Velocino Pacheco Filho
Desde a edição do Código Napoleônico, em 1804, que a aplicação do direito, seguindo o paradigma teórico das ciências em geral, tem sido entendida como um procedimento lógico-formal. Em face de um caso concreto, o aplicador do direito deve construir um silogismo em que a norma constitui a premissa maior, a descrição do fato concreto, a premissa menor e a decisão, a sua conclusão. Esse procedimento de aplicação mecânica do direito é conhecido como “subsunção” do fato à norma. O direito seria, portanto, construído a partir de normas vinculadas logicamente, de modo que haveria um encadeamento racional de normas, inferidas racionalmente desde a mais geral e abstrata até a mais individual e concreta que seria aplicada diretamente ao caso concreto.
Desse modo, o ordenamento jurídico é concebido como um sistema lógico que tem por finalidade disciplinar as condutas humanas, no sentido de buscar a convivência harmoniosa entre os seres humanos e o estabelecimento da paz social.
Presume-se ainda que o ordenamento jurídico atenda aos pressupostos de completude e consistência. Entende-se por completude a propriedade do ordenamento de solucionar qualquer questão apresentada perante os órgãos judicantes: “dá-me o fato e te darei o direito”. Por consistência, entende-se a propriedade do ordenamento de não conter contradições.
No entanto, Kurt Friedrich Gödel demonstra que é impossível definir um sistema de axiomas completo que seja simultaneamente consistente. Um sistema diz-se completo se dentro dele pudermos provar qualquer afirmação ou sua negação a partir de axiomas. Os axiomas são afirmações iniciais que se consideram evidentes e sem necessidade de provas. Ora, se o ordenamento jurídico é um sistema lógico, é de esperar que os teoremas de Gödel aplicam-se ao ordenamento jurídico.
Quando Gödel enunciou os teoremas da incompletude, provocou um impacto considerável sobre a logica e a ciência do seu tempo. Por exemplo, inviabilizou o programa proposto por David Hilbert de redução de toda matemática a um número limitado de axiomas consistentes, de modo que qualquer proposição pudesse ser demonstrada dentro desse sistema que seria, portanto, completo. Outra consequência, essa no campo da física teórica, foi a inviabilidade da formulação de uma Teoria de Tudo. Com efeito, os teoremas da incompletude de Gödel têm sido considerados como a maior realização do Século XX no campo da lógica.
Uma matemática é dita consistente quando não tem contradições, ou, em outros termos, quando está livre de paradoxos. Contudo, para encontrar um sistema lógico que seja livre de paradoxos, é preciso enfrentar uma afirmação que não possa ser provada dentro do sistema. Um exemplo é o paradoxo do cretense (ou do mentiroso): Todo cretense é mentiroso, diz o cretense. Se o cretense está dizendo a verdade, não é verdadeiro que todo cretense é mentiroso. Por outro lado, se estiver mentindo, então nem todo cretense é mentiroso etc. Estamos supondo que a prova – ou a resolução do paradoxo – deve ser obtida a partir do próprio sistema. Quer dizer, não utilizar provas obtidas de fora do sistema.
Aristóteles construiu a sua lógica partindo de três princípios: o da identidade, o da não contradição e o do terceiro excluído. O princípio do terceiro excluído diz que uma afirmação não pode ser simultaneamente verdadeira e falsa – ou que não pode ser ao mesmo tempo não falsa e não verdadeira. Os paradoxos decorrem de exceções ao princípio do terceiro excluído. Ou seja, haveria afirmações que pertencem ao sistema e que o sistema não tem condições de dizer se são falsas ou verdadeiras.
Temos então duas possibilidades: se admitirmos que o sistema contenha afirmações simultaneamente falsas e verdadeiras, mas não as que sejam não falsas e simultaneamente não verdadeiras (o sistema pode conter contradições), teremos uma lógica que pode ser chamada de “paraconsistente” (R.S. Kubrusky). Pelo contrário, se o sistema contiver simultaneamente afirmações não falsas e não verdadeiras, mas não as que forem falsas e verdadeiras, estaremos diante de uma lógica “paracompleta”. Nesse caso, não haveria contradições, mas também o sistema não seria completo: haveria afirmações que não podem ser provadas a partir do sistema (indecidíveis).
