DIREITO TRIBUTÁRIO EM DEBATE

Este é um espaço dedicado à reflexão e à troca de idéias sobre tributação e as relações entre fisco e contribuintes. A manifestação da opinião de cada um é livre, sem qualquer espécie de patrulhamento. Mas, como toda a liberdade, deve ser exercida com responsabilidade, sujeita à moderação.O espírito crítico e questionador dos paradigmas estabelecidos deve ser incentivado, mas não será permitido utilizar este espaço para ataques contra pessoas ou instituições, ou para publicidade.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Taxas estaduais e direito de petição

Velocino Pacheco Filho

O art. 4º da Lei 7.541/1988, de Santa Catarina, define o fato gerador da taxa de serviços gerais como a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, ou o exercício regular de atividades inerentes ao poder de polícia. O § 1º do mesmo artigo diz que os serviços e atividades sujeitas à taxa são os especificados no anexo da Lei.

O referido anexo, item 4, prevê que nas reclamações e recursos ao Tribunal Administrativo Tributário (TAT), a taxa será de 0,5% (meio por cento) do valor do litígio, não podendo ser inferior a R$ 7,72 ou superior a R$ 81,84.

Ora, entende-se que o direito do contribuinte apresentar impugnações e recursos perante a Administração Tributária reside no direito de petição. Com efeito, dispõe a Constituição Federal, art. 5º, XXXIV, “a”, que são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.

O direito de petição exerce-se, por conseguinte, (i) em defesa de direitos, (ii) contra ilegalidade ou (iii) contra abuso de poder. À evidência, trata-se de (i) direitos ameaçados pela Administração Pública, (ii) ilegalidade cometida pela Administração Pública e (iii) abuso de poder pela Administração Pública. Para tanto, a Constituição proíbe a cobrança de taxas.

As reclamações e recursos administrativos são modalidades do direito de petição, na medida que se voltam para a defesa do direito do contribuinte de pagar apenas o tributo previsto em lei ou contra o tributo exigido ilegalmente. Embora tais reclamações e recursos dependam da iniciativa do contribuinte, existe o interesse da Administração em cumprir o ordenamento jurídico, conforme Súmula 473 do STF: “a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos”. Por isso o contencioso administrativo tributário nada mais faz que o controle da legalidade dos atos da Administração Tributária.

Não se trata, portanto, a impugnação da constituição do crédito tributário, de exercício de direito subjetivo, invocando a tutela jurisdicional do Estado, mas de direito de petição. 

A taxa cobrada para o contribuinte impugnar administrativamente o crédito tributário constituído, além de vedada pela Constituição, por tratar-se de direito de petição, não caracteriza utilização efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição, nem tampouco exercício regular de atividades inerentes ao poder de polícia. Permitir ao contribuinte que discuta a legalidade da exigência do tributo não é nenhum serviço prestado ao contribuinte. Também não se trata de exercício do poder de polícia, como definido pelo art. 78 do CTN.

De fato, o Poder Público não está limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, em razão de interesse público concernente à segurança, higiene, ordem, costumes, disciplina da produção e do mercado, exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização, tranquilidade pública ou respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Ainda que fosse possível a cobrança de taxas, resta ainda discutir o valor cobrado a título de taxa, calculado como percentual do valor do litígio (i.e. do crédito tributário reclamado). É a própria Constituição do Estado, art. 125, § 4º que veda cobrar taxas em valor superior ao custo de seus fatos geradores ou ter base de cálculo própria de impostos. 

Misabel Derzi, comentando a obra de Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro) esclarece que o núcleo da hipótese de incidência das taxas é o “atuar do ente estatal relacionado ao obrigado, que sofre aquela atuação”. Portanto, a base de cálculo das taxas necessariamente “deve mensurar o custo de atuação do Estado, proporcionalmente a cada obrigado”. Taxas com base de cálculo diversa, como o valor da causa – acrescenta – não passam de impostos disfarçados, além dos autorizados pela Constituição Federal.

A cobrança de taxa, nesse caso, serve apenas ao propósito de desencorajar o  contribuinte a exercer o direito de impugnar administrativamente o crédito tributário ilegalmente exigido.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Livre concorrência e unanimidade das decisões do Confaz

Velocino Pacheco Filho

Dispõe o art. 155, § 2º, XII, da Constituição da República que compete à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. A matéria foi regulada pela Lei Complementar 24/1975 cujo art. 1º condicionou esses tratamentos excepcionais a convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal. Conforme § 2º do art. 2º, a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados. 

Essa disposição tem recebido inúmeras críticas. “Se nem as emendas constitucionais”, alegam, “exige unanimidade, porque seria ela exigida para a concessão de isenções”? Ora, o Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), órgão onde são discutidas as propostas de convênios, não é um corpo legislativo, mas apenas um colegiado de secretários de fazenda dos Estados. Os convênios em si mesmos não concedem isenções, mas constituem uma condição para que os Estados o façam. 

