade do Fisco contra ele, e de multa de ofício, quando o contribuinte oculta ou simplesmente não leva ao conhecimento do Fisco a ocorrência de fatos geradores ou o montante total das suas bases de cálculo, hipótese em que apenas a ação fiscal desenvolvida pela Fiscalização é que acaba por identificar a existência do débito e constitui o respectivo crédito por lançamento. A multa prevista no art. 35 para o caso de NFLD é de 24%. Daí para mais, há variações conforme a postura do contribuinte ou a prática de atos administrativos ao longo do tempo (tamanho da mora, pagamento integral ou parcelado, inscrição em dívida, ajuizamento da execução). Ocorre que, havendo débito, são os juros moratórios que restam previstos no art. 161 do CTN como compensação pela mora do contribuinte. Não se pode admitir que a multa acabe por assumir, também ela, uma função de compensação progressiva pela mora, em sobreposição aos juros que não se justifica. A variação da multa em função da mora ofende a razoabilidade no que diz com os critérios da adequação e da congruência. A multa deve ter relação com o ilícito cometido, qual seja, no caso, a falta de apuração e declaração, pelo próprio contribuinte, dos tributos devidos. Também o princípio da proibição do excesso, decorrente do próprio princípio do Estado de Direito, impede que se tenha multas demasiadamente altas, cumprindo, para as multas, o papel da vedação do confisco direcionada aos tributos. O STF tem admitido a censura constitucional de multas excessivas/confiscatórias, inclusive mediante invocação do art. 150, inciso IV, da CF. A multa do lançamento de ofício, no art. 35 da Lei 8.212/91, varia de 24% a 100% sem que nenhum novo ilícito tenha sido praticado, apenas pelo decurso de tempo em que o credor realiza atos tendentes à satisfação do seu crédito. Suscitado Incidente de Argüição de Inconstitucionalidade do art. 35, inciso II, alíneas “b” a “d”, e III, alíneas “a” a “d”, com a redação das Leis 90.528/97 e 9.876/99, por violação ao art. 150, IV, da CF e aos princípios constitucionais implícitos da razoabilidade e da proibição do excesso.”

Em conclusão, na ausência de qualquer ato do contribuinte que possa ser considerado ilegal ou fraudulento, posto que, no mais, esse contribuinte seguiu estritamente os critérios legais, apenas deixando de recolher o tributo no seu vencimento, não é lícito à Fazenda Estadual lançar de ofício o crédito tributário, valendo-se do procedimento fiscal de Constituição do Crédito Tributário, notificando esse mesmo contribuinte para o pagamento do tributo, sob a ameaça de aplicação da multa prevista no art. 51, I, da Lei n° 10.297/96.

Tal prática é censurável, na medida em que carece de razoabilidade e proporcionalidade, caracteriza o efeito do confisco, tão combatido em nosso ordenamento jurídico, bem como distancia-se do elevado senso de Justiça e equidade com os quais a Administração Tributária Estadual costuma pautar suas ações.

Portanto, sob a ótima de uma ética tributária que se harmonize com os princípios que regem a matéria, entendemos que o procedimento fiscal de expedição de Termo de Constituição do Crédito Tributário para os casos de tributo declarado e não recolhido não se reveste do melhor Direito, devendo ser afaastado, especialmente no que se refere à incidência da multa de 50%, prevista no art. 51, I, da Lei n° 10.297/96.

A Administração Tributária Estadual, enquanto braço estatal, deve, ao lado de sua função precípua de arredar os tributos devidos, deve ser um amplo garantidor da segurança jurídica e dos direitos dos contribuintes, nos termos da Lei, repelindo práticas abusivas de seus agentes e onerando o contribuinte na justa medida do seu crédito tributário.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Contradições teleológicas no direito tributário

Velocino Pacheco Filho

A arrecadação de tributos não é um fim em si mesmo, mas o meio que o Estado dispõe para atender às necessidades coletivas, financiando programas e políticas públicas. Não interessa arrecadar a qualquer custo, mas a arrecadação deve guardar coerência com os fins do Estado e com o ordenamento jurídico.

Para Karl Engisch, o ordenamento jurídico abriga contradições, entre as quais ele identifica o que chama de “contradições teleológicas”, quando o legislador adota determinados valores ou estabelece determinadas metas, mas cujo cumprimento resta inviabilizado pela legislação subsequente. Isso ocorre, por exemplo, no caso de legislação infraconstitucional que se opõe à realização de princípios, valores e metas expressos na Constituição.

É o caso do art. 170, IV, da Constituição, que adota a livre concorrência como um dos princípios que informam a ordem econômica. Livre concorrência implica a não intervenção do Estado no mercado ou nas condições de concorrência. Pelo contrário, o Estado deve zelar para que os agentes econômicos concorram em igualdade de condições. Assim, o art. 173 reserva a exploração da atividade econômica ao setor privado, admitindo a exploração direta pelo Estado, apenas quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. O § 2º desse artigo dispõe que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos ao setor privado. O § 4º, a seu turno, determina que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Ao Estado, nos termos do art. 174, fica reservado o papel de agente normativo e regulador, cabendo-lhe as funções de fiscalização incentivo e planejamento, sendo esta última apenas indicativa para o setor privado.