No caso de uma lógica paracompleta, a presença de indecidíveis é inevitável. Em outras palavras, se queremos manter a consistência do sistema, teremos de conviver com os indecidíveis. Por outro lado, o sistema será completo apenas se estiver livre de indecidíveis: é possível provar ou refutar qualquer de suas afirmações.
Então, se, no campo da matemática, não for possível desistir da consistência, deve-se estar preparado para conviver com os indecidíveis, pois a consistência exclui a completude. Já no campo do direito, o que é preferível, a inconsistência ou a incompletude? Trata-se de um problema de escolha: se a matemática não pode tolerar a inconsistência, o direito não pode tolerar o indecidível.
Se o ordenamento jurídico é um sistema lógico, é de supor que está sujeito aos teoremas de Gödel. Então, deve-se optar entre eliminar ou a incompletude ou a inconsistência do sistema, já que não pode ser simultaneamente completo e consistente. Se admitirmos a existência de afirmações verdadeiras que não podem ser demonstradas a partir de elementos do sistema – a demonstração dependeria de elementos externos ao sistema – então também não é possível um direito “puro”, como pretendido por Kelsem.
Uma dificuldade a ser enfrentada é que o direito não trabalha com axiomas, mas com dogmas. A propósito, qual a diferença entre axiomas, postulados e dogmas? Um dogma é uma proposição que deve ser aceita sem contestação, constituindo os fundamentos de uma doutrina ou de um sistema. Fala-se em dogmática jurídica porque não cabe discussão sobre as normas e regras que compõe o ordenamento jurídico. Elas devem ser simplesmente aceitas porque foram produzidas conforme o próprio ordenamento. A dogmática constitui o método próprio de atuar dos juristas, baseada em premissas que decorrem de experiências concretas, ocorridas em momento pretérito, ou de valores fundamentais não sujeitos à discussão. O pensar dogmático confere segurança à aplicação do direito.
Um axioma, por sua vez, é uma proposição aceita consensualmente, sem comprovação, e que serve de fundamento para uma teoria construída logicamente. Por constituírem os fundamentos da teoria, os axiomas são indemonstráveis. Já os postulados também são indemonstráveis, mas, ao contrário dos axiomas, possuem plausibilidade empírica, sendo verificáveis experimentalmente. As demais proposições (teoremas) que constituem a teoria são inferidas a partir dos axiomas e postulados.
Vamos admitir que, por serem indemonstráveis, dogmas, axiomas e postulados exercem o mesmo papel na fundamentação de sistemas lógicos. Por outro lado, há alguma aproximação entre dogmas e postulados, na medida que ambos apresentam plausibilidade empírica. A completude do ordenamento jurídico decorre de condições pragmáticas de aplicação do direito.
Outra peculiaridade que deve ser lavada em conta é que a lógica jurídica combina proposições deônticas (dever ser) com proposições categóricas, descritivas da realidade. Ressalte-se que apenas no primeiro caso são possíveis os juízos sintéticos a priori.
Por fim, não podemos olvidar o trabalho de Claus-Wilhelm Canaris para quem o ordenamento jurídico não pode ser reduzido a um sistema meramente lógico-formal (concepção restrita) o que, por consequência conduz á recusa do ordenamento como sistema axiomático-dedutivo. Em outras palavras, o conceito positivista de ciência não se aplica corretamente ao direito. Pelo contrário, sem deixar de ser, por ser derivado da ideia de justiça, o ordenamento deve ser um sitema axiológico e teleológico. Diz esse autor que “o sistema deve fazer claramente a adequação valorativa e a unidade interior do direito”.
O sistema jurídico, como concebido por Canaris, estaria ainda sujeito aos teoremas de Gödel? Vamos presumir que sim.