Outro argumento baseia-se no art. 151, I, da CF/88 que veda a instituição de tributo que não seja uniforme em todo território nacional, ressalvada a concessão de incentivos fiscais “destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País”. Então, concluem, a concessão de incentivos fiscais é permitida para estimular o desenvolvimento das regiões mais pobres. Embora a afirmativa seja verdadeira, essa disposição, no entanto, é dirigida expressamente à União e ao tratamento dos impostos federais. Poderia ser estendida ao ICMS?

O argumento mais forte apela para os princípios constitucionais: entre os objetivos fundamentais da República, conforme dispõe o art. 3º, III, da CF/88, está a redução das desigualdades regionais. Assim, a exigência de unanimidade no Confaz estaria contrariando a realização desse objetivo fundamental. 

No entanto, os princípios constitucionais – principalmente os que encerram valores – devem ser interpretados em harmonia com outros princípios. É o caso da livre concorrência que, entre outros princípios, informa a ordem econômica, a teor do disposto no art. 170, IV: a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, deve observar, entre outros, o princípio da livre concorrência. A relevância desse princípio é demonstrada pelos instrumentos constitucionais postos à disposição do legislador para a defesa da livre concorrência. Desse modo, o § 4º do art. 173 determina que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Por outro lado, o art. 146-A, acrescido pela EC 42/2003, faculta à lei complementar “estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”.

Livre concorrência significa dar condições para que as empresas concorram no mercado em igualdade de condições, de modo a favorecer a mais eficiente. Isto requer, por parte do Estado, uma tributação neutra sobre o consumo, de modo a que a tributação não interfira na tomada de decisões pelos agentes econômicos. As empresas em concorrência devem ser indiferentes à tributação. Em outras palavras, para cumprir a Constituição – de construir uma economia baseada na livre concorrência – não deve haver tratamentos tributários favorecidos. Uma tributação plurifásica não-cumulativa, como é o caso do IVA ou do ICMS, atende ao princípio da neutralidade, na medida que cada um deve recolher na proporção do valor que adiciona em cada fase do ciclo de comercialização. 

Conforme lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr., o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, não pode desigualar concorrentes em condições de igualdade, criando situações de privilégio de uns sobre outros. Isto por que um mercado, regido pelo princípio da livre concorrência, significa um mercado que se autorregula, pois, é no mercado que se formam os preços conforme as suas próprias regras e é no mercado que se dá a boa alocação dos recursos.

Livre concorrência, acrescenta o mesmo autor, implica a neutralidade do Estado, no sentido de atuação imparcial em face dos agentes concorrentes com seus interesses privados em um mercado livre, ou pela não-interferência estatal, no sentido de que ela não deve ser criadora de privilégios. O Estado, como agente normativo e regulador, atua em nome do interesse comum, nunca em nome de interesses privados e, ao atuar, deve guardar a imparcialidade própria do interesse comum. “A neutralidade concorrencial garante, pois, a igualdade de chances para os agentes econômicos”.

Então o princípio da neutralidade concorrencial deve impedir a criação de privilégios (i.e. de vantagens desigualadoras). Se a atuação estatal, pondera o mesmo jurista, interfere na relação entre concorrentes, mesmo argüindo motivos relevantes (outros princípios, como proteção ao meio ambiente, ao consumidor etc.), ela não pode vir a privilegiar certos concorrentes contra outros, afastando-os do mercado ou retirando-lhes a possibilidade de competir.

A neutralidade dos tributos decorre ainda da proibição de tratamento desigual a contribuintes que estão em situação equivalente (CF, art. 150, II), pois, livre mercado significa que os concorrentes competem, em princípio, dentro de um quadro tributário que marca a estratégia concorrencial de cada um. De outro, porém, e por isso mesmo, esse quadro não pode ser discriminatório, nem criar condições competitivas diferentes entre eles. Assim, o princípio da isonomia, garantido pela neutralidade dos tributos diante da concorrência, será vulnerado na medida em que a relação concorrencial entre empresas for afetada pela tributação, de tal modo que esta favoreça umas e desfavoreça outras.

Não discrepa dessa doutrina, Gilmar Ferreira Mendes para quem a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos cogentes da autoridade administrativa, mas sim do livre jogo das forças de mercado em disputa da clientela na economia de mercado. Pois, o modelo de economia de mercado, adotado pelos constituintes de 88, só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de qualquer interferência, seja do Estado ou do capital monopolista. 

José Afonso da Silva, a seu turno, vê no princípio da livre concorrência, prestigiada no inciso IV do art. 170 da Constituição uma manifestação da liberdade de iniciativa. O art. 170, IV e o § 4º do art. 173, no entendimento do prestigiado professor, “complementam-se no mesmo objetivo”, ou seja, tutelar o sistema de mercado e proteger a livre concorrência “contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista”.

Por fim, segundo Fernando L. Weiss, “a tributação do século XX tem a solidariedade como fundamento, uma vez que todos são igualmente titulares do Estado e devem custeá-lo na medida de suas possibilidades, e representam a retribuição à sociedade em razão do sucesso em obter, fazer circular ou acumular riquezas. A capacidade contributiva é a medida desse sucesso”. Conforme esse autor, é “inaceitável que a tributação oprima a atividade econômica, salvo se houver uma finalidade pública não tributária a ser atendida”.