Na seara tributária, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, dispõe que o legislador complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.

Devemos distinguir a livre concorrência protegida pela Constituição daquela preconizada pelo liberalismo econômico, sem qualquer controle ou limitação. O mesmo art. 170, adota, com a mesma hierarquia da livre concorrência, a defesa do consumidor e do meio ambiente, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego, entre outras.

A forma de tributação (sobre o consumo) que melhor atende à livre concorrência, como princípio constitucional, é a plurifásica não cumulativa (o tributo incide em todas as fases do ciclo de comercialização da mercadoria, permitindo que o contribuinte recupere o imposto recolhido nas fases precedentes). Nessa forma de tributação, os agentes econômicos seriam indiferentes ao tributo, reagindo apenas ao mercado.

A tributação plurifásica não-cumulativa foi adotada, em nosso País, por influência do IVA europeu, no IPI e no ICMS, embora, o IPI seja concebido como tributo extrafiscal. Esse é precisamente o ponto. Em que medida, a Constituição brasileira de 1988 admite o uso extra-fiscal dos impostos não-cumulativos? A extra-fiscalidade implica a indução de determinado comportamento mediante o agravamento ou o abrandamento do tributo. Logo, o sucesso de uma política extra-fiscal representa uma interferência no sistema de preços e, por conseguinte, na livre concorrência. Os agentes econômicos não mais serão indiferentes à tributação. Assim, a extra-fiscalidade no caso de tributos sobre consumo deve ser justificada com base nos demais princípios constitucionais, como a proteção do consumidor, do meio ambiente, do pleno emprego etc.

Questão mais inquietante é o uso pelos Estados de isenções, incentivos e benefícios fiscais, relativamente ao ICMS, para atrair investimentos. A Lei Complementar 24/1975, com a sua mal compreendida exigência de unanimidade nas votações, seria um instrumento para coibir a chamada “guerra fiscal” entre os Estados, se fosse dotada de sanções realisticamente aplicáveis contra os Estados infratores. O resultado é a ineficácia do art. 170, IV, da Constituição da República. Livre concorrência, entre nós, tornou-se simples figura de retórica.

Finalmente, temos a curiosa figura da substituição tributária “para frente”, introduzida pelo Poder Constituinte Derivado (§ 7º do art. 150, acrescido pela EC 3/1993). Ao se substituir ao mercado, determinando a margem de valor adicionado e arbitrando preços de varejo, termina por frustrar os fins visados pelo Poder Constituinte Originário, de estabelecer uma economia de mercado, com base no princípio da livre concorrência.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O DEVER DE NÃO NOTIFICAR: UMA QUESTÃO DE CIDADANIA

Fabiano Ramalho


     Como se sabe, a relação de sujeição tributária não é contratual ou reparatória: ela decorre pura e simplesmente da Lei, que precisa estar perfeitamente espelhada no fato concreto para ser aplicada. Portanto, na relação jurídico-tributária, não estamos diante de um mero confronto entre credor e devedor, como ocorre naturalmente no Direito Privado. Nessa relação, o Estado e, consequentemente, a Administração Tributária, é muito mais do que isso.


A par de sua função de arrecadar tributos, o Estado tem a função fundamental de garantir a segurança jurídica dos administrados em geral e, particular, os direitos e deveres dos contribuintes. E a fiscalização tributária, como agente desse sistema, não só pode como deve atuar com essa premissa. Ou seja, em determinados casos, no exercício dessa função garantidora da segurança jurídica, o Fiscal tem não apenas a opção, mas o dever de não notificar o contribuinte e, mais do que isso, de declarar que aquele período e aquele objeto da fiscalização está correto e não será mais alvo de investigação futura pelo Fisco.


De uma forma geral, ainda que com diferentes enfoques, tudo o que mais deseja um operador consciente e lúcido do Direito Tributário (seja auditor-fiscal, juiz, advogado, empresário, etc.) é a existência de uma Justiça Fiscal plena e efetiva; de uma tributação com qualidade; de uma relação juridico-tributária baseada em princípios de cidadania, da moral e da ética. De um lado, que aquilo que é devido seja pago o quanto antes; de outro lado, que aquilo que é indevido não seja exigido.


Nesse sentido, é de suma importância uma renovação da prática desses operadores. Se, por exemplo, a função própria do auditor-fiscal da Fazenda é a constituição do crédito tributário, então que isso seja bem feito e não fique sujeito ao cancelamento ou nulidades posteriores. A elevada taxa de cancelamentos de notificações fiscais nos Tribunal Administrativos nos revela que essa renovação é mais do que necessária, mas indispensável para a saúde do sistema tributário, tanto para o Estado, para melhorar a eficiência de sua arrecadação, quanto para o contribuinte, para livrar-se de indesejado cerceamento de defesa e de outros absurdos ainda hoje praticados pela Administração Tributária.