Superado esse ponto, passemos à questão da completude. Porque, no direito, devemos escolher a completude e não a consistência? Porque o direito, entre outras finalidades, objetiva a solução pacífica dos conflitos e a promoção da paz social. Para isso, os órgãos judicantes não podem omitir-se de dar solução para as questões a eles submetidas. O aplicador do direito, ao se defrontar com o caso concreto, deve encontrar uma solução no ordenamento jurídico. Ora, não é realista esperar que o ordenamento tenha uma regra para todas as situações concretas possíveis. O legislador não teria semelhante capacidade de previsão. Contudo, o cidadão, ao invocar a tutela jurisdicional do Estado, espera por uma solução. O aplicador do direito não pode alegar que não existe regra no ordenamento para aquela situação concreta (non liquet).
Se o aplicador do direito não pode omitir-se e necessariamente deve encontrar uma solução para o caso concreto (jura novit curia), então devemos forçosamente admitir a completude do ordenamento. Caso não exista uma regra expressa para o caso concreto, o aplicador do direito deve extrair do ordenamento a regra necessária. Assim, a completude deve ser entendida, não como o ordenamento ter uma regra expressa para todos os casos, mas como a possibilidade do ordenamento ser completado pelo aplicador da lei. Se não é completo em ato, é completo em potência. Esse o sentido do antigo aforisma, “dá-me o fato e te darei o direito”.
O aplicador do direito, não encontrando regra expressa aplicável ao caso, deve buscar a regra, mediante o uso de técnicas de integração do direito posto. Contudo, nem sempre a inexistência de regra expressa significa que não há regra. A omissão do legislador pode significar uma regra: “o que a lei quis disse, o que não quis, guardou silêncio”. Portanto, somente se integra o direito, se houver uma lacuna que, conforme Karl Engish, consiste em uma incompletude insatisfatória do ordenamento. Ou seja, quando a falta de regra expressa impossibilitaria dar solução para o caso concreto. Na falta de regra expressa, o aplicador da lei deve procurar no ordenamento regra que trate de situação semelhante (analogia). Por semelhante entende-se a semelhança significativa que constitui a razão de ser da regra (ratio legis). Não sendo possível o uso da analogia, o aplicador deve construir uma regra para o caso concreto, a partir dos princípios gerais de direito ou mesmo com base na equidade.
O direito brasileiro prevê a integração no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.675/1942): “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os e os costumes princípios gerais de direito”. Especificamente no caso do direito tributário, a integração da legislação está disciplinada pelo art. 108 do CTN (Lei 5.172/1966).
E como fica a consistência? Conforme Gödel, um sistema não pode ser, ao mesmo tempo, completo e consistente. Então, se quisermos que o ordenamento seja completo, devemos admitir sua inconsistência, ou seja, a presença de contradições.
Com efeito, K. Engish identifica alguns tipos de contradições no direito com as quais convivemos: Em primeiro lugar, temos as contradições valorativas em que o legislador contradiz seus próprios valores, ou seja, produz normas cujos valores estão em conflito uns com os outros. Trata-se de contradições imanentes ou com origem no próprio sistema. Temos ainda as contradições teleológicas em que o fim visado pelo legislador em uma norma é frustrado por outras normas que impedem que esse fim seja atingido. Por fim, temos as contradições de princípios quando diferentes ideias fundamentais convivem no mesmo ordenamento, como por exemplo: liberalismo e totalitarismo, livre-concorrência e controle estatal ou justiça e segurança jurídica.
A presença de contradições não é de surpreender se levarmos em conta que o direito positivo não resulta de uma concepção racional de direito, mas de consenso político, ou seja, de negociação entre grupos com interesses divergentes e diversas orientações ideológicas (Poder Legislativo cujos integrantes são eleitos). Daí a coexistência de normas constitucionais e de normas inconstitucionais (que estão em vigor enquanto não declarada sua inconstitucionalidade), antinomias e aporias (postas em destaque por Derrida na desconstrução do direito). Poulantzas, a seu turno, fala do descumprimento por parte do Estado das normas que ele mesmo edita, como inerente ao próprio sistema. A própria dogmática resulta do casuísmo, da razão pragmática e do senso comum teórico dos juristas. Enfim, o ordenamento jurídico não pode ser consistente porque é o fruto de negociações políticas e de casuísmos. Já a completude é necessária para que o direito cumpra seu papel de resolver conflitos e promover a paz pública.