Velocino Pacheco Filho
A interpretação de um dispositivo legal não
pode prescindir do contexto em que ele está inserido. Ensina Luís Alberto Warat
que todo termo possui dois níveis de significação: o significado de base e o
significado contextual. A mera análise da forma gramatical e do significado de
base nem sempre revelam o sentido latente do termo; pelo contrário, servem
frequentemente para encobri-lo.
Também Carlos Maximiliano chama a atenção para
a pluralidade de sentidos que pode ser extraída dos textos legais, razão pela qual
recomenda o exame não só do vocábulo em si, mas também a sua conexão com outros
vocábulos. O significado, pois, deve ser buscado em mais de uma parte da mesma
lei.
Assim,
todo texto pressupõe um contexto que é imprescindível para a sua compreensão. O
contexto a ser considerado pode compreender até mesmo a totalidade do
ordenamento jurídico, inclusive as disposições constitucionais. Caso contrário,
a interpretação descontextualizada pode levar a equívocos grosseiros. Vejamos o
caso do direito ao crédito correspondente à entrada de bens destinados à
locação, contabilizados no ativo imobilizado.
O crédito fiscal do ICMS tem origem no art. 155, § 2º, I e II da
Constituição Federal: o crédito, conforme dispõe o inciso I, nada mais é que o
imposto cobrado nas operações ou prestações anteriores, pelo mesmo ou por outro
Estado ou pelo Distrito Federal; o inciso II, b, por sua vez, dispõe que a
isenção ou não incidência, salvo disposição em contrário da legislação,
acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
Em suma, o crédito do ICMS (direito de compensar imposto devido
com o imposto cobrado em operações ou prestações anteriores) existe apenas em
função do débito do mesmo imposto: se não houver débito, não há o que ser
compensado e, por conseguinte, o crédito correspondente deve ser anulado. Este
raciocínio vale para qualquer crédito do ICMS, inclusive em relação aos bens
destinados ao ativo imobilizado.
O art. 20 da Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir), usando da
competência prevista no art. 155, § 2º, XII, “c”, da Constituição Federal,
introduziu o regime de “crédito financeiro”, em substituição ao “crédito
físico”, até então adotado. Conforme Hugo de Brito Machado, o regime de
não-cumulatividade conhecido como crédito físico somente admitia o direito ao
crédito correspondente à entrada de mercadorias ou (no caso de indústria) de insumos
que se integrassem fisicamente ao produto. Já no regime de crédito financeiro,
é assegurado o crédito do imposto pago em todas as operações de circulação de
bens ou prestações de serviços que constituam custo do estabelecimento. Importa
que o bem vendido tivesse como custo aquele bem ou aquele serviço já tributado
anteriormente pelo ICMS. Acrescenta esse autor que se trata de um regime de
não-cumulatividade absoluta, enquanto o crédito físico constituía um regime de
não-cumulatividade relativa.
Mas, em qualquer hipótese, somente haverá
direito ao crédito se a operação ou prestação subsequente for tributada. É o
que sucede com os bens destinados à locação a terceiros, ainda que contabilizados
no ativo imobilizado da empresa. Esses bens não são utilizados na produção de
bens destinados à venda (submetidos à incidência do ICMS); não constituem custo
das mercadorias ou prestação de serviços tributados pelo imposto. Locação de
bens móveis não constitui fato gerador do ICMS.
Com efeito, a Constituição Federal, art. 155,
II, atribui aos Estados-membros a competência para instituir imposto sobre (i)
operações relativas à circulação de mercadorias, (ii) prestação de serviço de
transporte interestadual e intermunicipal e (iii) prestação de serviço de
comunicação. A locação não se caracteriza como operação de circulação de
mercadorias (a mera movimentação física do bem não caracteriza operação de
circulação de mercadoria). Também não constitui prestação de serviço de
comunicação e, menos ainda, de serviço de transporte. A dicção do art. 20 da
Lei Complementar 87/96 deve ser entendida no contexto da competência tributária
reservada aos Estados-membros pelo Estatuto Supremo.
Por conseguinte, a aquisição de bens
destinados ao ativo imobilizado dá direito a crédito apenas quando tais bens forem
utilizados para a produção de mercadorias ou na prestação de serviços de transporte
e de comunicação, devidamente onerados pelo tributo estadual, de modo que o
referido crédito seja utilizado para compensar, total ou parcialmente, o
tributo devido. Mas, no caso de destinarem-se à locação, por não haver
incidência do ICMS, a entrada desses bens no estabelecimento não gera direito a
crédito.
Mas, poderiam objetar, esses bens, adquiridos
para locação, sofreram a incidência do ICMS. A locadora deveria arcar com o
ônus do tributo? Sim, pois, nesse caso, ela não é contribuinte do imposto e sim
consumidora final.