Ao mesmo tempo que a Lei determina, por exemplo. a competência exclusiva do auditor-fiscal para constituir o crédito tributário, ela também lhe impõe, implicitamente, o dever de não notificar, sobretudo nos casos em que não houver perfeita subsunção do fato à norma. É essa a mens legis e é preciso ter coragem e uma certa maturidade na relação jurídico-tributária para enfrentar essa mudança de paradigma e assumir, na prática, a responsabilidade pela segurança jurídica e objetividade extrema na atuação do agente fiscal. Preservar a qualidade da relação de sujeição tributária é, sobretudo, uma questão de cidadania, indissociável dos fins do Estado e que deve permear a praxis do seu mais simples agente.


Caso contrário, teremos cada vez mais notificações fiscais contendo vícios intrínsecos, que acabarão sendo canceladas, com graves consequências para o sistema tributário e para a economia. E ainda que o Tribunal Administrativo faça “vista grossa” para determinados erros e mantenha a notificação, ela certamente não resistirá ao Judiciário. Daí, então, teremos perdido todo esse tempo e recursos em decorrência de falhas que deveriam ter sido evitadas ou com o fortalecimento da prova e dos elementos tipificadores da infração, ou, pura e simplesmente, com a singela, porém objetiva e madura decisão de não notificar.


Assim, diante de uma notificação fiscal que não detém a melhor prova ou tipificação, temos duas possibilidades: 1) aplicamos maior diligência e rigor na apuração dos fatos e na coleta das respectivas provas, realizando, assim, os fins arrecadatórios do Estado, ou, 2) ante a evidência concreta de que não é possível demonstrar plenamente a infração, porque não há certeza dos fatos diante das provas existentes, deixamos de notificar o contribuinte, realizando, assim, os fins estatais de garantidor da segurança jurídica.


Nos dois casos, haverá uma atuação positiva do agente fiscal, não havendo que se falar em omissão, com enormes ganhos em termos de desenvolvimento democrático e jurídico, sem contar a melhoria que ocorrerá em termos de eficiência arrecadatória, com o engrossamento dos índices de manutenção, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, das notificações fiscais expedidas em face de infrações à legislação tributária, demonstradas de forma robusta e inequívoca.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

O lançamento como aplicação da norma de incidência tributária

Velocino Pacheco Filho

O discurso prescritivo do direito compreende normas que visam induzir comportamentos, principalmente porque vêm acompanhadas da previsão de sanções, no caso de seu descumprimento. Espera-se que tais normas sejam gerais (dirigidas a todos) e abstratas (fatos ainda não acontecidos). Norberto Bobbio (Teoria da Norma Jurídica) comenta que abstração e generalidade não devem ser entendidas como critérios de definição da norma jurídica, mas como critérios para sua classificação. Embora seja desejável que as normas contidas nas leis sejam gerais e abstratas, para realizarem os valores justiça e certeza do direito.

Mas, face ao caso concreto, a aplicação do direito exige outra classe de normas, individuais e concretas, como no caso da sanção imposta a quem não cumpre a norma geral e abstrata. Também esse é o caso do lançamento tributário, como ato privativo da autoridade fazendária, que constitui (declara) a relação jurídico-tributária que se instaura entre o Estado e o contribuinte e que tem por objeto a exigibilidade do crédito tributário. Ou seja, o fato concreto subsume-se na norma geral e abstrata. Se o fato concreto, cuja ocorrência foi constatada no mundo real, corresponde, em suas características, ao fato gerador do tributo, como descrito no antecedente da norma geral e abstrata, então deve incidir o disposto no seu consequente.

A aplicação do direito, então, pode ser entendida como a construção de um silogismo, cuja premissa maior é a norma geral e abstrata e a premissa menor (categórica) é a afirmação da ocorrência do fato concreto, demonstrada pelas provas levantadas durante o procedimento fiscal. A conclusão, por sua vez, é a declaração da existência da relação jurídico-tributária o que torna o tributo exigível.

O que deve ser provado? Primeiramente, que o fato concreto corresponde ao fato hipotético descrito na norma, em seus aspectos material, espacial e temporal. Também deve ser provado que a base de cálculo adotada pela autoridade administrativa expressa a “perspectiva dimensível do aspecto material”, para utilizar a expressão adotada por Geraldo Ataliba, tendo especial cuidado nos casos em que a lei permite a essa mesma autoridade o seu arbitramento. Deve ainda restar claramente demonstrada a adequação da alíquota aplicada, o sujeito passivo da relação jurídico-tributária, seja ele contribuinte, responsável ou substituto, e o sujeito ativo, aquele que tem competência para exigir o tributo.

Contudo, como ensinava Cícero, summum jus summa injuria. A aplicação mecânica da norma ao fato, como conclusão necessária das premissas, indiferente à situação concreta, pode resultar em desumanização do direito e à instauração de uma situação de injustiça, à qual o direito não pode ser indiferente.

Para resolver esse paradoxo, o remédio de que dispõe o aplicador do direito é a equidade. Mas, atenção! Não podemos confundir essa equidade, que contempla a dimensão humana na aplicação do direito, com a equidade como integração da legislação (colmatação de lacunas) de que trata o Código Tributário Nacional no art. 108, IV.

A equidade de que estamos falando está expressa no art. 172, IV do CTN: “A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário atendendo a considerações de equidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso”.