Desse modo, a concordância unânime dos Estados por meio de convênio, exigida pela Lei Complementar 24/1975, para que um Estado crie incentivos em matéria de ICMS, é mecanismo para evitar a transferência ou repartição dos ônus financeiros deles decorrentes. Em homenagem ao princípio da Federação, nenhum Estado deve ser obrigado a suportar ônus resultante de benefícios fiscais concedidos por outro. O convênio garante validade à lei local, conclui Weiss, mas não acarreta renúncia de receita por parte dos demais Estados.

Podemos concluir, pois, que a exigência de unanimidade na aprovação dos convênios pelo Confaz, vem atender (i) ao princípio da livre concorrência, (ii) ao tratamento isonômico entre contribuintes e (iii) a garantia de que nenhum Estado deva suportar o ônus de benefício fiscal concedido por outro. A redução das desigualdades regionais não é um valor absoluto que se sobreponha a outros princípios constitucionais como a livre concorrência, a isonomia ou a federação. 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Qual o cabimento da multa de mora em matéria tributária?

Velocino Pacheco Filho

O tributo não pago no seu vencimento é acrescido de multa, juros e correção monetária. Os juros (moratórios) tem a função de indenizar o Estado, recompondo o patrimônio lesado pelo não recebimento a tempo do tributo. A correção monetária, por sua vez, atualiza o poder de compra da moeda, corroído pela inflação.

A taxa Selic, criada em 1979, incide sobre os financiamentos com prazo de um dia útil (overnight), lastreados por títulos públicos registrados no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia. “A Taxa Selic compreende juros de mora e correção monetária, sendo vedada sua utilização cumulativa com qualquer outro índice de juros ou correção”(AgRg no REsp 976127 / SP, Segunda Turma, DJe 07/10/2008).

Costuma-se classificar as multas em punitivas e moratórias. As multas punitivas correspondem a uma violação da legislação tributária, tendo caráter essencialmente intimidativo. Já as multas moratórias decorrem do simples inadimplemento da obrigação tributária. Têm caráter indenizatório. Além disso, as multas punitivas devem ser constituídas pela autoridade, em prévio ato administrativo. As multas moratórias, por sua vez, não dependem de constituição, sendo aplicadas pela Administração Tributária, por força da lei.

Jurisprudência dos tribunais superiores, no entanto, não tem feito distinção entre multas moratórias e punitivas. Assim, a Segunda Turma do STJ, no R. Especial 1.009.897 (DJe 28/5/2008) decidiu que a denúncia espontânea afasta a multa moratória, “até porque inexiste distinção entre esta e a multa punitiva”. Com efeito, o art. 138 do CTN dispõe que a responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, “acompanhada do pagamento do tributo e dos juros de mora”. Não é feita referência à multa de mora. 

Já no R. Especial 169.877 SP (DJ de 24.08.1998), decidiu o tribunal que “a multa moratória constitui penalidade resultante de infração legal, sendo inexigível no caso de denúncia espontânea, por força do artigo 138, mesmo em se tratando de imposto sujeito a lançamento por homologação”.

A Primeira Turma do STJ, no R. Especial 177.076 RS (DJ 1-7-1999, p. 126), esclarece que “a multa moratória foi concebida como forma de punir o atraso no cumprimento das obrigações fiscais, tornando-o mais oneroso. Seu escopo final é intimidar o contribuinte, prevenindo sua mora. Inegável sua natureza punitiva. O ressarcimento pelo atraso fica por conta dos juros e eventual correção monetária”.

Em sede de doutrina, leciona Sacha Calmon Navarro Coelho (Teoria e Prática das Multas Tributárias, Forense, 1992, p. 73) que “em direito tributário é o juro que recompõe o patrimônio estatal lesado pelo tributo não recebido a tempo. A multa é para punir, assim como a correção monetária é para garantir, atualizando-o, o poder de compra da moeda. Multa e indenização não se confundem”.

Além disso, as multas moratórias distinguem-se das punitivas pelo seu menor valor e por serem proporcionais ao atraso no pagamento. Multas muito altas, independentemente do tempo que o contribuinte ficou sem efetuar o pagamento do crédito tributário, são típicas de punição. 

Em Santa Catarina, a Lei 10.297/1996 pune com multa de 50% do valor do imposto exigido por notificação fiscal a falta de recolhimento do imposto (art. 51), enquanto o pagamento a destempo, antes de qualquer procedimento administrativo, é acrescido de multa diária de 0,3% do valor do imposto, até o limite de 20% (art. 53). A multa do art. 51 é claramente punitiva e a do art. 53, claramente indenizatória.  

Ainda assim, persiste a indagação: se tanto os juros quanto a multa de mora tem natureza indenizatória, não estaria o contribuinte sendo compelido a reparar duas vezes o Estado pela mesma coisa? Poderiam os juros e a multa de mora ser cobrados cumulativamente?

Por outro lado, o inadimplemento da obrigação tributária não pode representar vantagem para o contribuinte – forma barata de fazer capital de giro. Contudo, se o objetivo da multa é desincentivar o inadimplemento, estamos falando de multa punitiva e não moratória.