Velocino Pacheco Filho
Antes de entrar propriamente no tema, é oportuno relembrar as características do ICMS. Trata-se de imposto de competência dos Estados-membros e do Distrito Federal, que incide em todas as fases do ciclo de comercialização e submete-se ao princípio da não cumulatividade (o imposto devido pode ser compensado, no todo ou em parte, com o imposto cobrado nas fases anteriores).
Os impostos não cumulativos, como concebidos na Europa do pós-guerra, visam uma tributação neutra sobre o consumo, ou seja: o tratamento tributário não deveria constituir vantagem ou desvantagem de qualquer empresa em relação a suas concorrentes no mercado. As empresas, em um mercado de concorrência, deveriam ser indiferentes à tributação. Em outras palavras, o aparelho produtivo não deve ser onerado pelo imposto o qual deve repercutir integralmente sobre o consumidor final.
Como se pode constatar, as Administrações Tributárias não tem levado a sério o princípio da tributação neutra sobre o consumo, apesar do art. 170, IV, da Constituição da República prever a livre concorrência como princípio informador da ordem econômica. Por conseguinte podemos afirmar que a tributação neutra é um princípio constitucional implícito.
A livre concorrência, como princípio constitucional, pressupõe uma tributação neutra – o Estado deve assumir, em relação ao mercado, uma atitude não intervencionista (ressalvada a garantia da efetividade dos demais princípios da ordem econômica, previstos no art. 170, já referido).
Pois bem, contextualizado o problema, passemos ao tema proposto do Protocolo 21/2011 e do e-comércio.
Ora, compete ao Senado da República a determinação das alíquotas interestaduais, pois, elas visam à repartição da receita tributária entre Estados produtores e Estados consumidores.
Dispõe ainda o art. 155, § 2º, VII, da Constituição, que nas operações que destinem mercadorias a consumidor final localizado em outro Estado, será adotada a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto, e a alíquota interna (do Estado de origem) quando não for. Conforme inciso VIII, do mesmo parágrafo, no caso do destinatário ser contribuinte do imposto, o Estado de destino poderá exigir o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual.
Contudo, com o crescimento de formas não presenciais de comercialização, tais como internet, telemarketing etc., alguns Estados tiveram sua receita tributária diminuída, devido ao crescimento das vendas diretamente a consumidor final, não contribuinte, caso em que passaram a ser tributadas integralmente pelo Estado de origem.
Para fazer face a esse problema, alguns Estados celebraram o Protocolo 21/2011, pelo qual os Estados destinatários passariam a exigir o imposto correspondente à diferença entre as alíquotas, também no caso das venda não presenciais, inclusive quando egressas de Estados não signatários do referido protocolo. A imposição dessa nova sistemática aos Estados não signatários constitui, naturalmente, aberta agressão aos princípio da Federação.
O Protocolo 21/2011, para atingir o seu objetivo, valeu-se de um instituto polêmico: a substituição tributária “para a frente”. O imposto correspondente à diferença entre as alíquotas seria recolhida, por responsabilidade, ao Estado de destino, mediante GNRE. Caso não fosse efetuado esse recolhimento, o imposto seria exigido por ocasião da entrada no território do Estado, sob pena de retenção da mercadoria.
Santa Catarina, como os demais Estados das Regiões Sul e Sudeste, não é signatária do Protocolo 21/2011.
A reação não se fez esperar. Foi proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.628 DF, com parecer favorável da Advocacia-Geral da União e do Ministério Público Federal. Recebida a ADI, foi deferida a medida cautelar pleiteada, em decisão monocrática do Min. Luiz Fux, em vista da inconstitucionalidade manifesta do Protocolo 21/2011.
Com efeito, a celebração de protocolo entre os Estados não é forma válida de modificar a Constituição, adotando nova regra de distribuição da receita tributária entre os Estados. A decisão do Ministro faz expressa referência à instituição de uma “anarquia normativa”. Em síntese, nova regra de distribuição somente poderia ser adotada via emenda constitucional. Esse seria o procedimento correto. O Min. Fux fez, inclusive, referência à “instituição de anarquia normativa”, se os Estados passarem a adotar novo modelo, de forma isolada.
A decisão também considerou vulnerados outros importantes princípios constitucionais, como o da segurança e previsibilidade da tributação. O contribuinte deve conhecer qual a carga tributária com que irá se defrontar, sob pena de instaurar-se o caos na economia e comprometimento dos objetivos de desenvolvimento nacional. É o que acontece quando os Estados signatários passam a exigir o imposto correspondente à diferença entre as alíquotas, quando o Estado de origem já havia cobrado o imposto calculado com a sua alíquota interna. O resultado é um aumento indevido da carga tributária.
Além disso, os Estados de destino podem apreender a mercadoria, como forma de compelir o contribuinte a recolher o tributo exigido. Com isso, fica caracterizado o efeito confiscatório, além da restrição ao direito de ir e vir.
Trata-se de disputa entre os Estados de origem e de destino sobre a repartição da receita tributária que, em princípio, não deveria afetar o contribuinte. Sucede, entretanto, que os contribuintes é que passam a sofrer o ônus da disputa entre os Estados: majoração do tributo, retenção de cargas e veículos etc. A majoração corre por conta da exigência da parcela correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual tanto pelo Estado de origem como pelo Estado de destino.
Mas, o Protocolo 21/2011 não é apenas inconstitucional. A solução adotada pelos Estados consumidores atenta ainda contra o princípio da moralidade, albergado pelo art. 37 da Carta. A Administração Pública, inclusive a tributária, deve conduzir-se, não só observando o princípio da legalidade, mas também o da moralidade. Os tributos devem ser cobrados de acordo com princípios morais.
Em termos de moralidade tributária, não podemos esquecer a obra de Klaus Tipke que analisa separadamente a moral tributária do Estado, do contribuinte e da Administração.
No fundo, retoma-se uma velha discussão: princípio de destino versus princípio de origem. Argumenta-se que, nos tributos não cumulativos sobre o consumo, a receita tributária deveria ser atribuída ao Estado onde consumidas as mercadorias, que seria utilizada para custear serviços públicos em favor do consumidor final (que arca com o ônus do tributo). Considera-se que esta seria uma distribuição mais justa da receita tributária.
A propósito, está tramitando no Congresso Nacional a PEC 197-A, que atribui ao Estado de destino o tributo correspondente à diferença entre as alíquotas, sempre que o destinatário for consumidor final, seja contribuinte ou não. A proposta atingiria todas as vendas interestaduais a consumidor final e não apenas as formas não presenciais.
Os proponentes da PEC 197-A a justificam como meio de atingir os objetivos fundamentais da República (CF, art. 3º) de garantir o desenvolvimento nacional e reduzir as desigualdades sociais e regionais