A hipótese é de remissão – perdão, renúncia ao crédito – hipótese de extinção do crédito tributário, nos termos do art. 108, IV. Mais ainda, a concessão de remissão por equidade está sendo atribuída à autoridade administrativa. Ora, o crédito tributário é indisponível e a atividade administrativa de lançamento (constituição do crédito) é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional (CTN, art. 142, p. único). Então não pode tratar-se de poder discricionário atribuído à autoridade fazendária.

A remissão por equidade depende de expressa previsão em lei que, conforme § 6º do art. 150 da Constituição, deverá ser específica, regulamentando exclusivamente essa matéria ou o correspondente tributo. Na falta de lei, não poderá ser concedida remissão por equidade. Essa lei deve definir a autoridade competente, bem como a forma e em que casos o crédito poderia ser remitido. O despacho que a conceder em cada caso deve ser fundamentado, explicitando a situação peculiar que a justifica e sua adequação às condições prevista em lei para sua concessão.

Constatado que o beneficiado não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições para sua concessão ou que não cumpria ou deixou de cumprir os requisitos exigidos, o despacho deverá ser revogado, tornando-se exigível o tributo não recolhido, acrescido de juros moratórios e, nos casos de dolo ou simulação, da penalidade cabível.

De qualquer modo, a equidade, quando autorizada por lei, deve ser aplicada com muito critério e nos estritos termos em que a lei a autorizar.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O contencioso administrativo tributário e o direito de petição

Velocino Pacheco Filho

Executivo, Legislativo e Judiciário são Poderes “independentes e harmônicos entre si”, conforme dicção do art. 2º da CF. Assim, no caso de conflito entre a Administração Pública (P. Executivo) e o particular, o litígio é submetido ao P. Judiciário como o terceiro neutro na relação processual.  Cabe ao Judiciário, ouvidas as partes, dar solução ao conflito.

O Brasil, ao contrário da França e de outros países europeus, adota o princípio da unidade da jurisdição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF, art. 5º, XXXV).

Então, qual o sentido do contencioso administrativo tributário em nosso País? Ele não faz parte do Poder Judiciário, já que se trata de órgão da Administração Tributária (poder Judiciário): não há prestação jurisdicional; não faz coisa julgada; não decide litígio entre a Administração e o contribuinte.

O direito do contribuinte de questionar administrativamente o lançamento tributário (a constituição de ofício do crédito tributário) insere-se no direito de todo cidadão de peticionar aos Poderes Públicos “em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder” (CF, art. 5º, XXXIV, a). Isso faz do contencioso administrativo tributário um órgão de controle da legalidade dos atos da Administração Tributária: do lançamento, mais precisamente. “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos” (Súmula STF 473).

O julgador administrativo, singular ou coletivo, deve ocupar-se de questões como: o crédito tributário exigido é legal? a autoridade lançadora tem competência para praticar o ato? foram observadas as formalidades exigidas por lei? foi dada oportunidade para o contraditório e ampla defesa? As provas são suficientes e conclusivas? Foram obtidas de forma lícita?

Tem-se procurado dotar os órgãos do contencioso administrativo tributário de certa autonomia em relação à Administração Tributária, para que possa desempenhar as suas funções adequadamente, sem sofrer pressões. Nesse mesmo sentido, tais órgãos têm adotado composição paritária, entre representantes da Fazenda Pública e das entidades de classe dos contribuintes. Quais funções? A de verificar a legalidade da constituição do crédito tributário e, se for o caso, promover a sua desconstituição. É importante, como alerta Alberto Xavier, que haja uma separação (autonomia) funcional entre os órgãos encarregados da constituição do crédito tributário e aqueles que detêm o poder para sua desconstituição.

Tendo a compreensão da natureza do contencioso administrativo, podemos responder algumas questões recorrentes: porque não existe coisa julgada administrativa? Ora, como não se trata de um verdadeiro julgamento (como o procedido pelo judiciário), mas de um controle da legalidade dos atos da Administração Tributária, não há que se falar em coisa julgada, nem mesmo para a Administração. O lançamento cancelado pelo contencioso administrativo simplesmente deixa de existir.

Porque o órgão contencioso não pode decidir in pejus (agravando a exigência do Fisco)? Porque não lhe cabe constituir o crédito tributário, apenas verificar a legalidade do lançamento que o constituiu.
Pela mesma razão, a Administração Tributária não pode recorrer ao Poder Judiciário contra decisão do contencioso administrativo que lhe for desfavorável. Apenas o contribuinte pode fazê-lo. O lançamento representa uma pretensão do Fisco sobre o patrimônio do contribuinte que é exercida mediante a respectiva ação de execução fiscal. O contencioso administrativo pertence ainda à fase de constituição do crédito tributário pretendido pela Fazenda. A proposição de ação contra a decisão administrativa seria algo anômalo, pois a Fazenda Pública seria, ao mesmo tempo, autora e ré. Seria como um cachorro que procura morder o próprio rabo.

Por fim, uma questão que também é levantada periodicamente: o auditor fiscal, responsável pelo lançamento, não teria o direito de participar da discussão no contencioso administrativo, em defesa do ato fiscal? E primeiro lugar, não há “defesa do ato fiscal”. O ato fiscal não está sendo atacado. A única defesa que existe, no caso, é do contribuinte, perante a pretensão da Fazenda sobre o seu patrimônio. Ademais, o auditor fiscal é a autoridade a quem a lei cometeu a competência para constituir o crédito tributário. Mas, o crédito tributário não é do auditor; é da Fazenda Pública, representada pela Procuradoria Fiscal. O auditor não é parte; não tem interesse processual. Apenas quando solicitado, tem o dever de prestar esclarecimentos ou de efetuar diligência determinada pelo julgador.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A PSV 69 e a modulação de seus efeitos pelo STF

Velocino Pacheco Filho

A Emenda Constitucional 45, de 2004, acrescentou o art. 103-A ao texto da Constituição do Brasil, prevendo a edição de súmula pelo Supremo Tribunal Federal, com efeito “vinculante”, não somente para os órgãos do Poder Judiciário, mas também para a Administração Pública, direta e indireta, da União, dos Estados e dos Municípios.

Pois bem! Como medida para conter a “guerra fiscal entre os Estados”, o Supremo propôs súmula vinculante (PSV 69) declarando a inconstitucionalidade de qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou da base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz.

Vamos situar o problema: para atrair investimentos e alavancar suas economias, os Estados têm concedido benefícios fiscais relativos ao seu principal imposto, o ICMS. Para evitar que um benefício dado por um Estado repercutisse sobre os demais, via mecanismo da não-cumulatividade (um Estado arcar com o benefício dado por outro), o constituinte condicionou a concessão de benefícios por um Estado à concordância de todos os demais, mediante celebração de convênios, autorizando o Estado a conceder o benefício, nos termos da Lei Complementar 24/1975, expressamente recepcionada pela Constituição de 1988.

Os convênios são discutidos e aprovados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), integrado pelos secretários de fazenda, finanças ou economia de todos os Estados. A exigência de unanimidade de votos para a aprovação dos convênios deveria ser um eficiente limitador à concessão de benefícios fiscais.

No entanto, a medida resultou ineficaz, uma vez que os Estados passaram a conceder benefícios, mesmo sem autorização do Confaz, instaurando a assim chamada “guerra fiscal” entre os Estados. Porque a disciplina dos convênios não surtiu os efeitos esperados? Pela simples razão de não existir uma sanção eficaz contra a desobediência à Lei Complementar 24. Com efeito, as sanções previstas em seu art. 8º são politicamente inviáveis. Alguns Estados tentaram aplicar a sanção prevista no inciso I desse dispositivo, ou seja, declarar a nulidade do benefício e a ineficácia do crédito atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria. Contudo, a Suprema Corte entendeu que, em nome do princípio federativo, um Estado não poderia declarar unilateralmente a nulidade de lei de outro Estado.

Existe ainda outra razão para inviabilizar a aplicação pelos Estados da sanção do art. 8º, I: a medida resulta em punir o contribuinte pelo ilícito cometido pelo Estado ao conceder benefício não autorizado. A única via, portanto, que resta aos Estados que se sentem prejudicados é a proposição de ação direta de inconstitucionalidade contra a lei do Estado transgressor. Sempre que proposta, o Supremo tem declarado a inconstitucionalidade dos benefícios concedidos sem autorização do Confaz o que explica e justifica a súmula vinculante proposta.

Por outro lado, os Estados têm procurado outra solução para o impasse, facilitando a aprovação dos convênios autorizando os benefícios, mediante abolição da exigência de unanimidade para sua aprovação. Afinal, se nem as emendas à Constituição exige unanimidade, porque exigi-la para aprovação dos convênios? Naturalmente, a lógica nesse caso é outra.

Além do princípio da Federação – em risco desde que um Estado passa a ser obrigado a aceitar um convênio com o qual não concorda – existe a questão da economia de mercado, adotada implicitamente desde que eleita a livre concorrência como princípio informador da ordem econômica (CF, art. 170, IV).

Livre concorrência pressupõe não regulamentação do mercado, de modo que as decisões dos agentes econômicos levem em conta apenas o sistema de preços e, portanto, sejam indiferentes à tributação sobre o consumo. Ora, o uso extrafiscal da tributação sobre o consumo – no caso, benefícios fiscais relativos ao ICMS, como forma de alavancar a economia dos Estados – representa intervenção no sistema de preços e o abandono da economia de mercado. O tratamento tributário passa a ser relevante para a tomada de decisões.

Em tais circunstâncias, facilitar a aprovação de convênios autorizativos de benefícios fiscais, mediante abolição da unanimidade, implica, de certa forma, a legitimação da guerra fiscal.

A súmula vinculante seria a solução? Devemos considerar o efeito vinculante para a Administração Tributária que não mais poderia aplicar benefícios fiscais não autorizados pelo Confaz, mesmo quando previstos pela legislação do Estado.

Ora, a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos ex tunc (como se a norma deixasse de existir desde sua edição), salvo se o Supremo modular os seus efeitos para contemplar os atos praticados antes da declaração de inconstitucionalidade. Mas, se não forem modulados os efeitos, a Administração Tributária seria obrigada a cobrar todo o crédito tributário que deixou de ser recolhido devido ao benefício fiscal irregularmente concedido.

Mais uma vez, o contribuinte estaria sendo punido por um ilícito cometido pelo Estado o que constituiria grave injustiça. Ninguém pode ser punido por cumprir a lei ou por utilizar benefício previsto na legislação. Assim, podemos esperar com bastante certeza que o Supremo module os efeitos da súmula vinculante, caso seja aprovada.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A ADI 1.851 e sua justificação

Velocino Pacheco Filho
Toda decisão, administrativa ou judicial, deve ser fundamentada. Trata-se de especificar as razões jurídicas ou factuais que justificam a decisão tomada. Porém, quais argumentos podem ser utilizados para fundamentar ou para justificar a decisão?

Conforme Neil McCormick, os raciocínios puramente dedutivos podem não ser suficientes. É válido, portanto, considerar as consequências possíveis ou prováveis decorrentes da decisão, em casos que envolvem a pertinência, a interpretação ou a classificação.

Contudo, McCormick não está defendendo a justificação das decisões apenas conforme a conveniência da Administração. Pelo contrário, defende que a avaliação das consequências depende de meticuloso exame à luz dos princípios constitucionais fundamentais. Ou seja, o uso de argumentos consequencialistas somente serão válidos se forem compatíveis com os valores adotados pelo ordenamento jurídico.

Tomemos como exemplo a ADI 1.851 AL que decidiu pela constitucionalidade do Convênio ICMS 13/1997, segundo o qual no caso de substituição tributária “para frente” (antecipação do recolhimento com encerramento da tributação), a base de cálculo estimada (para o cálculo da retenção do imposto devido por substituição tributária) não é provisória, mas definitiva. Assim, quando da concretização do fato gerador presumido, o fato do valor da operação (base de cálculo efetiva) se tornar conhecido não dá ensejo “à restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final”.

Na justificação da decisão, o Supremo Tribunal argumentou que a restituição da diferença despojaria o instituto “das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e arrecadação”. Trata-se obviamente de um argumento consequencialista. Será ele válido nesse caso?

Eficiência, economia e celeridade são qualidades que devem ser perseguidas pela Administração Tributária, mas não em prejuízo de outros valores, também presentes no ordenamento e de maior peso. É o caso da base de cálculo, definida por Ataliba como “a perspectiva dimensível do aspecto material da hipótese de incidência”. Becker, a seu turno, via na base de cálculo um papel fundamental, qual seja, a revelação da capacidade contributiva. Além disso, é na base de cálculo que verificamos a real natureza do tributo. Por isso, Paulo de Barros Carvalho leciona que a base de cálculo afirma, confirma ou infirma o fato gerador do tributo. Deve haver uma relação necessária entre o fato gerador e a base de cálculo, cuja lógica não deve ser rompida.

Cobrar o tributo utilizando uma base de cálculo estimada, recusando qualquer ajuste, mesmo depois de conhecida a base de cálculo real, atende a essa “relação necessária”? Não estará havendo uma cobrança indevida no caso da “bola de cristal” do Fisco errar para mais? Se errar para menos, não estará o Fisco abrindo mão de receita tributária?

A decisão da Corte teve em vista apenas a conveniência e a comodidade das Administrações Tributárias dos Estados. Entretanto, essas virtudes devem ser sopesadas com valores como a legalidade, a moralidade e a segurança jurídica.

A evasão tributária é, com razão, uma preocupação constante das Administrações Tributárias e constitui um objetivo válido a sua redução ao mínimo. Mas, a receita tributária não constitui um objetivo em si mesma. Pelo contrário, trata-se do meio para atingir os objetivos do Estado: a garantia dos direitos fundamentais (inclusive o direito à saúde e à educação), a prestação de serviços públicos de qualidade e, enfim, a consecução do bem comum.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

A norma e seu contexto: vedação ao crédito pela entrada de bens destinados à locação, contabilizados no ativo imobilizado.

Velocino Pacheco Filho

A interpretação de um dispositivo legal não pode prescindir do contexto em que ele está inserido. Ensina Luís Alberto Warat que todo termo possui dois níveis de significação: o significado de base e o significado contextual. A mera análise da forma gramatical e do significado de base nem sempre revelam o sentido latente do termo; pelo contrário, servem frequentemente para encobri-lo.

Também Carlos Maximiliano chama a atenção para a pluralidade de sentidos que pode ser extraída dos textos legais, razão pela qual recomenda o exame não só do vocábulo em si, mas também a sua conexão com outros vocábulos. O significado, pois, deve ser buscado em mais de uma parte da mesma lei.

Assim, todo texto pressupõe um contexto que é imprescindível para a sua compreensão. O contexto a ser considerado pode compreender até mesmo a totalidade do ordenamento jurídico, inclusive as disposições constitucionais. Caso contrário, a interpretação descontextualizada pode levar a equívocos grosseiros. Vejamos o caso do direito ao crédito correspondente à entrada de bens destinados à locação, contabilizados no ativo imobilizado.

O crédito fiscal do ICMS tem origem no art. 155, § 2º, I e II da Constituição Federal: o crédito, conforme dispõe o inciso I, nada mais é que o imposto cobrado nas operações ou prestações anteriores, pelo mesmo ou por outro Estado ou pelo Distrito Federal; o inciso II, b, por sua vez, dispõe que a isenção ou não incidência, salvo disposição em contrário da legislação, acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

Em suma, o crédito do ICMS (direito de compensar imposto devido com o imposto cobrado em operações ou prestações anteriores) existe apenas em função do débito do mesmo imposto: se não houver débito, não há o que ser compensado e, por conseguinte, o crédito correspondente deve ser anulado. Este raciocínio vale para qualquer crédito do ICMS, inclusive em relação aos bens destinados ao ativo imobilizado.

O art. 20 da Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir), usando da competência prevista no art. 155, § 2º, XII, “c”, da Constituição Federal, introduziu o regime de “crédito financeiro”, em substituição ao “crédito físico”, até então adotado. Conforme Hugo de Brito Machado, o regime de não-cumulatividade conhecido como crédito físico somente admitia o direito ao crédito correspondente à entrada de mercadorias ou (no caso de indústria) de insumos que se integrassem fisicamente ao produto. Já no regime de crédito financeiro, é assegurado o crédito do imposto pago em todas as operações de circulação de bens ou prestações de serviços que constituam custo do estabelecimento. Importa que o bem vendido tivesse como custo aquele bem ou aquele serviço já tributado anteriormente pelo ICMS. Acrescenta esse autor que se trata de um regime de não-cumulatividade absoluta, enquanto o crédito físico constituía um regime de não-cumulatividade relativa.

Mas, em qualquer hipótese, somente haverá direito ao crédito se a operação ou prestação subsequente for tributada. É o que sucede com os bens destinados à locação a terceiros, ainda que contabilizados no ativo imobilizado da empresa. Esses bens não são utilizados na produção de bens destinados à venda (submetidos à incidência do ICMS); não constituem custo das mercadorias ou prestação de serviços tributados pelo imposto. Locação de bens móveis não constitui fato gerador do ICMS.

Com efeito, a Constituição Federal, art. 155, II, atribui aos Estados-membros a competência para instituir imposto sobre (i) operações relativas à circulação de mercadorias, (ii) prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e (iii) prestação de serviço de comunicação. A locação não se caracteriza como operação de circulação de mercadorias (a mera movimentação física do bem não caracteriza operação de circulação de mercadoria). Também não constitui prestação de serviço de comunicação e, menos ainda, de serviço de transporte. A dicção do art. 20 da Lei Complementar 87/96 deve ser entendida no contexto da competência tributária reservada aos Estados-membros pelo Estatuto Supremo.

Por conseguinte, a aquisição de bens destinados ao ativo imobilizado dá direito a crédito apenas quando tais bens forem utilizados para a produção de mercadorias ou na prestação de serviços de transporte e de comunicação, devidamente onerados pelo tributo estadual, de modo que o referido crédito seja utilizado para compensar, total ou parcialmente, o tributo devido. Mas, no caso de destinarem-se à locação, por não haver incidência do ICMS, a entrada desses bens no estabelecimento não gera direito a crédito.


Mas, poderiam objetar, esses bens, adquiridos para locação, sofreram a incidência do ICMS. A locadora deveria arcar com o ônus do tributo? Sim, pois, nesse caso, ela não é contribuinte do imposto e sim consumidora final.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Os pequenos déspotas

Velocino Pacheco Filho

Consoante dispõe o art. 1º da sua Lei Fundamental, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Entende-se por Estado de Direito aquele em que os detentores do poder estão sujeitos às leis ou, em outras palavras, o ordenamento jurídico funciona como limitador do exercício do poder. Tanto o Governante como a Administração ficam impedidos de impor sua vontade além do que a lei lhes permite. Já o Estado Democrático de Direito representa um passo mais adiante: as leis devem garantir os direitos fundamentais, baseados no princípio da dignidade da pessoa humana. O termo une o conceito de Estado de Direito (i. e. governado pelas leis) ao de democracia (em que o povo detém a soberania).

Canotilho, entretanto, fala de um Estado de Não-Direito em que o poder político se pretende desvinculado dos limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade protegida pelo Estado. A compreensão do Estado de Não-Direito é fundamental para a compreensão do Estado de Direito, principalmente quando o primeiro se apresenta disfarçado de Estado de Direito. 

Então, podemos identificar o Estado de Não-Direito como aquele que edita leis arbitrárias, em que o direito se identifica com a “razão do Estado” e que se caracteriza pela desigualdade na aplicação do direito.  No Estado de Não-Direito, o “politicamente correto” é o que o “partido” decreta como tal, desvirtuando em proveito de seus próprios objetivos conceitos como interesse público, função social, coletividade, bem comum etc. O Estado de Não-Direito pune severamente as faltas dos adversários, mas trata de encobrir as cometidas pelos correligionários e membros do “partido”. Não é preciso muita imaginação para identificar no direito tributário brasileiro traços do Estado de Não-Direito.

O Despotismo, termo de venerável antiguidade, refere-se, por sua vez, ao regime em que o Governante está acima das leis. As leis a ele não se aplicam. O poder concentra-se em uma só pessoa, que não deve obediência a leis ou regras: governa ao sabor de sua vontade e de seus caprichos. A autoridade do déspota não está limitada pelo direito.

A palavra “despotismo” tem sua origem no grego “despotes” que significa o chefe de família, o senhor da casa. O déspota governa o Estado como se fosse a sua casa; como se o Estado fosse um domínio privado. O governo do Estado torna-se um governo doméstico. A conhecida frase atribuída a Luiz XIV, rei da França, “l’État c’est moi” (o Estado sou eu) representa mais que qualquer outra a síntese  do significado de despotismo. O conceito de despotismo é a antítese do Estado de Direito, como se fosse sua imagem especular.

Despotismo, contudo, não se confunde com o Estado de Não-Direito, pois este último guarda uma aparência de Estado de Direito: podemos mesmo dizer que é a sua paródia. Contudo, na prática, ambos colaboram para solapar as bases do Estado Democrático de Direito.

Há momentos em que um chefe de repartição, embriagado com o seu próprio poder, entende que pode sobrepor-se à lei; que não está obrigado a obedecê-la. Torna-se, então, um pequeno déspota, oculto na complexidade da burocracia do Estado de Direito, exercendo um poder que, na verdade, ele não tem.

Examinemos três exemplos colhidos junto à Administração Tributária catarinense: (i) a recusa obstinada de devolver sem correção monetária o imposto recolhido indevidamente; (ii) ignorar as disposições da legislação que vinculam determinados tratamentos tributários à destinação da mercadoria, resultando em conclusões grotescas; e (iii) a devolução (ou sua falta) dos valores recolhidos a título de AIR, cuja instituição foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

No primeiro exemplo, dispõe o art. 77 da Lei 5.983/1981 que, na restituição de quaisquer créditos tributários pagos indevidamente, os valores serão atualizados monetariamente. Cuida-se de dispositivo expresso de lei que deveria ser cumprido sem questionamentos pelo administrador público ao qual falece discricionariedade para decidir se deve cumpri-la ou não. O cumprimento da lei não é facultativo; é obrigatório. O servidor público, na hipótese, deveria ser chamado à responsabilidade, pois o descumprimento da lei caracteriza falta funcional.

O segundo exemplo refere-se à substituição tributária, instituto que atribui a terceiro vinculado ao fato gerador a responsabilidade pelo recolhimento do tributo, com afastamento da responsabilidade do contribuinte. Como norma excepcional, deve estar expressamente prevista e somente pode ser aplicada em seus estritos termos. 

Ora, o art. 227 do Anexo 3 do RICMS-SC, com base nos Protocolos ICMS 196/2009 e 116/2012, submete ao regime de substituição tributária os materiais de construção, acabamento, bricolagem ou adorno, relacionados na Seção XLIX do Anexo 1. Decidiu, entretanto, a Administração que, para exigir o imposto do substituto tributário, basta a descrição da mercadoria na legislação estadual e a respectiva classificação na NBM/SH, independentemente de destinar-se ao emprego na construção civil ou como acabamento, bricolagem ou adorno. O risco desse entendimento é incluir no referido regime mercadorias outras que não as destinadas à construção civil etc. e, portanto, sem a devida autorização legal. A destinação da mercadoria, neste caso, é parte da descrição feita pelo legislador da operação tributável cujo imposto deverá ser exigido do substituto.

Vejamos o terceiro exemplo: a redação original do inciso II do art. 155 da Constituição Federal permitia aos Estados instituir adicional de até cinco por cento do que fosse pago à União a título de imposto de renda, sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital. Em Santa Catarina, o Adicional Estadual de Imposto de Renda (AIR) foi instituído pela Lei 7.542/1988 e regulamentado pelo Decreto 6.001/1990.

Devido a conflitos de competência com outros Estados, hipótese que não poderia ser suprida nos termos do § 3º do art. 24 da CF, o Supremo Tribunal Federal declarou, em controle concentrado, a inconstitucionalidade da lei catarinense. Posteriormente, a competência dos Estados para instituir o adicional foi revogada pela Emenda Constitucional 3/1993.

Como era de esperar, os contribuintes entraram com pedidos administrativos de repetição do indébito em relação aos valores recolhidos a título de AIR.  Leciona Ricardo Lobo Torres Há consenso de que a declaração de inconstitucionalidade da norma que instituiu o imposto torna indevidos ab initio os pagamento efetuados a esse título. Ou seja, a eficácia da declaração de inconstitucionalidade é ex tunc. Segundo de Santi, constitui-se o débito do Fisco, como relação jurídica que decorre mediatamente do pagamento indevido e, imediatamente, de ulterior ato de aplicação que reconheça esse fato. Em síntese, a declaração de inconstitucionalidade pelo STF fez nascer para o Fisco o dever de devolver as quantias pagas a título de AIR. Apesar disso, a Administração dotou a prática de protelar os pedidos, ficando a restituição postergada para as calendas gregas.

Desse modo os pequenos déspotas, por uma compreensão equivocada do que constitui o interesse público, colaboram para negar ao cidadão os direitos que a lei lhes assegura. A ação dos pequenos déspotas, disseminados por toda a Administração, contribui significativamente para a redução do Estado de Direito em Estado de Não-Direito.